26 de setembro de 2010

A Rosa Púrpura da Paulista

Domingo à tarde. Chove em São Paulo.

De dentro da bilheteria, a funcionária do cinema olha o movimento à frente da cabine. A poucos metros dali, a equipe de uma rede paulistana de televisão faz uma matéria tendo a porta do cinema como cenário.

Atenta, a menina, pouco mais de vinte anos de idade, observa a gravação da reportagem. Está totalmente desocupada: não há uma pessoa na fila querendo comprar ingresso para os filmes exibidos. Poucos minutos antes, um casal de meia idade comprou bilhetes para uma sessão e entrou na sala. Eram os únicos da fila. Agora, não há mais ninguém. Assim, ela tem todo o tempo do mundo para vigiar a movimentação da câmera e conferir se o aparelho está apontado para ela.

Com sorte, ela aparecerá na televisão.

Sua família poderá vê-la, por alguns poucos minutos, ali na cabine, no segundo plano da tela. Mesmo em silêncio como uma parte do cenário, Isso será suficiente para ser assunto, na sua casa, por alguns dias. E, mesmo daqui a anos, ela se lembrará disso, do dia em que apareceu na televisão.

Mas ela também se lembrará da noite de hoje. Ao final da última sessão deste domingo – que deve acontecer somente algumas horas depois de eu finalizar este texto – a rotina dela e dos outros funcionários será basicamente a mesma de sempre: apagarão as luzes, recolherão o lixo e fecharão as portas de aço, que separam o cinema da galeria na qual ele está localizado. Demorará até que as luzes sejam acesas novamente. E as portas não se abrirão mais. Ao menos, não tão cedo.

Afinal, o assunto da reportagem que está sendo realizada ali, à frente dos olhos da menina, é justamente o fato de que, após mais de três décadas funcionando no centro da Avenida Paulista, o Gemini, um dos cinemas mais tradicionais da capital paulista, encerrará suas operações hoje.

Daqui a algumas horas, o Gemini deixará de existir.

Foram milhões de beijos enamorados que aconteceram ali dentro, na tela ou na platéia, enquanto o resto da cidade andava pela calçada, a poucos metros dali; homens de terno, mulheres de saia e salto alto, com o passo apertado. Sempre apressados demais para rir ou chorar, ocupados demais para sonhar. Sempre preocupados demais para beijar.

Foram décadas. A cidade foi se modificando. As roupas das pessoas que passavam pelas calçadas mudaram; assim como as maquiagens e os penteados também. Mas a pressa de todos não mudou. E o Gemini permaneceu ali, imóvel, inalterado, lutando contra o tempo.

A cidade, por sua vez, decidiu correr com o tempo e não lutar contra ele. Os sonhos e beijos fugiram da Paulista para os shoppings, em salas de cinema impessoais, que oferecem refil de pipoca, som em dez mil canais e personagens que, hoje em dia, pulam da tela na sua direção. E o Gemini, que vendia sonhos que permaneciam ali mesmo na tela, não conseguiu concorrer com isso.

Aos poucos, sua platéia foi minguando. As cadeiras foram se tornando vagas, e a luxuosa área acarpetada – que servia como sala de espera para o cinema propriamente dito – foi esvaziando. Logo, não sobrou mais ninguém. Somente os funcionários, vendendo ingressos e pipoca para ninguém, projetando filmes que não eram assistidos.

E os sonhos. Ali na tela, esquecidos, abandonados e sendo sonhados por ninguém.

Hoje, tudo acaba. Hoje, a luz se apaga, mas, desta vez, os sonhos sumirão por completo, ao invés de aparecem enormes e coloridos na tela prateada. Não haverá mais ingressos, pipoca, nem posters. Não existirão mais namorados de todas as idades assistindo a filmes de mãos dadas, casais fugindo da vida doméstica, solitários buscando refúgios em romances fictícios e garotos vivendo aventuras em terras estranhas. Não haverá mais nada.

Logo, ele será esquecido, apenas mais um nome na lista dos cinemas de rua paulistanos que fecharam as portas. Seus sonhos, que um dia brilharam na tela enorme, logo se tornarão parte do passado; os beijos apaixonados, os dedos entrelaçados, as gargalhadas e lágrimas que escaparam no escuro se perderão no tempo.

Amanhã, as pessoas passarão apressadas pela calçada, mal reparando na ausência do cinema que esteve ali por décadas. Amanhã, o Gemini se tornará somente uma nota de rodapé na história da cidade.

O que é pouco para um local que vendeu sonhos e mais sonhos por tanto tempo.


Este texto é dedicado à Menina da Bilheteria,
a última (e solitária) personagem do Gemini.

34 comentários:

Anônimo disse...

Aqui no Rio aconteceu mt disso.

Tinha um cinema no Méier, que, se não me engano, foi o que eu fui pela primeira vez. Virou Universal.

E assim foi com vários cinemas de rua.

Um dos únicos (se não for o único) que resiste por aqui bravamente é o Odeon, que contou com a ajuda da Petrobrás. Hoje é Odeon BR. Só passa filmes nacionais.

Barlavento disse...

Aqui em Recife ainda tem o Cine São Luís. Ficou mtos anos fechado, mas agora reabriu todo restaurado. Está lindo. Tem passado os filmes nacionais. Não sei quanto tempo vai aguentar a concorrência e a pressão.
Lembro da época do Veneza, onde íamos assistir os Trapalhões e comprar as caixinhas de "Supra Sumo".
Minha tia-avó "assaltava" a bomboniere do meu avô (que só nos era liberada no fim de semana) e enchia os nossos bolsos com Bubaloo e Xaxá de banana e abacaxi. Ela não tinha muito dinheiro, então economizávamos nos bombons para os ingressos.
Vou parar por aqui porque isso é apenas um comentário, e não um post, e eu preciso segurar as lágrimas no trabalho.

Natan Mestrinelli disse...

É, mais um que sai dessa vida para entrar na história. A idéia de ser restaurado e reinaugurado é muito boa, pode dar certo. Ainda acredito em pessoas que querem manter a história viva.

pati bertucci disse...

Mais um cinema de rua que fecha suas portas... pena. Eu só vou a cinemas de rua, além do Gemini, o Belas Artes e Unibanco da Augusta e acho muito mais agradável e interessante para a cidade, existe uma interação com a rua...

pati bertucci disse...

Mais um cinema de rua que fecha suas portas... pena. Eu só vou a cinemas de rua, além do Gemini, o Belas Artes e Unibanco da Augusta e acho muito mais agradável e interessante para a cidade, existe uma interação com a rua...

pati bertucci disse...

Mais um cinema de rua que fecha suas portas... pena. Eu só vou a cinemas de rua, além do Gemini, o Belas Artes e Unibanco da Augusta e acho muito mais agradável e interessante para a cidade, existe uma interação com a rua...

pati bertucci disse...

Mais um cinema de rua que fecha suas portas... pena. Eu só vou a cinemas de rua, além do Gemini, o Belas Artes e Unibanco da Augusta e acho muito mais agradável e interessante para a cidade, existe uma interação com a rua...

Anônimo disse...

É, eu que moro em brasília ja fui no Gemini assistir algum filme que não qual era quando eu tinha uns 15 anos (so a uns 10 anos atras)

e assim caminha a humanidade

Anônimo disse...

É, eu que moro em brasília ja fui no Gemini assistir algum filme que não qual era quando eu tinha uns 15 anos (so a uns 10 anos atras)

e assim caminha a humanidade

Anônimo disse...

É, eu que moro em brasília ja fui no Gemini assistir algum filme que não qual era quando eu tinha uns 15 anos (so a uns 10 anos atras)

e assim caminha a humanidade

Anônimo disse...

e mals pelos 3 ou 4 post em sequencia, o pc daqui travou e enfim...

Sil disse...

Eu assisti tanta coisa boa no Gemini...droga, nessas horas é péssimo ser chorona...

Lígia disse...

Não acredito que o Gemini vai fechar.
Várias vezes eu fui ver filmes lá que não estavam mais passando em lugar nenhum. Uma vez, era aniversário do cinema, e pelos R$4 que paguei pela minha meia-entrada, ainda ganhei pipoca e refrigerante.

Que pena!

Flávia Higashi disse...

Eu nem consegui ler o texto, nem metade dele, o Gemini era meu cinema preferido!

:(

vivis disse...

As salas do Gemini são lindas, o cinema é bom, mas as pessoas preferem ver filmes em 3D...

Muito triste.

O próximo será o Belas Artes...

@micksaintjohnny disse...

Rob, rob...

Alguns desses beijos foram meus, dessas risadas também. Há um tempo achei que o Lumiére (Cinema de rua daqui do Itaim) iria fechar, sorte que estava enganado. Somente reformaram e agora é do UOL.

Rezo para que uma alma boa recupere este Cinema que fez a felicidade de muitas pessoas.

Um bom dia pr'ocê.

Abraços,

Barba

Hydra disse...

Eu entendo um pouco a dor dos paulistanos pela perda desse cinema.
Houve um tempo em que o cinema da minha cidade estava prestes a fechar. Era o único cinema da região, aliás, mas tinha pouco movimento, e os donos já não tinham condições de mantê-lo. Cheirava a mofo, as poltronas estavam rasgando e o som era ruim.
Por sorte, na mesma semana que decidiram fechar o cinema, um dos pontos de encontro mais movimentados da cidade resolveu comprar o local. Eles reformaram o cinema e agora oferecem descontos no lanche para quem vai assistir filmes. =)

Mas a perda de um cinema antigo assim sempre deixa uma sensação ruim aqui dentro...
Sinto muito pela perda de vocês... =/

Otavio Cohen disse...

il nuovo vecchio cinema paradiso.

Fernanda disse...

Coincidência??? Moro no interior de SP.. e rarissímas vezes eu passei pela Paulista.. e não é q hoje a tarde eu estava passando por lá vindo embora pra minha cidade... com aquela chuvinha chata... e observando os prédios... e eu fiquei por alguns segundos parada justamente em frente desse cinema, admirando pela existência (leia-se sobrevivência) dele... e chego na minha casa hoje.. vou ler seu blog.. e me deparo com isso.. fiquei um pouco mais triste, confesso...

Pedro Lucas disse...

Sério Rob, eu não quero acessar o Champ no dia em que algum conhecido seu falecer.

Porra, você me deixou chorando sobre um cinema...

Arthurius Maximus disse...

Pois é. Os cinemas de rua não têm mais espaço nas cidades violentas e sem segurança. Infelizmente a realidade cruel vai deixando os sonhos de fora, com velocidade cada vez mais estarrecedora. Aos que viveram momentos únicos ali; cabe apenas o saudosismo...

Daniela disse...

Não conheci o Gemini, mas me lembro com que tristeza e raiva vi o cinema da minha infância ser demolido para virar uma agência "muderna" do Banco Br*****o...uma obra da arquitetura, um lugar dos meus sonhos e lembranças. Detesto o banco até hoje, mais de 20 anos depois da demolição. Sinto pelo Gemini e sinto ainda mais hoje pelo Cine Metrópole, de Bh, onde aprendi a sonhar.

http://proteuspatrimoniocultural.blogspot.com/2006/11/metrpole-trajetria-de-um-espao.html

Ana Savini disse...

E mais um cinema da minha adolescência que se vai... Cristo também vai estar no lugar desse como disse o Dragus? A maioria dos cinemas que eu frequentava foram possuídos, espero que esse não seja mais um.

Dragus disse...

Uma semana depois Cristo estará no lugar.

Me sinto cada vez mais desgostoso com a raça humana...

Natalia Maximo disse...

Muitos desses beijos de casais apaixonados foram os meus. O que está acontecendo com essa cidade?

Tyler Bazz disse...

Putz. Nesse feriado do 07/09, que eu estive em São Paulo, minha tia falou várias vezes sobre o Gemini, pra eu dar um pulo lá, que ainda tava exibindo um filme que eu devia ver.

Acabei não indo.

E acho que não foi só o filme que eu perdi.

Nicole disse...

Acredita que eu nunca fui a um cinema desses de rua? Só em shopping mesmo. Será que sobrou algum no qual eu posso incluir minha história?

Wesley disse...

Pra ser sincero, não me entristeceu muito o fato do fechamento do Gemini. Fui lá 01 vez e saí de lá com alergia, rs. Não fui mais vezes por causa da distância de casa.

Mas ler seu texto me entristeceu por outro ponto: só estão ficando "em pés" os cinemas blockbuster (aliás, esse termo tem que ser substituído por algum sinônimo de $uce$$o), com 75% da programação dublada, ajudando na "formação" de cérebros cada dia mais atrofiados.

Só espero que não vire mais um ex-cine igreja universal.

Rob Gordon disse...

Nih_x:

Aqui em São Paulo, sobraram ainda o Espaço Unibanco e o Belas Artes, na região da Paulista, e o Marabá, no centro, que foi todo reformado.

E os cineclubes, claro.

Rob

Bia Nascimento disse...

E lá se vai um dos cinemas da minha infância...

PS: É impressionante como eu consigo visualizar perfeitamente as cenas que você narra com essa poética linda.

Dani Cavalheiro disse...

Saí de São Paulo com dez anos, mas ainda lembro do Gemini. Chorei ao ler: eu estou planejando um retorno no fim do ano, e um dos meus pontos a visitar seria justamente ele. Perdi essa...

Aqui no Rio aconteceu o mesmo com o Cine Palácio, quase ao lado do Odeon que alguém citou. Engraçado como a descrição da sala de espera com tapetes vermelhos me fez chorar mais ainda: eu assisti a uma das últimas sessões do Palácio, dois dias antes de fechar. E quando a atendente disse que fecharia, eu chorei justamente na sala de espera com tapetes vermelhos.
Por aqui não sei se o Palácio volta, mas torço muito por ele e pelo Gemini.

Besos.

Ulisses Adirt disse...

Lindo, Rob.

E pensar que há um mês eu estava no Gemini, chorando com um filme. Agora, só vou mesmo lembrar.

Kel Sodré disse...

Que tristeza.

Leandro disse...

Fiquei muito triste com essa notícia. De verdade.

Ia criticar essa onda de cinemas 3D, refis de pipoca e etc. Mas aí pensei em quantas vezes fui ao Gemini no último ano. Uma vez.

Agora em salas de grandes redes de cinema, geralmente dentro de shoppings, umas vinte. Pois é.