Eram quase 2 horas da manhã quando aquela gordinha, com cerca de quarenta anos de idade, óculos fundo de garrafa e cabelos presos num rabo de cavalo se aproximou do único caixa que estava aberto naquele horário, empurrando um carrinho repleto de mercadorias, para pagar suas compras no Pão de Açúcar da Teodoro Sampaio.
O mercado estava quase deserto. Assim, ela não apenas caminhou na direção do caixa sem demonstrar pressa nenhuma, como ainda encontrou tempo para começar a selecionar quais compras do carrinho iria efetivamente levar.
Sim, selecionar as compras do carrinho.
Ok, sejamos sinceros. É normal uma pessoa, na fila do caixa, decidir que uma ou outra mercadoria é desnecessária. Ao invés de dois potes de maionese, a pessoa percebe que precisa apenas de um, abandonando o sobressalente ali, à própria sorte, no meio dos pacotes de Doritos que ficam ao lado da fila. É absolutamente normal.
Contudo, a Gordinha estabeleceu novos conceitos para escolher suas compras. Aparentemente, as mercadorias, para chegarem à sua casa, precisam passar por um processo de seleção semelhante à Fuvest, composto por duas fases.
A mecânica, aparentemente, é a seguinte: uma laranja, por exemplo, sonhando com um futuro melhor na casa da Gordinha (ao menos até ser devorada numa tarde de sábado, ou virar suco) se inscreve na categoria Perecíveis. Assim, ela precisa ser aprovada na primeira fase, que consiste em, ainda na prateleira, chamar a atenção da Gordinha.
Os aprovados, então, são colocados no carrinho e levados até o caixa, onde passam por um novo processo de seleção, sendo vistoriados e analisados pela própria Gordinha, que escolhe quais são dignos de entrar em seu lar, e apresentam potencial para alimentá-la.
E a nota de corte parece ser alta – tudo para manter o padrão de excelência das refeições da Gordinha. Aparentemente, uma das categorias mais disputadas era a de congelados, com oito candidatos por vaga. E ela analisa cada um deles individualmente, com olhos atentos.
Ou isso, ou ela é um andróide que veio do futuro (e com um leitor de código de barras nos olhos) com a missão de encontrar um produto do Pão de Açúcar que, em alguns anos, se tornará o líder da revolução armada contra as pessoas, comandando exércitos de derivados de leite selvagens e produtos de limpeza treinados para matar.
Porque nada mais explicaria a demora dela para vistoriar cada produto. Cada item era retirado do carrinho e analisado em média por cinco segundos, antes de seu destino (a glória na esteira do caixa ou o esquecimento total naquele limbo de Doritos) ser anunciado. E, como ela tinha mais de quarenta produtos no carrinho, estamos falando de muitos e muitos “cinco segundos”.
Algumas eras geológicas depois, a Gordinha finalmente se decidiu por cerca de doze itens e os entregou ao caixa, que anunciou o valor em alto e bom som:
– 182 reais e quarenta centavos.
Enquanto ela guardava as coisas em diversas sacolas – felizmente, não havia um processo de seleção para isso – entregou um cartão do banco ao funcionário que, de forma automática, o espetou na máquina.
– Débito ou crédito?
– Débito.
Ele apertou dois botões e pediu:
– Pode digitar a senha.
A Gordinha apertou cinco ou seis teclas e continuou guardando as compras.
Mas foi interrompida.
– Senhora, está dando transação não autorizada. Vou tentar novamente.
– Sim, respondeu ela, por trás de seus óculos fundos.
– Débito ou crédito?
– Débito.
– Só um minuto... A senha, por favor.
Ansiedade. Da Gordinha, claro. O caixa parecia estar apenas com sono.
– Está dando transação não autorizada.
– Mas não é possível. Eu tenho saldo!
– Está dando transação não autorizada.
– Será que o problema é com o sistema?
– Devidisê, ele disse, juntando, numa palavra, mais fonemas do que qualquer gramática e muitos fonoaudiólogos desaconselhariam.
– Vamos tentar de novo?
– Débito ou crédito?
– Débito.
– Pronto. A senha, por favor.
Silêncio.
– Não autorizada.
– Não, isso está errado. Eu tenho saldo.
– Devidisê o sistema.
– Será que eu tenho a última mensagem de texto que recebi hoje à tarde?
Se esta história fosse um filme francês, neste exato momento um dos espectadores teria virado para a namorada, na platéia, e dito “não estou entendendo nada, o que ela quer com o celular?”. Felizmente, a vida é um filme americano, e a Gordinha, ciente das limitações do público, explicou seus atos.
– Eu recebo mensagens no celular sempre que uso o cartão, e ele me informa o saldo que eu tenho. Eu recebi uma hoje, mas não sei se apaguei... Está aqui! Ah não, esta é da operadora de celular. Não, eu já apaguei.
O caixa, atento ao fato de que a expressão “devedisê” não se encaixaria no contexto, permaneceu mudo. Ao contrário dele, o cérebro da Gordinha funcionava a todo vapor, e depois de se reunirem por alguns segundos, apresentaram algo que eles classificavam como uma idéia (na verdade, era uma série de frases rabiscadas num papel de pão amassado, junto com um número de telefone sem nome).
– Já sei! A conta deu 182 reais, certo? Então, cobre 30 reais no cartão, porque assim eu recebo uma nova mensagem de texto do banco e vejo meu saldo!
– Trinta reais?
– Sim, nas compras abaixo disso eu não recebo nada. Tem que ser 30.
– Débito ou crédito?
– Débito.
– Pronto. A senha, por favor.
Nervosismo.
– Passou.
– Que bom! Vamos esperar a mensagem de texto!
O caixa ficou em silêncio, provavelmente percebendo que, sem opção de sair dali, era evidente que ele iria esperar a mensagem junto com ela.
Mas claro que isso não iria garantir que a mensagem fosse entregue.
– Ai, meu Deus. Nunca demorou tanto assim. Será que vai demorar porque já é de madrugada?
– Devidisê.
– Eu preciso saber meu saldo! Ai banco, manda a mensagem logo!
O celular da Gordinha, que provavelmente estava dormindo na bolsa até o momento, acordou e, ficando imediatamente encabulado com o fato de ser arrastado para o meio daquela situação, resolveu tocar e acabar logo com aquilo.
– Chegou! Vamos ver... Vamos ver... Olhe só! Eu tenho 231 reais de saldo!
– Hum, respondeu o caixa.
– Vamos passar de novo. A compra tinha dado 182 reais e quanto?
– Quarenta centavos.
– Bom, você já cobrou trinta reais. Pode passar então 152 reais e quarenta centavos.
– Débito ou crédito?
– Débito
–A senha, por favor.
Olhar de vitória da Gordinha.
– Deu não autorizado.
– Não é possível! Esse problema deve ser no seu sistema!
– Devidisê.
– Ai, meu Deus... E agora? Como vou fazer para pagar as compras...? Já sei! Já sei! Vou sacar dinheiro ali no caixa eletrônico e pago em dinheiro. Você me espera?
“Bom, eu não posso mesmo sair daqui”, respondeu o caixa com o olhar. A Gordinha, porém, não deu atenção e já estava a caminho do caixa. Na metade do caminho, deu meia volta e questionou:
– Mas nesse horário eu só posso sacar cem reais, né?
– Devidisê.
– Ai... Olha, vamos tentar o seguinte. Tenta passar 52 reais e quarenta centavos. Se você conseguir, eu saco os outros cem reais, e pago em dinheiro.
E entregou o cartão ao caixa que, mesmo sem entender nada, achou melhor fazer o que ela estava falando.
– Débito ou crédito?
– Débito
– A senha, por favor.
Expectativa.
– Passou.
– Ufa! Agora, não faz sentido ele passar cinqüenta reais e não passar 150 reais, se eu tenho saldo na conta. Tem algo errado aí!
– Né?, retrucou o caixa, demonstrando todo seu entusiasmo pelo assunto.
– Agora eu vou sacar cem reais e já trago para você, em dinheiro.
– Ok.
Ela foi até o caixa eletrônico e espetou o cartão. Ao mesmo tempo, seu celular tocou, avisando do novo débito. Ela conferiu a mensagem e, ainda do caixa eletrônico, virou-se para o funcionário e gritou “eu tenho saldo, sim!”, talvez para tranqüilizá-lo. Mas ele não parecia exatamente nervoso – a não ser, claro, que ficar limpando a ponta da unha com uma tampa de caneta Bic fosse sua maneira de demonstrar ansiedade.
Minutos depois, ela volta, ofegante e com os óculos fundo de garrafa embaçados.
– Consegui!
E entregou duas notas de cinqüenta reais ao caixa.
– Está pago, então?
– Sim.
– Vocês têm que ver esse sistema de vocês! Ele está com problemas, você não acha?
– Devidisê.
Pegou as sacolas e saiu, esbaforida, em direção à porta. O rapaz do caixa observou em silêncio ela se afastando, receando que ela retornaria, para continuar a conversa. Ao perceber, aliviado, que isso não aconteceria, decidiu continuar trabalhando e passar as compras de mais um cliente.
– Próximo!
E o próximo cliente, um sujeito baixinho, careca e gordinho, depositou suas compras no caixa: uma lasanha (de calabresa) congelada e uma garrafa de Coca Zero.
Adivinhem quem era?
23 comentários:
Rob, vc ainda n sacou que sua vida é tipo Show de Truman? essa aí recebeu 300 reais por essa cena
Puta merda, me deu agonia de ler o texto. Quanto tempo você ficou atrás dela? O Abílio Diniz ainda era pobre quando você entrou na fila, né?
Putaquepariuporquetantademoraaa????
Fora que os produtos que ela comprou custam em média 15 reais...
Afinal de contas, por que o cartão dela não passava o valor completo? Será que ela tem uma cota por transação?
*entrega o cartão para a moça do caixa*
"Passa no débito, por favor?"
*moça do caixa pega o cartão*
"Débito ou crédito?"
"Débito"
Sempre achei que eles são obrigados a fazer essa pergunta. Se não fizerem não recebem o salário, só pode ser.
Hahuiaheiuaheuiehuieha.
Morrendo de rir aqui. Meu dia já estava perfeito. Conseguiu ficar mais ainda.
Abração, Mr Gordon!
Rob e suas aventuras no Pão de Açucar..., auehuaehuaehue essa foi boa. \o/
Eu teria ido embora. Sério. Tudo isso por uma lasanha e uma coca? Não tinha um pão com manteiga e um toddynho velho em casa, não?
Cara! Definitivamente, você devidisê mesmo piloto de testes do inferno.
Completamente bizarro...
P.S.: Concordo com o Tyler, a gordinha só compra coisa cara, hein?!
"Não tinha um pão com manteiga e um toddynho velho em casa, não?"
Marina, o problema dos Toddynhos velhos, é que eles tem o péssimo hábito de fazer ataques suicidas... (Rob explica)
Rob, se a gordinha fosse um andróide que veio do futuro com a missão de encontrar um produto que, se tornará o líder da revolução contra os humanos, deveria ler seu blog pra saber que quem vai encabeçar essa luta é o Toddynho, né? eheheheh
Não sei como vc manteve sua paciência enquanto esperava toda essa cena! =)
Porra rob... TENSO, concordo com o Otávio, Sua vida é o "Show de trumman" Versão brasileira (herbert ritchers).
hahahahahahha
Sim, Varotto, eu li essa história. O toddynho não foi por acaso. =P
Me faço a mesma pergunta do Pedro...
O caixa, atento ao fato de que a expressão “devedisê” não se encaixaria no contexto, permaneceu mudo.
Sem dúvida, meu trecho favorito desse filme americano de novelle vague! Hahaha!
Com este texto o Rob nos provou que de fato, procura essas situações. "Assim, ela não apenas caminhou na direção do caixa sem demonstrar pressa nenhuma (...)", isto é, uma pessoa qualquer aproveitaria a lerdeza da moça para passar à frente dela. Mas o nosso blogueiro preferido farejou ali a possibilidade de um bom texto e aqui estamos!
E acredito que a lasanha já não estivesse mais congelada no fim da história...
Hahaha, me deu nervoso isso.
Primeiro a seleção dela no caixa, e depois o cartão que se recusava a passar. Imagino a agonia dela nessa situação. Agora, vc ficar atrás no caixa deve ter sido estremamente entediante, hahaha.
Bjoss
Pelamordedeus, que mulher enrolada....rs
Muito bom seu artigo, um tempo atrás, também escrevi uma crônica de supermercado no feriado. Se quiser ler, passe no meu blog.
Abraços
Acho incrível como colocam pessoas despreparadas para nos atender nos caixas.
É gente que não sabe fazer contas aritméticas básicas (contas de somar e subtrair),
que não sabem falar direito ou minimamente se expressar sem erros;
E que, pelo grau de instrução que aparentam ter (ou falta de instrução melhor dizendo) não parecem ter a menor condição de operar equipamentos eletrônicos por mais simples que sejam. Fora que fazem “aquela cara” que estão se divertindo com nossas dificuldades quando o nosso cartão “não passa”.
Acho que as empresas deviam se preocupar em fornecer um mínimo de treinamento para quem vai operar numa função de caixa. A impressão que fica é a de que esse mau atendimento é meio que uma “vingança” dos funcionários mal-remunerados.
Ao invés de achar graça, acabo ficando muito irritado e solidário com as pobres vítimas.
Toda vez que vou abastecer o carro num posto de gasolina (conhecido ou que aparente boa qualidade) a primeira coisa que faço é perguntar se o sistema de pagamento está funcionando, para não me aborrecer depois.
Me desculpem, mas sempre constatei que no Brasil as “pessoas mais simples do povo” se fazem de bobas e ignorantes para se eximirem de suas responsabilidades e se divertirem às nossas custas.
O que aconteceu com aquela moça, quanto ao Cartão, poderia ter acontecido com qualquer um de nós — e olha que o Pão de Açúcar, teoricamente, seria um estabelecimento que oferece bom atendimento, inclusive cobrando preços compatíveis e razoavelmente mais caros por isso.
Lamentável. Abaixo os “DEVIDISÊS” da vida!
Situação hilária - não para a Gordinha, claro, num texto irretocável. Uma leitura prá lá de prazerosa!
Hahaha, "a vida é um filme americano", nunca vou me esquecer disso, rs. Gordos só fazem gordices (me incluo nessa).
"Se esta história fosse um filme francês [...] Felizmente, a vida é um filme americano, e a Gordinha, ciente das limitações do público, explicou seus atos."
Como não amar? : )
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