20 de julho de 2010

Quase Quasímodo

Aconteceu ontem cedo, logo no começo da minha ginástica matinal.

Antes, cabe falar um pouco sobre os exercícios que pratico toda manhã. Depois que eu passei dos 30, comecei a ficar preocupado com minha saúde e minha forma física. Assim, já faz alguns anos que, toda manhã, faço (religiosamente) seis séries de alongamentos, que consistem em, ainda de pé, tocar os pés com os dedos da mão.

Cada série é composta de um (01) exercício que dura em média três (03) segundos, e ocorre da seguinte forma:

1ª – Recolher o jornal do Besta-Fera

2ª – Colocar jornal limpo para o Besta-Fera

3ª – Apanhar a tigela de água do Besta-Fera

4ª – Devolver a tigela de água do Besta-Fera (cheia)

5ª – Apanhar a tigela de comida do Besta-Fera

6ª – Devolver a tigela de comida do Besta-Fera (cheia)

Às vezes, até mesmo arrisco algumas flexões (normalmente para procurar o tênis embaixo da cama), ou alguns minutos de corrida, quando descubro que estou atrasado e minhas chaves aproveitam que não estou olhando e correm para dentro da geladeira ou se enfiam embaixo de uma revista, e ficam ali segurando a risada.

Aliás, isso acontece com muita frequência. Manhã sim, manhã também, eu perco algo em casa. E aí começa a briga: reviro almofadas, vasculho jornal, olho os armários, amaldiçôo meu destino ingrato, xingo todos os móveis, até achar o objeto em questão – que normalmente estava no meu bolso.

Uma vez, cheguei até mesmo a apelar para um último recurso. Olhei ao redor e como não havia ninguém por perto, apelei para São Longuinho e dei os tais três pulinhos. Mal havia terminado o terceiro pulinho quando ouvi uma gravação, que vinha dos céus.

Oi, aqui é São Longuinho, eu não posso atender no momento. Após o sinal, deixe seu nome, telefone e descreva o objeto perdido que eu retornarei assim que possível.

Estou esperando até hoje ele retornar minha ligação. Não duvido nada que ele tenha anotado meus dados e, logo em seguida, perdido o pedaço de papel na escrivaninha (santo de casa não faz milagre mode: on).

Mas estou me distraindo. Estava falando da minha ginástica de hoje de manhã. Estava começando o primeiro alongamento do dia quando, no momento em que abaixei para pegar o jornal usado pelo Besta-fera, entrei numa espécie de fenda temporal. Quando me abaixei, estava com 34 anos; e, ao começar a me levantar, tinha quase 80 anos de idade. Quer dizer, ao menos minha coluna estava com esta idade.

Na hora, senti apenas uma pontada, como se minha coluna tivesse sido perfurada.

Tive a sensação de me tornar a vítima do jogo Detetive – crianças passariam a tarde coletando pistas para descobrir que o Rob Gordon foi assassinado, com o punhal, na varanda, pelo Coronel Mostarda. Uma luz brilhante e meio avermelhada surgiu na minha frente, como se eu estivesse sendo baleado impiedosamente num Medal of Honor da vida.

Se eu fosse um personagem shakesperiano, teria suspirado e dito algo como “sinto a vida se esvair do meu corpo” ou “Sórdida traição! Golpearam-me pelas costas!”. Mas eu sou apenas um Rob Gordon. Ou seja, tudo o que consegui fazer foi largar o jornal e, enquanto as merdas do cachorro se espalhavam pelo chão, berrar:

– Aaaaaauuuuuu!

Besta-Fera, com um ar levemente interessado ao meu lado, disse “esta frase não é minha?” com os olhos.

Ignorei o comentário dele, mesmo porque eu não estava em posição de responder. Na verdade, eu não estava em posição de nada. Estava justamente na humilhante pose conhecida como “aquela em que Napoleão perdeu a guerra”: meio encurvado na varanda, com a cabeça ainda virada para baixo.

Fiquei assim alguns segundos até recuperar o fôlego – tenho certeza de que, assim como nas revistas em quadrinhos da Turma da Mônica, pequenos raios vermelhos de dor saíam das minhas costas. Não sabia o que era pior: minhas costas terem travado ou minhas costas terem travado comigo ali na varanda, rodeado por excrementos de todos os tipos.

Porque é evidente que se um dia minhas costas travassem e eu ficasse paralisado, isso não aconteceria num campo de tulipas ou num lago com ninfas gregas se banhando, mas sim no meio da merda do cachorro, ali na varanda, à vista do bairro.

Estranhamente, uma sensação de paz me atingiu. Subitamente, todos os meus problemas estavam resolvidos. Quer dizer, ao menos eles pareciam insignificantes. Contas para pagar? Prazos no trabalho? Nada disso tinha importância. Todos os meus problemas haviam se condensado em apenas um: minha coluna. E se eu resolvesse o problema em questão – minhas costas, ao menos o suficiente para me afastar daquele depósito de dejetos caninos, minha vida seria perfeita.

Assim, respirei fundo e comecei a analisar minhas possibilidades. Ou tentava me levantar de uma vez só, rezando para um estralo milagroso resolver tudo no processo, ou ia tentando me endireitar aos poucos, vendo até onde conseguia.

Claro que decidir pelo caminho mais rápido (ou seja, tentar endireitar a coluna de uma vez só) poderia aumentar o estrago. Aliás, como eu sou eu, capaz do movimento quebrar minha coluna e eu cair tetraplégico no meio dos cocôs da Besta-Fera. A história chegaria aos jornais e, com o tempo iriam fazer um filme sobre mim, igual aquele do Javier Bardem, mas com o nome de Mar de Merda Adentro.

Mesmo assim, eu estava atrasado para o trabalho. E nada pode deter o jornalismo brasileiro. Respirei fundo, criei coragem e me levantei de uma vez só:

– Aaaaaauuuuuu!

Vitória!

Ou não.

Consegui me erguer, na verdade, uns cinco centímetros, antes de ter a sensação de que a Aliança Rebelde, certa de que minhas costas eram a Estrela da Morte, decidissem atacá-la com força total.

Mas estes cinco centímetros foram suficientes para fazer com que agora eu olhasse a rua, e não os cocôs. Já era algo.

Contudo, eu não podia permanecer ali, era ingrato demais. Assim, tomando cuidado para mexer na coluna o mínimo possível, dei meia volta e me arrastei pela sala, caminhando com a elegância e o suingue do RoboCop. Meu destino? O sofá.

Depois de muita luta, cheguei até ele, fiz uma baliza na sala, e me sentei na beirada. Respirei fundo, e criei coragem para me deitar de lado. Aos poucos, fui descendo, tentando me deitar (“Ah... Ai... Ah... Ai...”), até que por fim consegui (“Aaaaaahhhhhh”).

Espero que ninguém tenha ouvido isso, ou vão achar que eu estava fazendo sacanagem logo no meio da manhã. E, pior, com o cachorro. Corcunda e zoófilo. Não eram nem 10 horas da manhã e, mesmo sem conseguir me mover, eu caminhava a passos largos para me tornar o freak do prédio.

Mas, deitado ali, a dor se aliviou um pouco e comecei a pensar nas minhas alternativas. Eu não poderia trabalhar assim. Eu mal havia conseguido chegar ao sofá, jamais conseguiria ir até a redação. Minha única alternativa era colocar as costas no lugar.

Mas, e a coragem para isso?

Assim, decidi que passaria o resto da vida corcunda. Aliás, esta seria minha nova profissão: corcunda. Seria o meu novo estilo de vida. Mudaria meu nome para Igor, e iria ao apartamento da minha antiga síndica pedir um emprego. Tenho certeza que ela faz experimentos com animais e crianças, evidente que ela teria vaga para um estagiário ou para um corcunda de recados.

Meu destino, então, estava traçado: passaria o resto da minha vida me arrastando pelo prédio, carregando um castiçal envelhecido com velas já meio queimadas, cumprindo suas ordens funestas. A única exigência que eu faria seria poder usar a expressão “Yes, master” o tempo todo. Nada de ticket ou vale-transporte, somente o “Yes, master”. Algo como:

– IGOR, VÁ ATÉ A GARAGEM E TRAGA TRÊS CÉREBROS E ÁCIDO.

– Yes, master.

– NA VOLTA, PASSE NO TERCEIRO ANDAR E SEQUESTRE UMA CRIANÇA.

– Yes, master.

Salário? Não preciso, o mestre me alimenta com suas sobras. Casa? Eu poderia muito bem ir até aquela igreja na esquina da Cardeal com a Heinrque Schaumann e pedir asilo. Moraria no sino. Assim, eu continuaria morando perto do trabalho, algo que deve ser bastante importante quando você é um corcunda. O problema era o nome. Ao invés do Corcunda de Notre Dame, eu seria o Corcunda da Igreja do Calvário. Ô fase.

Mas foi aí que percebi uma coisa. Dificilmente meu mestre me deixaria praticar meus hobbies. E eu não sou nada sem eles.

– Master, eu queria ir à banca comprar um Homem-Aranha.

E tome chicotada.

– Master, eu queria jogar um pouco de Harry Potter Lego no Wii.

E tome chicotada.

– Master, eu queria...

E tome chicotada.

– Mas, Master...

E tome chicotada.

E eu não sou nada sem meus hobbies. Assim, minha carreira de corcunda-assistente-de-cientista-maluco se encerrou antes mesmo de começar.

Só me restava, então, voltar ao jornalismo. Assim, respirei fundo, relaxei o máximo possível e me deitei de barriga para cima, gemendo. Meu plano era ficar ali alguns minutos, até criar coragem e me esticar, para ver o que acontecia.

Não deu tempo. Besta-Fera, me vendo deitado ali, de barriga para cima, decolou do chão da sala, flutuou no ar e aterrissou.

No meu peito.

Ploc!

–AAAAAAAAAAAAUUUUUUUUUUUUUU!!!!!! FILHO DA PUTA!

Ainda estava ganindo e me contorcendo de dor no sofá, quando me lembrei do barulho que ouvi antes do meu berro.

“Ploc”.

Que “ploc” foi esse? Será que algo caiu no chão? Sentei-me rapidamente no sofá e olhei ao... Sentei-me no sofá? Rapidamente?

Eu estava curado! Besta-fera havia me curado!

De alguma forma, ele havia colocado minha coluna no lugar. Levantei-me e (satisfeito com o fato de que eu havia me tornado novamente um homo erectus) comecei a andar pela casa, testando, aos poucos, minha coluna. Nada de dor. Eu estava definitivamente curado.

Imediatamente, aqueles 20% do meu cérebro que eu não controlo, ao perceberem que eu tenho um cachorro com poderes curativos (um mutante, talvez?), começaram a bolar modos de capitalizar em cima disso. Talvez uma aparição na TV, uma excursão por cidades do interior. Quem sabe até mesmo o início de uma seita chamada Devotos de Besta-Fera?

Mas eu estava atrasado. Passei a mão na cabeça dele, agradecendo (ele me devolveu um olhar de “me deve um almoço, viu?”) e, com cuidado na hora de abaixar, terminei de trocar o jornal do cachorro, dei comida e água e ele e fui atrás das minhas coisas.

Carteira, celular...

Que inferno! Cadê as minhas chaves?

21 comentários:

Mariana Paschoal disse...

Hahahahahahahahahaahahhaahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaa...Mar de Merda Adentro...Hahahahaahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha...(Sério, tô sem fôlego!)

Charlie Brown disse...

Igor e seu magnífico cão quiroprático. Hahahahahaha
Corcunda, mas hilário.

Ana Savini disse...

Acho que você bateu um recorde de referências nesse post. Sensacional! hahahahahaha
E o Besta-Fera é foda! \o/
O que seria de você sem ele...

Natalia Máximo disse...

Ótimo! Só acho que sua pior ilusão é de que o Besta-Fera iria permitir que você ganhasse qualquer coisa às custas dele! Até se você tivesse o triplo de poderes que ele tem, ele ainda te dominaria (modo sinceridade doentia: on)

Fábio Megale disse...

Você tinha uma carreira promissora como corcunda, Rob. Até ouvi dizer que alguns vilões ficaram interessados em te contratar como lacaio. Afinal, com sua sorte, é perfeito pra função de assistente azarado.

Mas que bom que o Besta-Fera te salvou. Afinal, quem consegue sobreviver sem Wii, Harry Potter e o Cabeça-de-Teia, né?

Bia Nascimento disse...

Agradeço ao Rob Gordon pelas gargalhadas que dei na frente da rabugenta do RH da empresa que é doida pra queimar o filme das pessoas pro patrão.

Fagner Franco disse...

Genial. Foda. Coloquei algumas frases no ctrl+c, que foram sendo trocadas e trocadas e trocadas de novo. Desisto. Foda.
Sem falar que meu chefe deve pedir para bloquear este site, depois de me ver passando mal de rir.
Obrigado.

Anônimo disse...

Obrigada por me arrancar alguns risos. Só não morri de rir porque minha taxa de tristeza e baixo-astral tá acima da média,então o fato de que você me fez sorrir hoje realmente é digna de nota.
Valeu,Rob. Serião.

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Pago 500 reais por uma cura milagrosa de Besta-fera!!!

Bender disse...

Voto por uma versão redux do post, só que do ponto de vista da Besta-Fera !

Simone Miletic disse...

Eu sou totalmente a favor de exercícios. Pratico:

Levantamento de Peso (carregar a Carol)
Corrida (correr atrás da Carol que não quer escovar os dentes ou o cabelo)
Boxe (fazer a Carol ficar pronta para a escola)
Agachamento (recolher os brinquedos que a Carol deixou pelo chão)

Amanda disse...

RI MUITO, HAHAHAHA.
Ótimo texto, divertidíssimo! Sou nova aqui no seu blog então...ser curado por um cachorro chamado Besta-Fera é, no mínimo, irônico né?
HAHAHAHAHA


ABS

Hong Kong Fu disse...

Na verdade, o Besta-Fera jogou um Feitiço em você porque anda meio chateado por você não dar muita atenção pra ele ultimamente.
Quando ele achou que já tinha te punido o bastante, te libertou.

Lucas Casasco disse...

Huashsauhsu. Besta-Fera o cão mágico...
Medonho isso.

Leandro disse...

Cara, fazia tempo que eu não ria tanto por aqui... muito bom mesmo!!

Alexandre Greghi disse...

"Sangue e enxofre.... Mr. KUKOL!!!!"
HUAUHAHUAUHA

João disse...

Melhor história sobre cães quiropratas do ano (considero isso um baita elogio, sério)

Bel Lucyk disse...

Eu já pensei em várias formas de ganhar dinheiro com o Zeca, que agora abre geladeiras. Mas não consegui imaginar nenhuma!
Besta-Fera Quiroprático vai ser muito mais rentável! eheheheh

Otavio Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Otavio Oliveira disse...

Na verdade foi tudo um plano do Frollo (tinha confundido o nome dele no comentario anterior), a.k.a Besta-Fera, pra tirar vc do caminho da esmeralda

Thiago Dalleck disse...

Puta que o pariu, isso dava um filme de todos os gêneros possíveis. Drama, humor, sacanagem, ação e religião. Queria muito dirigir a cena em que supostamente Rob Gordon apareceria tetraplégico, na posição fetal em meio à bosta. Épico.