(leia a parte anterior desta série aqui)
Sábado, perto da hora do almoço, Avenida Paulista. Estou saindo de uma banca de jornal quando sou abordado por um senhor de aproximadamente 50 anos, razoavelmente bem vestido. Usava calça social cinza, malha de lã combinando e (apesar do cabelo grisalho ser bastante ralo) um rabo de cavalo minúsculo, que desafiava insistentemente sua calvície.
Ele sorriu, mostrando que sua arcada dentária inferior deveria ser treinada pelo Parreira, já que não tinha ninguém jogando na frente.
– Você mora por aqui?
– Não, mas conheço a região, respondi, certo de que ele estava perdido e queria alguma informação.
– Você conhece algum restaurante ou bar aqui perto que esteja precisando de algum ajudante?
Ok, não é o tipo de questão que se ouve ao ser abordado na rua, especialmente quando você está esperando algo como “onde fica o metrô mais próximo?” ou “para que lado é a Brigadeiro?”.
Parei e pensei sobre a pergunta, procurando alguma pegadinha. Não encontrei nada. Olhei ao redor, esperando encontrar uma câmera escondida. Nada. Olhei para cima e resmunguei “porque é sempre comigo?”.
Mas pensei no blog e resolvi continuar com o papo.
– Olhe, realmente não conheço. Sinto muito.
– Tem certeza?
Evidente que tenho. Toda vez que eu entro num boteco, eu pergunto se o cara tem Coca, e não se o staff dele está adequado ou se ele tem planos de expansão. Mas achei melhor não entrar nestes detalhes.
– Tenho.
– Ah, mas você tem cara de quem costuma ir a barzinhos! Ao menos, isso eu acertei?
– Sim.
– Que ótimo! Eu detestaria abordar a pessoa errada na rua!
Pensei em explicar a ele que “fique tranqüilo, você abordou a pessoa certa na rua, já que você é louco e eu sou eu”, mas mudei de idéia. Complexo demais, e eu estava com pressa.
– Porque sabe o que acontece?
Ah, meu Deus. Lá vem. Antes que eu pudesse pedir para ele adiantar a conversa até a parte em que ele me pede algo, ele continuou:
– Eu sou de Santa Catarina. Sou arquiteto e professor. E vim para São Paulo trabalhar com uma moça, mas ela viajou e só volta na quinta-feira.
Comecei a sentir o cheiro de golpe no ar.
– Ah, mas logo a quinta-feira chega. Você vai ver, passa rápido, respondi.
– Então, mas meu dinheiro acabou e eu e minha esposa fomos expulsos do hotel em que estávamos. Aquele Fórmula 1, sabe? Porque eles não têm mais chave, eles têm um cartão magnético para abrir a porta do quarto, e o nosso não funciona mais.
Os meus neurônios responsáveis pelo sarcasmo começaram a sugerir que eu dissesse a ele para entrar no metrô e tentar recarregar o cartão do hotel como se fosse um Bilhete Único. Joguei um pano preto em cima deles, fechei a porta da sala em que eles trabalham e passei a chave, tentando me controlar.
– Que coisa.
Cá entre nós, não havia muito mais o que dizer.
– E agora eu estou na rua, com minha esposa. Ela pesa 140 kg. Estamos passando fome.
Espere. 140 kg e passando fome? Se existisse um sindicato de pessoas-que-passam-fome, eu denunciaria esse sujeito na mesma hora.
– E agora eu preciso sobreviver até quinta-feira.
– Você já tentou em bancas de jornal?
Foi uma tacada de mestre. Afinal, estávamos ao lado de uma banca. Se ele comprasse a idéia, isso faria com que ele entrasse ali atrás de emprego, me dando os segundos preciosos que eu precisava para fugir. Mas não deu certo:
– Não! Donos de bancas de jornal fazem parte de uma máfia!
Faz sentido. Eu sempre fui vítima da extorsão dos donos de bancas de jornal. Metade do dinheiro que ganhei na vida está na mão deles, devido ao meu maldito vício por quadrinhos. Ponto para ele.
Antes que eu pudesse pensar em outra alternativa (“olha, tem um açougue ali na Brigadeiro, e nunca vi mais de dois funcionários, talvez eles precisem de um ajudante”) ele foi direto ao ponto:
– Você não está precisando de algum trabalho? Eu posso fazer algo para você, entregar algum documento, em troca de um almoço.
A idéia foi tentadora. Imediatamente pensei nas dez revistas que eu faço, e considerei a hipótese de contratar esse sujeito como frila. A cada três textos, um almoço. Mas seria difícil explicar isso para o meu chefe, especialmente pelo fato de que esse cara provavelmente não emitiria nota fiscal.
Foi aí que meu cérebro começou a preparar uma daquelas armadilhas. Pensei na enorme e eterna zona que é o meu apartamento, e tive o impulso de contratar o sujeito como mordomo. Ele já era meio grisalho mesmo, bastava um banho de loja para se tornar um Anthony Hopkins. E, quanto à sua deficiência dentária, bastava ele não abrir a boca quando eu tivesse convidados em casa.
Sacudi a cabeça e voltei à realidade.
– Olhe, eu realmente não preciso de nada. Obrigado.
– Você não quer ir almoçar comigo em alguma padaria?
Certo. Esse foi “me paga um almoço?” mais estranho que eu recebi. Por alguns instantes, cheguei a considerar a hipótese de que eu estava sendo cantado, mas o olhar do velho deixou claro que ele não tinha segundas intenções. Ele queria mesmo era um almoço.
Tive o impulso de perguntar algo como “bom, você está convidando, então você paga, certo?”, mas isso provavelmente iria fazer o papo se arrastar por horas. Ele insistiu.
– Quer ir?
– Infelizmente eu já tenho compromisso. Mas agradeço o convite.
– É que eu queria almoçar.
E, assim, após cinco minutos de papo, chegamos aonde ele queria. Num almoço. Abri a carteira e puxei uma moeda de R$ 1,00. Mas, antes que eu a entregasse, pensei no fato de que essa foi o pedido de esmola mais elaborado que eu vi na vida (sejamos sinceros, o sujeito me deu todo o background, e, assim como o George Lucas, praticamente criou uma trilogia só para explicar porque ele queria um almoço) e peguei todas as minhas moedas. Deu quase R$ 2,00.
Entreguei para ele e disse:
– Olhe, vai comer algo, e quem sabe você dá sorte a tarde. Eu adoraria acompanhar você, mas, infelizmente, eu tenho outro compromisso.
Ele olhou as moedas e viu que não dava para comer muita coisa. Mas, convenhamos: por mais que sua história tenha sido bem trabalhada, ainda assim era uma esmola. E esmolas, para mim, obedecem a limites de uma nota de R$ 1,00, ou moedas. Mais que isso, já é empréstimo.
Ele olhou para mim. Eu me esforcei para assumir a expressão “você não vai conseguir mais que isso”. Mesmo porque, só faltava ele ficar insatisfeito e colocar a esposa na conversa de novo. Eu me recuso a dar esmola para uma pessoa cuja massa é duas vezes maior que a minha.
Aparentemente, ele entendeu o recado e foi embora com as moedas.
Mas bastou eu andar uns dois metros para alguns dos meus neurônios do sarcasmo – que, a esta altura, já haviam conseguido arrombar a fechadura da porta – correrem para o meu ouvido e colocarem as cabeças para fora da minha orelha, e gritaram:
– Tenta ir até o metrô carregar o bilhete da porta do hotel!
Dei três tapas no meu ouvido e mandei eles calarem a boca. Eles se assustaram e correram de volta para dentro do cérebro. Olhei para trás e o velho estava olhando para mim.
Sorri, sem graça, e fui embora, acelerando o passo. Afinal, tudo o que eu não precisava era que o velho voltasse para pedir meus contatos, com a promessa de me enviar por e-mail um currículo – e pior, fotos dele e da esposa. Ô fase, malditos neurônios.
16 comentários:
muito bom... seu texto flui criando imagens como um filme.. muito bom mesmo
parabéns, abraço
As pessoas que pedem grana n arua estão ficando cada vez mais especialistas. Eu não hesitaria em colocar um deles no lugar da Glória Peres, por exemplo. "Pedindo nas Índias"?
Tá, piada infame... #parei!
Se ele fosse comer naquele Bom Prato, dava pra quase dois almoços!
Lá o almoço não é 1 real? Então.
Eu adoro o que o seu cérebro apronta com vc, hahahahah
Tem coisas na vida que só acontecem com o Rob mesmo
Nem me fala da Máfia das bancas de jornal... tem idéia de quanto ficou na mão da Bete?
O diploma do filho dela fomos nós que pagamos.
"Que ótimo! Eu detestaria abordar a pessoa errada na rua!"
NOT
ohahoaoha
um dos melhores CdV hem
qualquer comentário seria redundante.
Um puta regime de graça pra esposa e ele reclamando. Quero ver ele achar ruim depois que ela ficar uma semana sem comer e ficar esbelta.
hauhauahua! rachei de rir! muito bom! já encontrei alguns especialistas do tipo pela rua, como um que queria me vender uma impressora quebrada e outro que, detalhadamente, quase me convenceu de que nos conhecíamos.
Imagine que legal seria ele trabalhando no bar, junto com aquele velho mala? =P
Sou um chamariz na rua, mas até hoje só me pediram onde ficavam os lugares... (ainda bem).
"Mas pensei no blog e resolvi continuar com o papo."
Nunca tinha parado pra observar o sacrifício que você tem que fazer para que possamos ter um pouco de alegria em nossos cotidianos.
Obrigada, Rob!
O problema é o blog não é?
Senão vicê evitaria 80% dos seus problemas com a humanidade ^_^
Os outros 20% costumam ser chamados por alguns de Karma :D
Já pensou na possibilidade de na verdade ser o Champ disfarçado?
Só pra criar assunto?
Rob, com certeza, essas coisas só acontecem com você. Nunca na minha vida alguém me pararia no meio da rua para me contar a história de que foi expulso do hotel.
Mas eu fiquei com pena do cara, ainda mais pela falta de dentes. Eu teria dado uns cinco reais e uma consulta grátis.
"– Não! Donos de bancas de jornal fazem parte de uma máfia!
Faz sentido. Eu sempre fui vítima da extorsão dos donos de bancas de jornal. Metade do dinheiro que ganhei na vida está na mão deles, devido ao meu maldito vício por quadrinhos. Ponto para ele."
Tb têm uma grande parte do meu dinheiro...
Bancas também me roubam e ficar sem dinheiro me emagrece. a mulher dele devia tentar.. ;D
Achei que era o cara grisalho que sai na Veja São Paulo da semana passada com o tema: Profissão mendigo. Na área da Paulista por aí também, tem um cara que é corretor de imóveis e fica pedindo esmola. O cara tira 100 reais por dia...Não é a toa que pedir esmola virou profissão...E lógico que algum dele encontraria você! Você é sortudo!
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