(Apocalypse Now, EUA, 1979)
Direção: Francis Ford Coppola
Elenco: Martin Sheen, Marlon Brando, Robert Duvall, Dennis Hopper
“Nos 30 anos em que a Itália viveu sob o domínio dos Borgia ocorreram guerras, terror, assassinatos e derramamento de sangue, mas também surgiram Michelangelo, Leonardo da Vinci e todo o Renascimento. Já na Suíça eles viveram somente sob o amor fraternal. Foram 500 anos de democracia e paz. E o que eles criaram? O relógio-cuco”.
A frase disparada por Orson Welles em O Terceiro Homem poderia ser aplicada também a Hollywood dos anos 70. Na época que os Estados Unidos viveram o fim do sonho americano devido a fatos como Watergate, Guerra do Vietnã, corrupção policial e explosão da violência e do tráfico nas grandes cidades, surgiu uma nova geração de cineastas que revolucionou não apenas o modo de se fazer filmes, mas sobre o que esses filmes abordariam. Nada mais de musicais inocentes, romances açucarados e westerns colonizadores. O cinema americano ganhou tons realistas e levou a realidade do país para as telas dos cinemas, criticando toda e qualquer instituição. Surgia, assim, um dos períodos mais criativos de toda a história de Hollywood.
Um dos maiores expoentes dessa geração, Francis Ford Coppola já havia dado provas de seu talento no (injustamente pouco lembrado) A Conversação e principalmente nos dois O Poderoso Chefão (onde coloca a máfia como um dos alicerces sociais dos Estados Unidos). Sua saga sobre o crime organizado o colocou no panteão dos deuses em Hollywood. Com 35 anos de idade e um Oscar de Melhor Diretor em casa, Coppola poderia ter escolhido qualquer projeto que quisesse. Porém, ao anunciar que iria para as Filipinas dirigir uma adaptação do romance Coração das Trevas de Joseph Conrad – transpondo a ação para a Guerra do Vietnã – sequer imaginava que se envolveria com um dos projetos mais complicados da história, que quase acabaria com sua carreira (e com sua sanidade). Mas também não imaginava que iria criar uma das maiores obras-primas da história.
“Meu filme não é sobre a Guerra do Vietnã. Meu filme é a Guerra do Vietnã”, declarou o diretor quando Apocalypse Now foi exibido, pela primeira vez, no Festival de Cannes. Não era exagero. As filmagens duraram aproximadamente 16 meses e quase levaram o cineasta à loucura, com problemas atrás de problemas. Martin Sheen, que passou 90% do tempo bêbado, sofreu um enfarto fulminante (e chegou a ser declarado clinicamente morto num hospital local); Dennis Hopper, provavelmente drogado durante toda a filmagem, recusava-se a tomar banho para melhor interpretar seu personagem, um fotógrafo que estava na selva há meses; Marlon Brando – que não havia lido o livro ou o roteiro – estava acima do peso e assumiu uma postura totalmente incomunicável nas filmagens. Havia, também, as questões “ambientais”: o governo das Filipinas emprestou helicópteros para as filmagens, mas regularmente requisitava as aeronaves para bombardear focos de guerrilha detectados a poucos quilômetros de onde estava a equipe; e a produção quase foi cancelada quando, após poucas semanas de filmagens, um tufão destruiu todos os sets.
Tudo convergia para um dos maiores fracassos da história – isso, claro, se o filme realmente chegasse a ficar pronto, algo que muita gente duvidava. Porém, o caos das filmagens acabou sendo o grande trunfo do filme. A jornada do Capitão Willard (Sheen), que recebe a missão de exterminar certo Coronel Kurtz (Brando), herói de guerra que aparentemente enlouqueceu e fugiu para o Camboja, onde vive em meio a nativos que o adoram como um deus, é um mergulho no coração do inferno que foi a guerra do Vietnã, e a produção conturbada apenas contribuiu para a obra ganhar ares de pesadelo, com pitadas de loucura em praticamente todas suas passagens.
A insanidade da trama e do universo em que ela se situa está presente em várias camadas do filme, que, curiosamente, segue uma narrativa totalmente linear, acompanhando o barco no qual Willard navega (ao lado de um grupo de soldados) rio acima, ao encontro de Kurtz. Há, antes de mais nada, a loucura do ambiente. As florestas são formadas por vegetação espessa e impenetrável, repleta de árvores com dezenas de metros de altura, numa espécie de desafio darwiniano para os personagens, sempre mostrados de forma indefesa e desprotegida dentro desse cenário. Há a loucura individual, visível tanto no comportamento dos soldados que viajam ao lado de Willard, que não compreendem qual papel desempenham ali (e não se importam muito com isso), quanto no comportamento de diversos personagens que cruzam o caminho do capitão, como o coronel surfista interpretado por Robert Duvall ou o fotógrafo vivido por Dennis Hopper. E, por fim, há a loucura do conflito em si, que rende algumas das cenas mais impactantes da obra, como a emblemática seqüência do ataque de helicópteros a uma vila, ao som de A Cavalgada das Valquírias, de Wagner; as cenas de combate ambientadas na ponte Du-Long, que lembram mais um misto de ópera com pesadelo que um mero filme de guerra, ou mesmo o show das coelhinhas da Playboy numa base militar próxima ao front, que deixa clara a frágil imbecilidade americana em relação ao conflito.

Todas essas loucuras, em suas diversas formas e intensidades, infestam o Capitão Willard. Ao contrário do personagem central do livro de Joseph Conrad – um marinheiro que vive alheio à civilização e descobre o horror do mundo em que vive apenas quando encontra o Kurtz original –, o militar interpretado por Martin Sheen (acima), está em contato com a degradação da humanidade desde o início do filme, apesar de relutar em aceitar totalmente essa idéia. Impregnado pelo absurdo da guerra até a alma, vive em intenso conflito entre o que sempre acreditou e o que viu nas selvas do Vietnã, algo explicitado logo em sua primeira cena, quando totalmente bêbado, assume posição de combate e esmurra um espelho, cortando sua mão e caindo no chão numa espécie de catarse.
Em poucos minutos, Coppola definiu o personagem central: um soldado que provavelmente viajou para o Vietnã acreditando estar agindo corretamente e que se torna extremamente perturbado ao entrar em contato com a boçalidade de uma guerra protagonizada por meninos de 17 anos e regada a drogas e rock’n’roll. A guerra de Coppola não é banalizada. Ela é imbecilizada da forma mais violenta possível e Willard é totalmente afetado por isso. Ele sabe que os Estados Unidos perderão a guerra, e que ao fim da guerra, os soldados americanos não encontraram o lar que tanto sentem falta, pois ele já retornou para casa uma vez, e sabe que esse suposto lar “não existe mais”. Em seu exterior, Willard continua sendo um soldado, pois provavelmente não sabe agir de outra forma, chegando a assassinar friamente uma mulher ferida, pois ela poderia atrasar sua missão. Internamente, porém, é um homem afetado pelo ambiente em que está inserido, tentando ao menos compreendê-lo de alguma forma.
E, claro, há a loucura de Kurtz. Enquanto Willard tenta compreender a realidade que o cerca, Kurtz compreendeu. E “enlouqueceu” (pelo menos de acordo com os militares americanos). À primeira vista, Kurtz seria a própria Guerra do Vietnã: desprovida de sentido, violenta e ambígua. Numa análise mais cuidadosa, fica claro, porém, que ele é uma metáfora do idealismo americano. Herói de guerra e militar de carreira, o personagem de Brando mergulhou de tal forma na guerra que não consegue mais enxergá-lo por outro prisma que não a loucura.
Sua cena mais famosa, onde ele discursa para Willard sobre o horror da guerra (cuja iluminação ilumina apenas as faces dos dois personagens, mostrando que ambos estão prestes a serem engolidos pelas trevas) deixa claro que ele perdeu totalmente o contato com a civilização e está mergulhado na amoralidade até o pescoço. Kurtz coloca o “terror moral” e o “horror” como elementos essenciais para que a civilização seja preservada. Ele não está louco, mas entendeu a imbecilidade não apenas do conflito em si, mas da política externa norte-americana, pintada de cores hipócritas e amorais, resolvendo não fazer parte desse esquema, criando o seu próprio mundo. O pecado do coronel não foi enlouquecer, mas questionar o sistema no qual foi criado. Justamente por isso ele precisa ser eliminado.
2 comentários:
Rob, eu ADORO essse filme.
Acho genial o modo como tudo foi mostrado, como ninguém sabia de verdade O QUE ERA a guerra da qual eles faziam parte. Da insanidade dos soldados e das cenas de caos, putaria, álcool e drogas. Soldados sem capitão, atirando em quem cruzasse o caminho deles, ou ainda, que simplesmente contrariasse as suas vontades. Um Woodstock às avessas. Sem contar que a trilha sonora é do cacete.
"I love the smell of napalm in the morning. You know, one time we had a hill bombed, for 12 hours. When it was all over, I walked up. We didn't find one of 'em, not one stinkin' dink body. The smell, you know that gasoline smell, the whole hill. Smelled like... victory. Someday this war's gonna end..."
O verdadeiro filme-balada mesmo.
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