14 de setembro de 2006

Hulk na Encruzilhada... E Jaime no Boteco.

Quem gosta de quadrinhos e tem por volta de 30 anos deve lembrar da saga do Hulk na Encruzilhada. Isso foi publicado aqui no Brasil (acho que) por volta de 88 ou 89, ainda no tempo dos formatinhos. Enfim, a história era um tesão: o Hulk, totalmente selvagem e irracional, era exilado da Terra pelo Dr. Estranho e vai parar na tal Encruzilhada, que era um portal que ligava diversas dimensões. Em cada história da saga, ele entrava numa dimensão diferente, tentando achar o caminho de volta. Ou seja, literalmente, você não sabia o que esperar a cada capítulo.

Exatamente como o boteco aqui da frente.

Cada vez que eu entro ali, me sinto como o Hulk. Não sei que tipo de seres vou encontrar ali; não sei como serei tratado no local; não sei se vou sair vivo dali. A única coisa que eu tenho certeza é de que, caso eu seja atendido, eu serei mal atendido. O boteco em questão (que não é sujo como um boteco deveria ser, mas também não é limpo como a lanchonete que os donos acreditam que aquilo seja) é um mundo complexo, um ecossistema fechado, que reage mal à presença de estranhos. É um micro universo formado pelos seguintes organismos:

O Chapeiro (ou O Killer Beast): deve ser extremamente perigoso, já que passa o dia trancado num cubículo com uma chapa e um fogão. Seu único contato com o mundo exterior se dá por meio de rápidas olhadas que ele arrisca, através da fresta na qual ele entrega os sanduíches. Uma vez, numa dessas olhadas, arrisquei cumprimentá-lo e ele apenas estreitou os olhos antes de sumir novamente. Quando está fazendo Sol (e quando ele acerta no X-Salada, o que é bem difícil), o deixam sair por cinco minutos e fumar um cigarro acorrentado na árvore da calçada.

A Garçonete (ou A Nutricionista): é a única garçonete do universo que escolhe o que os clientes vão comer. Um dia eu cheguei lá morrendo de pressa e pedi uma coxinha. A resposta dela foi categórica: "Não. Ontem você já comeu uma coxinha. Hoje você vai comer o prato do dia, porque faz bem". Tentei argumentar, mas não deu certo. Só funcionou quando eu disse que "ok, eu como o prato, mas vou pagar só uma coxinha". Ela fez cara feia e praticamente jogou a coxinha em mim.

O Garçom (ou a Aberração): se fosse realizado um concurso para definir as pessoas mais escrotas do planeta, ele receberia um prêmio especial do Júri. Saído diretamente da rua de Faça a Coisa Certa, do Spike Lee, ele se acha a coisa mais malandra do mundo. Chama toda mulher de "gata" e todo homem de "bródi". Quando você pergunta o que tem para comer hoje, ele responde como "o misto quente tá bem lôco". A última vez que o vi, ele estava deitado na calçada do boteco, sem camisa, tomando Sol. E eu ali, no balcão, esperando para ser atendido.

O Regente (ou o Não Tem): é o mais gente boa do lugar, mas, infelizmente, ele É do lugar. Eu acredito que ele seja sócio, mas minoritário, porque somente tem acesso a uma das portas da geladeira que fica sob o balcão. Qualquer coisa que você peça a ele (seja uma Coca, seja um Marlboro, seja um chocolate) ele abre a porra da portinha, fica 4 minutos olhando na geladeira e volta com cara de decepcionado, dizendo que "Não tem. Acabou."

A Imperatriz (ou a Gorda): é a pior de todas. É a dona do lugar, mas trabalha com a competência de um estagiário. Ela está sempre sentada, batendo papo com alguém e com aquele olhar perdido, fitando o infinito. Manja o De Niro no Tempo de Despertar? É igualzinho, com a diferença que o De Niro foi indicado ao Oscar. Às vezes o bar está totalmente vazio e eu entro. Sento no balcão na frente dela e sou sumariamente ignorado por 5 minutos, que é o tempo que o cérebro dela deve demorar para processar a informação de que há um cliente no lugar. Eu tusso, assobio, finjo que falo no celular. Tudo para chamar a atenção dela. Em vão. O cérebro dela funciona num ritmo próprio e isso precisa ser respeitado. Ao perceber que estou ali, ela vira e faz a pergunta do ano:

– Você vai querer alguma coisa?

Penso em responder que "não, estou apenas admirando a sua beleza", mas sei que a diplomacia num caso desses é essencial. Ainda mais quando você está no território deles.

– Uma Coca.

– Geli-limão? (auto-reference mode on)

– (suspiro) Não.

Aí ela começa a gritar com a Nutricionista (que não está à vista) que "um cliente quer uma Coca!". O chapeiro se assusta com o barulho e espia rapidamente pela fresta antes de se esconder novamente. A Nutricionista surge (sabe-se lá de onde), e vem pegar a Coca, que estava a mais ou menos meio metro da Gorda. Ela me entrega a lata e pega um copo, perguntando:

– Geli-limão?

– Não.

– Por que você não toma um suco ao invés disso?

Mas o acontecimento-símbolo do boteco foi um dia que eu cheguei lá e a Gorda estava sozinha, falando no telefone. Na mesma hora eu me conformei: "Bom, se ela está no telefone, hoje vai demorar mesmo. Hoje vai demorar de verdade". Sentei no balcão e comecei a ouvir a conversa:

– Sim, é esse número mesmo, mas não tem ninguém aqui com esse nome.... Isso, não conheço ninguém com esse nome...

Eu comecei a chamar a atenção dela através de gestos e ela olhou para mim. Hum... Fizemos contato visual. Bom começo. Assim que ela desligar o telefone, o cérebro dela pode começar a trabalhar a idéia de que estou aqui. Ela fez um sinal para eu esperar (provavelmente, um reflexo inconsciente) e continuou no telefone.

– Olha, o número está correto, mas não tem ninguém com esse nome. Sim, sim, o número é esse mesmo... (ela olhou para mim novamente) Olha, você me aguarda só um minuto?

O que? Ela pediu para a pessoa no telefone esperar para me atender? Uau! Ganhei o dia! Ela tira o telefone do ouvido, vira para mim e pergunta, de forma inocente:

– Seu nome é Jaime?

– Olha... Eu só queria uma Coca.

– Mas seu nome é Jaime?

– (suspiro) Não.

Ela pega o telefone novamente.

– Estou falando para você, não tem nenhum Jaime aqui. Tenho certeza de que você anotou o número errado.

Eu suspirei e fiquei ali, quieto, esperando minha Coca.

Em Roma, faça como os romanos. Mesmo que eles sejam imbecis.


5 Frases Mais Ditas pelos Funciónários do Boteco ao Lado

1. Hum?
2. Não tem.
3. Geli-limão?
4. Acabou, bródi (ou gata). Pede outra coisa aí, que eu vejo se tem.
5. Você já foi atendido?

8 comentários:

Unknown disse...

Você já parou pra pensar que aquelas pessoas pdem estar lá apenas por hobby? Sim, porque o atendimento é tão "coisa do outro mundo" e eu não entendo como ainda colocam aquelas mesas na calçada e servem aquela feijoada sem-vergonha.
Que medo da Aberração! Nos últimos tempos ele parecia o Tourist Guy, onde eu ia ele tava lá, pronto pra abrir aquele sorriso patético e soltar um "oi, gata". E eu tendo que fazer cara de simpática.

Anônimo disse...

Vc é uma comédia!
Adorei sua postagem de hoje!
Beijinhos...
Emily

Anônimo disse...

E teve aquele dia que você pagou a conta e saiu a gorda em altos brados: "Ôooooh! Tá faltando dinheiro!". Eram 25 centavos.

Kel Sodré disse...

"É a dona do lugar, mas trabalha com a competência de um estagiário."

Eu, hein. Tá precisando de um(a) estagiário(a) decente.

- lua. disse...

caramba, personagens reais e ao mesmo tempo tão bem construidos, por si próprios e quem sabe um pouquinho por você também.

:)

pessoas alheias ao que esta acontecendo.
trabalham em stand-by, ou no piloto automatico.
será que são desse mundo?

morro de rir com seus textos, e em alguns lá do chronicles, chego a me emocionar também.

=)

Carol disse...

"A Imperatriz (ou a Gorda): é a pior de todas. É a dona do lugar, mas trabalha com a competência de um estagiário."

Ah, que isso! Grande parte dos estagiários que eu conheço é super competente. Isso incluindo eu, claro.

Anônimo disse...

Mas vc há de convir que eles têm a melhor coxinha do Sistema Solar, vai!

Pulo no Escuro disse...

Você devia ter dito que seu nome é Jaime, pelo menos vc ia ter alguém pra conversar com você enquanto esperava o cérebro d'A Gorda assimilar que você estava alí para ser atendido... ou não!