1 de junho de 2014

O Conto do Gatinho Perdido



A primeira vez que eu pulei do muro meu joelho reclamou.

Foi o joelho esquerdo. A hora que eu caí no chão, senti uma pequena pontada nele. Imaginei que tivesse sido a soma de anos e anos jogando futebol na rua quando moleque (meu joelho direito, o que eu usava para chutar, estrala a cada dez minutos) somados ao fato de eu estar com 20 anos e uns 10 quilos a mais de quem fica pulando de muros por aí.

Mas eu precisava descer do muro. Descer do muro é algo que a gente sempre precisa fazer, mais cedo ou mais tarde. Isso vale para política, para relacionamentos, para aquela oferta de emprego, para começar a transformar o sonho em algo real. E valia para mim, que estava literalmente em cima do muro, ignorando meu medo de altura e tentando dar água e ração para um gato.

Descobrimos o gato faz uns dez dias. Grande, bonito, peludo. Fica andando para lá e para cá pelos telhados, sozinho, sem saber direito para onde ir. Minha aposta é que ele se perdeu e não sabe como voltar para casa. Na verdade, eu acho que ele não sabe nem descer dos telhados, apesar de ser um gato. Acho que ele não sabe como chegou ali.

E é por isso que eu fico em cima do muro. Fico colocando dois potes, um com ração e outro com água, para o gato. Às vezes eu faço isso sem ele ver, e ele aparece depois. Às vezes eu faço isso com ele ali; ele fica num canto do telhado me olhando desconfiado, e eu coloco a ração e água falando com ele, tentando mostrar que eu não quero machucá-lo, que eu jamais faria isso.

A única vez que ele chegou perto de mim foi no primeiro dia. A desconfiança foi vencida pela fome. Devorou a ração ali, a meio metro de mim. E eu, cima do muro, estiquei o braço para deixar ele me farejar, mas ele rosnou e esticou a pata com todas as garras de fora, antes de sair correndo. Vou culpar o gato? Se eu estivesse perdido em cima do telhado e um sujeito com a minha cara subisse num muro e tentasse mexer em mim, eu teria enfiado o pé na cara dele.

Então, eu apenas continuei dando ração e água para ele, porque ele sempre volta. Com muita fome, com pouca fome, ele volta. E fica comendo, me olhando de canto, pronto para fugir ao menor sinal de problemas. E eu fico o mais perto que posso, conversando com ele. Não digo que vai tudo acabar bem porque eu não sei se vai. Mas digo a ele o que eu sei: aqui vai ter comida e água, e ninguém aqui vai machucar você. Pode confiar.

Por enquanto, é o que eu posso prometer. E parece que, por enquanto, está de bom tamanho para ele. Por isso eu continuo subindo no muro o dia inteiro. É ridículo. Eu subo usando um banquinho e desço apoiando o pé num vaso antes de pular para o chão. Subo para dar mais ração, para trocar a água, para ver se o gato está ali, se ele foi embora, se ele está bem, se ele está com frio (e torço para ele não estar, porque não vou conseguir fazer nada).

E o joelho continua rangendo. Mas aí eu me lembro de uma frase do meu irmão. Uma vez, ele e um amigo meu estavam discutindo sobre pegar animais na rua. E meu amigo disse que “existem milhões de gatos perdidos, não vai fazer diferença nenhuma cuidar de um deles”. E meu irmão respondeu que “vai fazer diferença para aquele gato”. Meu joelho está rangendo, mas o som da frase do meu irmão é mais alto.

Além disso, não saber voltar para casa é uma das coisas mais doloridas do mundo. Eu sei, pois já me perdi, alguns anos atrás – não em cima de telhados, mas na vida – e foi muito difícil. Só consegui me achar porque teve gente que subiu no muro para falar comigo e mostrar que existe algo na vida além de bordoadas.

Se eu tive essa sorte, por que o gatinho do telhado não pode ter?

11 comentários:

Dianna Montenegro disse...

<3

E é por coisas assim que às vezes, só às vezes, ainda dá uma pontinha de esperança de que a humanidade tenha jeito.

Hally disse...

Pôxa vida, que dó do gato! Mas que bom que ele foi parar em um telhado próximo a gente de bom coração, isso já é um alívio.

Mas diga, se por acaso o bicho se afeiçoar a você, vai adotá-lo?

Fernanda disse...

Sorte ou destino, mas que ele foi parar num dos telhados de pessoas mais compreensivas e legais, ele foi. Tomara que ele desça dai logo e vcs consigam pegar/achar o dono/resolver a vida do gatinho medroso...

Fernanda disse...

Sorte ou destino, mas que ele foi parar num dos telhados de pessoas mais compreensivas e legais, ele foi. Tomara que ele desça dai logo e vcs consigam pegar/achar o dono/resolver a vida do gatinho medroso...

Unknown disse...

Gostei, sim! Lembrei do gatinho que dei pra minha filha, Nátaly. Sozinho, bebezinho magrela, faminto e debaixo da caçamba (daí o apelido de "Caçambito")até o motoqueiro da pizzaria pegar ele no colo e dar um pedacinho de pizza pra ele comer. Aí ele veio pra minha casa, cheirando a cebola e atum! Tá lindo, hoje! :)

Varotto disse...

A grande pergunta é: se você ficar preso lá também, a Ana vai se pendurar no muro para colocar seu potinho de ração e coca-cola?

Daniel disse...

Que delícia de texto!
Que final surpreendente e reconfortante.. Obrigado!

Fagner Franco disse...

Vim aqui pra comentar algo do tipo "caraca, quase chorei aqui", mas aí vi o comentário desse Varotto e perdi o rumo...hahaha

Diana disse...

Caracas, eu estava lendo e pensando sobre uma cachorra que às vezes aparece aqui em casa. Ela come, bebe água, brinca um pouquinho e depois vai embora. Vai e vem quando quer. E faz tempo que não aparece, o que me deixa pensando sobre o que pode ter acontecido à ela.
Mas esse final, me diz mais sobre pessoas, do que animais... sobre aquele lance de identificação e "tocar" que comentamos outro dia.
Enfim... sobre o amigo, que bom que nem todos pensam como ele :)

Igor disse...

Eles nos cativam mesmo envoltos em medo. Mesmo cobertos de incerteza, esses bichinhos sabem ganhar os bons corações.
Que texto gostoso :)

Mas qualquer um te chutaria do telhado. Certeza.

Igor disse...

Eles nos cativam mesmo envoltos em medo. Mesmo cobertos de incerteza, esses bichinhos sabem ganhar os bons corações.
Que texto gostoso :)

Mas qualquer um te chutaria do telhado. Certeza.