7 de abril de 2014

Arkham Street

Já faz alguns dias que ganhamos um novo vizinho aqui em casa.

Ou melhor, já faz algumas noites que ganhamos um novo vizinho. Isso porque se trata de um morcego que se mudou para uma árvore aqui na rua. Parece ser um morcego bem feliz, porque ele passa a maior parte da noite voando em círculos e dando rasantes na rua.

Eu vi a primeira vez uns dias atrás. Fui fumar lá na frente e lá estava ele voando. Voava pela rua à minha frente, passava pela casa do meu vizinho Bruxa do Kurosawa, fazia uma curva e voltava para a árvore por cima da minha cabeça.

Como a probabilidade do morcego se enroscar no meus cabelos se aproxima do zero absoluto (e não por falta de vontade do morcego, mas pela total ausência de matéria-prima para isso na minha cabeça), fiquei fumando ali e observando o morcego, o qual carinhosamente apelidei de Bobônica.

Antes de continuarmos, cabe uma explicação sobre o termo Bobônica.

Quando eu morava com meus pais, nossa rua tinha dois vigias. Eu não sei como eles surgiram. Um dia, não tínhamos vigia nenhum. De repente, tínhamos dois: um de dia e um à noite. Era quase uma espécie de máfia: um dia, alguém que você não nunca tinha visto na vida batia na sua casa cobrando por proteção. Caso você não pagasse, seu carro era roubado (eu vi isso acontecer mais de uma vez), sua casa era assaltada (eu vi isso acontecer uma vez) e sua família inteira era empalada (bem, talvez aqui eu esteja exagerando um pouco, admito).

Enfim, o guarda que vigiava a rua durante o dia entra no Top 5 Criaturas Mais Estranhas que eu encontrei na vida. Ele devia ter uns quarenta anos e estava constantemente naquele estado intermediário entre o “sóbrio” e o “coma alcoólico”. E, no fundo, era eficiente como vigia, mas de uma forma não muito ortodoxa. Ele não espantava os ladrões por ser um guarda (mesmo porque sua única arma era um galho de árvore, ainda com folhas, que ele levava consigo quando fazia a ronda no quarteirão) mas sim por ser mais bandido que qualquer outro ladrão.

Puxando pela memória aqui, me lembro dele ser preso ali na rua pelo menos duas vezes. Talvez três. E em todas elas tinha mulher no meio. Era a empregada da rua do lado, a copeira do escritório do outro quarteirão... O guarda não perdoava nenhuma.

É importante lembrar que o guarda do dia era o melhor dos dois guardas, já que o da noite costumava espantar o tédio da madrugada dando tiros para o alto e gritando que “vou matar bandido e trevéstizi!” (confesso que demorei alguns segundos até entender que “trevéstizi” era o plural de “travesti”).

Enfim, a molecada da rua, claro, estava sempre ali perto dos guardas. E o guarda do dia tinha uma palavra... Não, na verdade era uma espécie de bordão, que ele repetia o tempo inteiro: “bobônica”. Tudo era “bobônica”, “feito a bobônica”, “da bobônica”.

– Vai cair uma chuva da bobônica!

– Essa mulé da outra rua é boa mas é brava, que parece a bobônica!

– Os bandido da bobônica vinheram aqui de madrugada!

E claro que a gente perguntava o que diabos era bobônica. E a resposta mudava constantemente. Na equação da vida do guarda da rua, bobônica era uma variável.

– Bobônica é a féb do rato!

– Bobônica é a fome!

– Bobônica é o rato que avoa!

Juntando as informações que tínhamos (e levando em conta que “féb” era “febre”), calculamos com o tempo que bobônica era a peste bubônica (o que tornava o guarda da rua dos meus pais numa espécie de profeta e arauto do apocalipse, que previa a chegada de uma nova Peste Negra).

A palavra bobônica virou gíria entre a molecada da rua – e a molecada da rua inclui meu pai, que de vez em quando ainda grita uns “bobônica” e cai na risada sozinho – e eu a trouxe comigo.

E se uma das definições de bobônica é “o rato que avoa”, nada mais justo que batizar o morcego aqui ao lado de “Bobônica”.

Isso explica o nome do morcego, mas não explica o que está acontecendo com meu bairro. Vamos mudar um pouco de assunto?

Já faz uns quatro ou cinco meses que meu bairro está diferente.

Uma das grandes qualidades desse bairro é que 90% da população dele é formada por velhinhos que moram aqui desde... Desde... Sei lá, desde a bobônica.

Você sai na rua, e lá estão eles: os velhinhos que dividem seu tempo entre ver TV, dar um pulo na igreja, comprar suas coisinhas no mercado, ver mais um pouco de TV e cochilar um pouco no sofá porque esse negócio de ver TV cansa demais.

Parece uma cidade do interior. Aos domingos, quase não tem ninguém na rua. Nos outros dias, chega oito horas da noite e você não escuta mais nada – descontando o fato de que a mãe do Bruxa do Kurosawa, a japonesa-mais-velha-que-o-Japão assiste TV no volume 130 (o link para isso está lá em cima). Mas meu ponto é que o bairro é sossegado, silencioso, tranquilo. Sabe quando tem feriado e São Paulo fica vazia? Aqui não precisa de feriado para isso.

Mas isso está mudando.

Já faz alguns meses que estou vendo pessoas novas pelo bairro. E não se tratam dos filhos dos velhinhos que vieram visitá-los. São barbas, chapéus, camisetas de bandas que nunca ouvi falar, tatuagens da moda (porque nada mais demonstra sua individualidade que fazer uma tatuagem igual a de todos os outros), barbas milimetricamente mal feitas, piercings (em lugares nunca dantes navegados por um piercing), e aquele expressão de “vou postar no Instagram a foto desta lata jogada na rua para mostrar que existe amor em São Paulo e que é preciso democratizar o espaço público, cara”.

São hipsters.


Uma praga de hipsters está começando a se instalar no bairro.

Não sei se é culpa da especulação imobiliária, se a Vila Mariana se tornou um bairro cult, ou se é um processo que faz parte da migração natural da espécie.  O ponto é que eles estão em todos os lugares. Na rua. No mercadinho. Na padaria ao lado de casa. Na banca de jornal. No restaurante por quilo. Só não estão no Starbucks porque ainda não abriu nenhum Starbucks aqui.

Ainda.

Sim, eu sei o quanto isso pode mudar a cara de um bairro. E eu falo com propriedade, já que morei cinco anos em Pinheiros. E estou temendo pelo pior. Com o tempo, os arredores aqui vão começar a se transformar. Vai ser quase imperceptível, mas vai acontecer. Vai abrir um coletivo de arte aqui, vai inaugurar um restaurante de comida indiana vegetariana ali. De repente, vão começar os restaurantes gourmet, e as lojas de roupas horríveis e de sementes e comidas naturebas.

E, um dia, a revistaria que eu frequento vai fechar e dar espaço para uma baladinha indie. Este será o dia que eu pegarei em armas e levarei justiça às ruas do bairro.

Mas eu tenho tentado evitar que a coisa chegue a este ponto.

Sempre que estou fumando lá na frente e um hispter passa pela rua – sozinho, acompanhado de outros hipsters ou de um cachorro cuja raça está na moda – eu fico resmungando e olhando com minha expressão de “saia do meu gramado, seu moleque maldito”. Eu normalmente faço isso ouvindo coisas como Slayer ou Suicidal Tendencies, então deve dar alguma credibilidade, mas não tem surtido o efeito necessário.

Eles continuam aparecendo.

Ontem, por exemplo, eu fui até a padaria com a Esposa. Eram umas oito horas da noite de domingo. Teoricamente, só nós estaríamos na rua. Mas não. Quatro deles estavam na porta da padaria, conversando e segurando garrafas de cervejas importadas.

Uma das meninas usava minissaia, meias-calças coloridas (acho que uma de cada cor) e coturno. Seu cabelo estava preso com duas marias-chiquinhas. Já um dos caras usava calças vermelhas e camiseta branca, acompanhados de uma espécie de showroom de acessórios: suspensórios, gravata borboleta de bolinhas e chapéu coco – era quase um membro da família Restart fazendo cosplay de figurante daquelas novelas das seis sobre imigrantes italianos.

Quando eu olhei o sujeito do chapéu-coco com calma, nem consegui mais olhar os outros dois. Porque você usar gravata borboleta e chapéu-coco já não é mais ser hispter. Isso já é outro nível que só poderia ser entendido como provocação.

Maria-Chiquinha e Chapéu-Coco, meus novos vizinhos.

Mas não fiz nada. Apenas olhei para o Chapéu-Coco e resmunguei algo sobre “você me parece ser uma daquelas pessoas cuja única qualidade é ser biodegradável” e comprei o que precisava. Ainda resmungando. E voltei para casa. Ainda resmungando. Deixei as coisas na cozinha e fui fumar lá na frente. Ainda resmungando.

Bobônica, feliz, voava ao meu redor. Foi quando eu somei A com B e vi que...

Bem, eu não tinha nada a perder.

Esperei bobônica passar perto de mim e disse:

– Você viu que a galera do Arkham está lá na esquina? Perto da padaria?

Bobônica continuou voando. Deu uma volta e passou novamente perto de mim. Eu continuei:

– Eu vi o Chapeleiro Louco e a Arlequina. Mas tinha mais gente.

Bobônica deu mais uma volta e voou por cima da minha cabeça.

– Ali na padaria, Bobônica. Não tem como errar.

Bobônica voltou até a árvore, deu meia volta e saiu dando rasantes e batendo as asas. Mas, ao invés de dar a volta, seguiu reto em direção à esquina. Rumo à padaria.

Eu sorri, sabendo que agora o bairro está protegido. Tenho certeza que nós próximos, relatos de hipsters espancados na Vila Mariana vão começar a surgir nos jornais, falando também sobre um enorme morcego que está atacando as pessoas no bairro.

A partir de agora, meu nome é Rob Gordon, mas vocês podem me chamar de Comissário Gordon. Já estou construindo um Bat-Sinal no quintal dos fundos e devo estreá-lo ainda esta semana.

E, hipsters... Sejam bem vindos a Gotham.


3 comentários:

Varotto disse...

He's a silent guardian, a watchful protector. A dark knight.

Varotto disse...

Já já vão abrir uma clínica de transplante de barba por aí.

Lu disse...

Imaginei você aqui uma mistura de comissário Gordon com Clint Eastwood em Gran Torino.
Boa sorte com a vizinhança!