29 de janeiro de 2014

Dona Benta dos Mortos



Eu juro que estou tentando falar sobre a mudança e sobre a casa nova aqui no blog, mas o mundo não está deixando. Na verdade, eu tenho vários posts dentro da cabeça sobre a casa, os imóveis que nós visitamos, as brigas com corretores, a casa que quase alugamos...

E estava trabalhando em um deles, hoje, alternando com uns textos de trabalho, quando tocou a campainha aqui de casa. Eu estava sozinho, então coloquei o computador de lado, abri a porta, olhei para a rua...

E dei de cara com a Dona Benta.

Estava ali no portão, sorrindo e acenando para mim.

Meu sentido de Aranha disparou. Mesmo assim, me aproximei do portão.

- Pois não?

- Posso falar com você um minuto?

- Claro.

- Que enfeite lindo você tem ali! Quem fez?

Olhei para trás e dei de cara com um negócio que está aqui na casa nova, desde que nos mudamos: o esqueleto de um guarda-chuva decorado com flores de plástico e enterrado num vaso.

Imagine o presente mais torto que uma criança do jardim da infância faria para sua mãe na escolinha. Multiplique a feiura desse objeto que você imaginou por dez, quebre as pontas e jogue purpurina por cima. Bem, se você pegar este objeto que está na sua cabeça e colocá-lo num concurso de objeto mais cafona da Idade Contemporânea contra o guarda-chuva aqui do vaso, o seu objeto iria começar a chorar e reclamar que “não dá para competir com isso, é covardia, vamos voltar para casa”.

Enfim, de volta à Dona Benta. Eu estava ocupado, fazendo dois textos ao mesmo tempo e precisando ir até a casa velha buscar umas coisas que ainda estão lá. Foi por isso que, em vez de responder “Gostou? Eu mesmo que faço, e ele está à venda, só cinquenta reais. As flores são do Peru e o guarda-chuva é europeu. E só tenho esse, posso embrulhar?”, eu fui sincero e respondi que:

 - Já estava na casa.

- Ah. Muito bonito. Você tem cinco minutos para conversar comigo?

Meu sentido de aranha começou a gritar.

- Bem...

- Eu só quero fazer uma perguntar.

- Certo. Diga.

- Você acredita que os mortos podem voltar à vida?

- Oi?

- Você acredita que os mortos podem voltar a viver?

Olhei para o alto, em direção às nuvens e estreitei os olhos com ódio. Malditos, já sabem que estou morando aqui e vão fazer todas as pessoas estranhas do Hemisfério Sul vir tocar a campainha quando somente eu estiver em casa.

- Eu tenho aqui dentro uma tonelada de filmes, livros e quadrinhos que mostram que sim, os mortos com certeza podem voltar a viver.

- Sim. Sua resposta está certa.

- Eu sei. Qualquer pessoa que viu um filme do Romero sabe disso.

- E você sabe o que fazer quando os mortos voltarem a viver?

- Sei. Tiros na cabeça.

- Como?

- E estocar alimentos enlatados. E água.

Neste momento, a Dona Benta entrou em uma espécie de transe.

- Se os mortos voltarem a viver, você há de se regozijar!

- Oi?

Foi quando ela puxou um panfleto e começou a apontar os textos explicando como, de acordo com a Bíblia, o apocalipse zumbi vai ser, na verdade, uma coisa boa.

- Está aqui. Saber que os mortos podem voltar a viver irá lhe consolar quando perder um ente querido. Está em Coríntios. Isso também ajudará você a não ter pavor da morte, diz o Livro de Hebreus. E João afirma que isso lhe dá esperança de reencontrar seus parentes e amigos que já morreram.

- Mas Romero diz que é para dar tiros na cabeça.

- E eu sinto muita falta dos meus parentes e amigos que já morreram.

Pensei em responder para a Dona Benta que, olhe se os seus amigos mortos entrarem na sua casa no meio de um apocalipse zumbi, ele vão devorar você. Não serão mais seus amigos, Dona Benta! Você precisará dar tiros na cabeça deles e fugir com seus enlatados porque sua casa não é mais segura!

- Você usa internet?

- Sim.

- Você pode acessar depois este site, e ver mais informações sobre isso.

E me entregou um folheto, que está lá em cima da mesa.

- Certo.

- E assim você estará preparado.

Eu ainda sou da opinião de que um rifle com mira telescópica e uma submetralhadora para combates mais próximos vão me preparar mais que um folheto. Mas resolvi deixar isso de lado.

- Certo.

- E parabéns pelo enfeite ali da porta.

Olhei para ela com cara de que “você sabe que se os mortos voltarem a viver, nem eles iam querer aquela bosta ali, né?”, mas não falei nada.

Apenas sorri e me despedi.

E voltei para meus textos sentindo um pouco de pena da Dona Benta.

Quando os mortos voltarem a viver, ela não vai durar nem dez minutos. E vai descobrir da pior maneira possível quem há de se regozijar são os mortos, e não ela.


Em tempo: Hoje também teve post novo no Chronicles, com um pequeno conto de ficção científica... Ou não. Que tal dar uma escapadinha para lá e ler? Clique aqui.

4 comentários:

Varotto disse...

Fique tranquilo, porque quando os mortos voltarem a viver, eles não vão te matar.

Seria fácil demais.

Provavelmente, você vai ser poupado para servir de alvo para aqueles mortos vivos que nem mesmo os outros zumbis aguentariam.

Hydrachan disse...

E você não disse à Dona Benta para não se preocupar? Afinal, ela não vai demorar muito para encontrar os seus entes queridos... De uma forma, ou de outra. rs

Bjs!

Ana Savini disse...

De todas as pessoas (nisso se inclui minha mãe, minha sogra, o Rob, meu filho, a corretora que alugou a casa pra gente,...) eu sou a única que quer manter o enfeite que está na frente da casa. (pensa em um esqueleto de guarda-chuva espetado em um cabo de guarda-sol espetado na terra em um vaso de cerâmica gigante pintado de branco com flores artificiais cor-de-rosa enfeitando tudo isso)

K.P. disse...

Queria saber de quem ela sente mais falta, se é do Saci ou da Cuca...