(Leia a parte I aqui)
Você já teve vontade de ir ao banheiro voltando para casa?
Claro que já, todo mundo já teve isso. O fenômeno é quase matemático. Se você
estiver longe de casa, a dor de barriga cresce em progressão aritmética (1, 2,
3, 4, 5...). Contudo, quando você entra num raio de um quilômetro da sua casa,
os intestinos começam a funcionar em progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32...).
Quando eu entrei no mercado, meu sistema digestivo estava no
processo de transição da progressão aritmética para a geométrica. Ou seja,
daria tempo. Certo, não seria tempo de sobra, mas seria suficiente. Contudo, a
matemática pode ser uma ciência exata, sim, desde que ela não sofra
interferência da variável mais imprevisível do universo: o fator Rob Gordon.
E ele começou a agir no momento em que coloquei os pés no
mercado. A esta altura, a tempestade que se anunciava já poderia ser ouvida em
estéreo. Metade dos trovões ecoava no céu, enquanto o resto vinha de dentro da
minha barriga. Ciente disso, eu entrei no mercado apressado e fui direto para o
corredor de bebidas. Ou melhor, não fui, pois fui parado no meio do caminho por
duas mulheres – provavelmente mãe e filha.
Claro que elas estavam perdidas.
E claro que elas acharam que eu era uma espécie de oráculo,
que poderia resolver todos os seus problemas, independente do tempo que isso
custasse. Afinal, oráculos não têm muito que fazer da vida, mesmo.
- Ressiveranto?
Ah sim, me esqueci de dizer que oráculos falam todos os
idiomas do planeta.
- Oi?
- Onde tem ressiveranto?
- Olhe, eu estou com pres...
- Coca-Cola!
- Ah! Refrigerante?
- Isso! Ressiveranto!
- É ali no fundo.
De posse desta informação, as duas começaram a discutir (“eu
falei quera ali, Marli, ramo lá pegá e ir bora!”) e eu aproveitei minha deixa
para escapar.
Os intestinos já estavam em contagem regressiva para iniciar
o processo de progressão geométrica quando eu cheguei ao caixa, segurando a
garrafa de Coca e as outras coisas que eu precisava comprar. Evidentemente, fui
ao caixa mais vazio, que tinha 1) um pai e filho embalando as compras e 2) uma doce
e pacífica senhora de idade começando a passar as mercadorias.
E foi aí que o mundo matemático sofreu um novo abalo graças
a uma nova interferência do fator Rob Gordon, que alterou os dados da equação
para transformar a doce e pacífica senhora de idade em uma velha pentelha.
Isso porque assim que entrei na fila, percebi que o homem e
o menino eram gringos – americanos, quase com certeza. E a ex-doce e pacífica
senhora de idade, agora transformada em velha pentelha, estava usando a
presença dos dois para praticar seu inglês.
- Are you
father and son?, perguntou a velha.
- Yes, respondeu o pai.
- Yes, respondeu o filho.
- Are you
living here in Brazil?, perguntou a velha.
- Yes, respondeu o pai.
- Yes, respondeu o filho.
- Meu Deus do céu, eu respondi.
A velha olhou para mim com um ar de reprovação e continuou
falando com a dupla. E começou a explicar aos dois que ela sabia falar inglês,
que tinha aprendido tudo sozinha e por conta própria, e que achava o idioma
lindo e adorava até mesmo os sotaques.
- What city
are you from?
Se eles respondessem Chicago ou Boston, eu sairia correndo
do mercado até a calçada, olharia para o céu e começaria a gritar que “vocês já
tiveram roteiros melhores” e que “esta piadinha é digna de Zorra Total”.
- Massachussetts, respondeu o pai.
- Massachussetts, respondeu o filho.
- Inferno, eu respondi.
E a velha continuou conversando e rindo. E eu ali atrás
dela, esperando minha vez e sentindo distúrbios na Força, como se milhões de
vozes gritassem ao mesmo tempo. Se isso demorasse mais um tempo, minha única
saída seria ir até a seção de fraldas, pegar a maior que estivesse à venda e
perguntar a algum vendedor se existia algum provador dentro do mercado.
- Do you
want me to be your godmother?
- Answer her, respondeu o pai.
- I don’t know, respondeu o menino.
- Eu vou morrer, eu respondi.
Para minha sorte – já que a progressão geométrica já estava funcionando
a todo vapor, com o grau de morte humilhante em via pública no nível quatro –
os futuros laços familiares foram cortados, pois os dois acabaram de embrulhar
suas compras e foram embora. Era a vez da velha – provavelmente lamentando a
perda da oportunidade de morar nos Estados Unidos – passar as compras.
E ela o fez, com uma demora desgraçada. Na verdade, se
pegássemos a velocidade com que minha dor de barriga crescia - a esta altura
com direito a pontadas e suor – e multiplicássemos por –1, o resultado seria
algo ainda mais rápido que a velha. Para cada mercadoria que era registrada,
ela fazia algum comentário com a menina do caixa, explicando porque estava
comprando cada produto.
Olhei ao redor e todos os caixas estavam lotados. Não havia
alternativa: no meio do caminho havia uma velha, havia uma velha no meio do
caminho.
Cerca de cinco minutos, sete pontadas na barriga e uns dois
gemidos, ela acabou de passar as mercadorias e pagou. Mas, antes de ir embora,
esticou a mão e pegou um bombom.
- Este aqui vai ser para recompensar a minha paciência.
Eu pensei em dezenas de coisas para fazer: esmurrar a velha;
ajoelhar e implorar para que ela fosse embora; colocar minha chave no pescoço
da caixa e gritar que “ou vocês me arrumam um banheiro e depois um avião para
fora do país ou eu mato esta mulher agora e não me testem, não estou blefando!”.
Mas todas elas envolviam fazer força ou algum movimento brusco, o que não era
exatamente recomendável na minha situação.
Assim, tudo o que eu consegui fazer foi responder, de forma
conformada:
- Claro.
- Seja claro, seja escuro ou que seja sombrio, não me importa.
Vou comer este bombom.
“Seja claro, seja escuro ou que seja sombrio”. Certo. Eu
estava diante da reencarnação da esfinge, que provavelmente anda pelos mercados
de São Paulo pronunciando enigmas e charadas. Idade para isso, ao menos, ela
tinha. Mas confesso eu estava ocupado demais tentando manter meu sistema digestivo
sobre controle para reparar se ela tinha cabeça de humana e corpo de leão.
- Estamos bem mais
pertos do escuro e sombrio do que a senhora imagina, resmunguei me concentrando
em evitar olhar o bombom nos olhos, o que poderia resultar em uma catástrofe.
Dentro de mim, o pessoal da progressão geométrica já deveria
estar comemorando, com direito a garrafas de champanhe e dançarinas usando
somente biquínis e saindo de dentro de bolos o fato de terem atingido a marca
recorde de 128.
A velha pagou o bombom numa nova compra, informando
novamente o CPF com a empolgação de um funcionário público lendo relatórios em
voz alta e esperando seu troco de dois centavos. Assim que ela colocou os pés
na calçada, eu estava terminando de embalar minhas compras com uma mão e
digitando a senha do cartão com a outra, e implorando a Deus que me concedesse
cinco minutos e mais nada.
Cinco minutos depois, eu estava entrando em casa, largando
as compras no meio da sala, abrindo as calças e fechando a porta com os pés.
E, como eu sempre pensei em escrever um post escatológico –
daí o nome desta saga – sem usar de piadas explicitamente escatológicas em momento algum, o
resto é história.
15 comentários:
Considerando o conceito de escatologia associado ao fim dos tempos, acho que funcionou bem para seu texto.
Imagino que você tenha chegado até a bater a cabeça no teto do banheiro quando o trem deixou a estação.
Só uma dúvida: em que dia isso aconteceu? Porque outro dia mesmo eu estava sentindo um cheiro estranho lá em casa, que não consegui descobrir de onde vinha...
Juro que quando a velhinha disse que o bombom era pela paciência dela, eu achei que ela iria querer que você pagasse! Estranho, mas acontece cada coisa com você, Rob, que nem seria de se espantar!
E CPF na nota numa compra de dois, três reais é muita falta de sacanagem, né não?
Beijos!
Rob! Que bom que deu tempo! Quem nunca ficou desesperado pr cagar, bom ser humano não é.
Pelo menos o seu teve um bom final. E o meu, uma vez? Que não deu tempo? Nessas horas agradeço que foi só xixi... xD
Dani, eu peço CPF na nota em tudo! Semestre passado recebi mais de 200 reais na nota paulista.
Michele
Sorte de vocês aí em São Paulo. Aqui no RJ a gente só recebe de volta na forma de desconto no IPTU. E é um descontinho bem xumbrega.
Acho que foi o Varotto que comentou no post passado, mas em que mundo você vive que fazer compras é mais importante que cagar?
Aposto que na hora que você decidiu: "vou no supermercado", deus olhou lá de cima e pensou que aquele careca baixinho merecia uma lição. Isso é que dá rir na cara do universo, ele se vinga!
Ótimo texto, Rob!
Ri demais, Rob! Pimenta no olho dos outros é refresco. E só pra me desabafar:
EU ODEIO AS VELHINHAS QUE DÃO JUSTIFICATIVA PARA TUDO QUE ESTÃO COMPRANDO!!!!
Lucas Reis
Primeira vez aqui e virei fã ! Ja deixei de lado o livro que estava lendo, me dedicarei ao teu blog pelos proximos tempos!
Parabéns pelo talento (e pela vitória no final da "saga escatologica")!
Varotto:
Funcionou, certo? (E isso faz umas três ou quatro semanas...)
Abraços!
Rob
Dani Cavalheiro:
Como você disse, acontece cada coisa comigo que nada mais me espanta. :)
Beijos!
Rob
Michele:
Quem bom que deu tempo mesmo. Eu e a cidade agradecemos! :)
Beijos
Rob
Brunín Assis:
Você e o Varotto têm razão. Muita coisa acontece comigo, mas tem coisa que eu praticamente peço para acontecer!
Abraços!
Rob
Lucas Reis:
Desta vez, a pimenta não estava exatamente nos olhos dos outros, mas entendi o que você quis dizer! :)
Abraços!
Rob
Patricia B:
Muito obrigado pela visita e pelo comentário! Sinta-se sempre bem vinda para voltar e comentar sempre que desejar!
Beijos!
Rob
YES, I'm back!! Finalmente estou conseguindo catch up com os últimos posts!!!
Rob, eu poderia ler você pra sempre! Eu adoro as figuras de linguagem que você usa, as associações, as imagens - as imagens são as minhas preferidas! O som dos trovões poder ser ouvido em estéreo é uma sacada sensacional! São uns detalhes que fazem toda a diferença e que me fazem não só admirar, mas também me espelhar para escrever melhor.
Encerrado o momento puxa-saco-de-quem-merece, resta dizer que, realmente, esse negócio de ingerir quantidades industriais de carne nunca deu certo do ponto de vista fisiológico. E fiquei torcendo pra sua casa ter dois banheiros e/ou pro filho da namorada já ter terminado o job dele na hora que você chegasse. Porque do jeito que você é cagado (ops!) de urubu, era bem capaz que o banheiro estivesse ocupado.
Kel:
Obrigado! Você disse que gosta das imagens que uso - saiba que este post foi um dos mais difíceis, pois a minha meta era não cair na armadilha de apelar para o humor fácil e cair na escatologia em momento algum.
Mas, graças aos dois banheiros, a situação foi tranquila - ou, ao menos, dentro do possível.
Beijos!
Rob
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