16 de fevereiro de 2012

A Traficante de Crianças e Seus Morangos "Tuc! Tuc!"


Como de uns meses para cá eu divido o meu tempo entre a minha casa e a casa da Namorada, aos poucos, vou aprendendo um pouco mais sobre os vizinhos dela – especialmente pelo fato de que toda vez que quero tomar um café ou fumar um cigarro me sento na pequena escada do quintal da frente, e fico observando as pessoas na rua.

Assim, aos poucos, vou traçando a vizinhança. Temos o velhinho que, todas as manhãs, me chama para bater papo no portão e me presentear com o jornal do dia; temos a velha com voz de arara, que só sabe falar gritando – ou grasnando, como queiram; temos o louquinho da rua de baixo, que, pelo que me disseram, anda com a mesma roupa há pelo menos cinco anos.

E temos a traficante de crianças.

Trata-se de uma velha que passa na calçada de casa todos os dias aqui, perto da hora do almoço. Eu já havia reparado nela algumas vezes, especialmente porque em algumas ocasiões ela é ocidental, e, em outras, ela é claramente uma japonesa. Não sei como ela faz isso, mas ela faz.

Mas o que sempre me chamou a atenção de verdade nela é que todos os dias ela passa em frente de casa levando uma criança para a escola.

Até aí, tudo bem. Nada mais normal que isso.

O problema é que a cada dia ela passa com uma criança diferente.

Às vezes é uma menina que vai conversando com ela, às vezes é um menino daqueles que não sabe andar normalmente, e se locomove somente correndo ao redor das pessoas. Mas sempre são crianças diferentes. As únicas coisas em comum a todas elas é que passam sempre no mesmo horário, carregando material escolar.

Pensando sobre isso, eu encontrei apenas duas alternativas. A primeira é que a velha está iniciando carreira na área de transporte escolar, mas, como ainda não possui dinheiro para investir em um ônibus, leva as crianças a pé mesmo, provavelmente se orgulhando dos seus métodos artesanais e personalizados, levando sempre um aluno por vez.

Já a segunda é que ela é uma espécie de figurona no comércio de escravos mirins, raptando crianças pela Vila Mariana e as vendendo como escravos para o exterior. Quando a velha passa aqui em frente, na verdade está indo para um campo de voo secreto aqui perto, onde jogará a criança num cargueiro, receberá o pagamento em euros ou diamantes, e voltará para casa a tempo de limpar a sala.

Eu gosto mais da segunda hipótese. Ela torna a vizinhança no mínimo mais interessante.

Mas ontem ela se tornou mais interessante ainda quando eu estava tomando café depois do almoço e vi a traficante se aproximando com sua mercadoria do dia: um menino de seis ou sete anos. Mexendo no celular, não dei muita atenção, até ouvir uma voz vinda da calçada.

- Posso falar com você?

Ergui os olhos e dei de cara com a velha parada à frente do portão, olhando para mim.

Antes que eu pudesse responder, amaldiçoei minha altura. Ou melhor, a falta dela. Como eu tenho 1.60m, provavelmente a mulher me viu em pé um dia desses e, chegando à conclusão que sou criança, planejou me raptar. Claro que ela deve ter estranhado, em algum momento, o fato de eu não ter cabelos, mas ter barba. Porém, duvido que isso tenha feito com ela desistisse da ideia – tanto que ela estava na calçada me chamando.

Desci a escada devagar e olhando para os lados, feito um gato que se aproxima de um prato com comida no meio da calçada.

Um pedaço do meu cérebro começou a me avisar insistentemente que, assim que eu chegasse perto do portão, ela iria enfiar um lenço com clorofórmio na minha cara e eu acordaria horas depois num avião, descobrindo que 1) minha barba havia sido raspada, 2) uma peruca havia sido colada na minha cabeça e 3) eu passaria o resto da minha vida trabalhando numa mina de sal no meio de um daqueles países que não tem luz nem água potável e que vive a mesma guerra civil há cinco séculos.

Assim, me aproximei com cuidado, e pronto para jogar o café quente na cara da velha e sair correndo caso ela fizesse qualquer movimento brusco.

Na verdade, conforme me aproximava, fui percebendo que ela não era oriental nem ocidental, mas sim de uma raça indefinida. Até onde eu podia ver, ela também poderia muito bem ser brasileira, japonesa, chinesa, coreana, mongol, havaiana ou esquimó. Ou uma mistura de tudo isso.

Mas não tive muito tempo de me aprofundar no assunto, porque ela apontou para um vaso no quintal da Namorada e começou a falar.

- Qual o nome desta planta aqui? Você sabe?

- Oi?

- Esta planta aqui. Qual o nome dela?

Olhei para o vaso, que fica perto do portão. Era um vaso como outro qualquer. Com uma planta como outra qualquer, verde e com folhas.

Na verdade, eu preciso falar um pouco sobre os meus conhecimentos de botânica. Até onde eu sei, o reino vegetal é composto de quatro espécies: plantas, árvores (que são plantas com um tronco), flores (que são plantas coloridas) e salada (que são plantas que se comem). Frutas, claro, não contam, porque elas não são plantas, mas sim sabores de sorvete.

E o vaso em questão tinha uma planta, mas acho que a velha queria uma resposta um pouco mais elaborada.

- Ah... É... Essa aqui, né? Não sei.

- Porque eu estou com uma muda dessa aqui em casa, e queria saber o nome dela.

- Entendi.

- Você não sabe mesmo o nome dessa planta?

Pensei em responder que “sei, mas estou guardando segredo para ser o único detentor desta informação importantíssima e usá-la para conquistar o mundo”, mas como meu café estava acabando e logo eu ficaria desarmado, seria melhor não provocar a velha.

Ela continuou olhando o vaso e apontou para uma ponta da planta.

- Porque a flor dela sai por aqui, não sai?

A insistência dela em arrancar de mim informações sobre a planta estava começando a me deixar incomodado. Por um breve momento, desconfiei se ela não era o espírito de alguma antiga professora de biologia que veio a Terra para me castigar. Um fantasma naquele clima Charles Dickens, tipo “O Espírito do Colegial Passado”. E o pior é que se isso fosse verdade, jogar café nela não ajudaria em nada.

Mas, aparentemente, ela era um organismo vivo, formado de carne, ossos e uma curiosidade insaciável sobre plantas.

- É... Por aqui, né? Não sei... Acho que sim.

- Na minha é aqui que as flores estão saindo.

- Ah, tem razão. É por aí mesmo. Uma vez eu acho que vi um negócio colorid... É... Uma flor, nesse galho aí.

- Ah, deve ser por aqui mesmo que ela nasce. Você entende de morangos?

Além de gostar de plantas, a velha tinha o poder de abrir pop-ups na conversa. Perfeito.

- Oi?

- Morangos. Você entende?

Vamos ver o que eu entendo sobre morangos. O sorvete de morango é bom. Morangos ficam bem com leite condensado. Quanto menores e mais vermelhos, mais saborosos. Faz vinte anos que o bolo que minha mãe faz no meu aniversário é de morango.

Para alguém que não entende nada de biologia, até que meus conhecimentos sobre morangos são bastante bons. Assim, decidi arriscar a sorte e blefar.

- Sim, um pouco.

- Num vaso lá em casa apareceu uma muda de morangos. Será que eu posso deixá-los ali mesmo ou preciso replantar em outro lugar?

Olhei para cima e suspirei, resmungando que “vocês estão inspirados hoje, hein?”. Aparentemente, ela não era uma traficante de crianças nem o espírito de um professor, mas sim uma mistura de Charada com Hera Venenosa. Mais uma destas e eu mudaria meu nome para Comissário (Rob) Gordon.

- Olhe, eu realmente não sei.

- Ah, porque eles apenas apareceram ali em casa e eu não sei o que fazer com eles.

E por que diabos eu saberia o que fazer? Qual terá sido o pensamento da velha que percorreu os becos abandonados do seu cérebro e desembocou na conclusão “aquele carequinha ali entende de morangos, vamos pedir ajuda a ele”? No que dependesse de mim, ela podia colocar ao pé do vaso duas vasilhas, uma com ração ou leite e outra com água, e deixar que os morangos se virassem sozinhos.

- Olhe, eu não sei como te ajudar.

- E eles apareceram ali e começaram a crescer.

- Entendi.

Na verdade, eu não tinha entendido. Afinal, com 1.60m, “crescer” é, para mim, um mistério quase tão grande quanto a melhor maneira de criar morangos. Talvez vendo minha cara de curiosidade a respeito disso, ela decidiu explicar melhor sobre os morangos terem crescido sozinhos. Aproximou as duas mãos à frente do corpo e começou a afastar uma da outra, simbolizando o crescimento dos morangos, se dando ao luxo de ainda falar “Tuc! Tuc!” conforme as mãos se mexiam.

Esqueci-me de dizer que eu sei mais uma coisa sobre morangos. Eles não fazem “Tuc! Tuc!” enquanto crescem. Ao menos, nunca fizeram na minha frente.

Deixei a velha tuc-tuc-tucando por alguns instantes e ela não parou. Continuou afastando os braços e soltando seus “Tuc! Tuc!”. Em minutos, os morangos delas estariam do tamanho de uma árvore, caminhando pelo bairro, gritando “Tuc! Tuc!” com voz gutural e destruindo a civilização. Era hora de fazer alguma coisa.

E, assim, eu coloquei em prática uma ideia que milênios de história já mostraram que é à prova de falhas: quando você tem um problema insolúvel nas mãos, basta jogá-lo para outra pessoa.

- Sabe... Quem pode lhe ajudar é a minha namorada.

- Mesmo?

- Sim, ela é paisagista.

A velha arregalou os olhos, num daqueles momentos é que ela era totalmente ocidental.

- Mesmo?

- Sim. Ela não está aqui agora, mas logo mais ela chega.

- E será que ela pode me ajudar?

- Claro. Ela entende tudo de morangos e de... De... Dessa planta aqui.

- Que ótimo! Vou passar aqui mais tarde!

 Aparentemente, mesmo longe de casa e sem desconfiar disso, a Namorada havia acabado de ganhar uma melhor amiga.

- Claro. Fique à vontade.

- Eu posso trazer o vaso com os morangos também, para ela ver!

Por uma fração de segundos, imaginei a velha arrastando um vaso de concreto de mais ou menos 100 kg pela calçada. Alguma coisa no meu instinto dizia que sim, ela era capaz de fazer isso em nome dos morangos “Tuc! Tuc!”

- Não, não precisa. É só vir conversar com ela!

- Que ótimo! Porque daí quem sabe o marcalrelho consegue comer os morangos

- Marcalrelho? O que é marcalrelho?

- É meu neto!

- Ah! Marco Aurélio! Certo.

- Então eu passo aqui mais tarde.

- Claro. Agora eu vou entrar. Até logo.

- Tchau!

Entrei e tranquei a porta. Coloquei a mão no bolso e puxei meu maço de cigarros e o isqueiro e fui fumar. Mas, desta vez, escondido no quintal do fundo, sozinho e em silêncio.

Porque a vizinhança era mais legal quando a velha era somente uma traficante de crianças.

26 comentários:

Camila disse...

"Olhei para cima e suspirei, resmungando que “vocês estão inspirados hoje, hein?”. Aparentemente, ela não era uma traficante de crianças nem o espírito de um professor, mas sim uma mistura de Charada com Hera Venenosa. Mais uma destas e eu mudaria meu nome para Comissário (Rob) Gordon."

Hahahahaha, chorei aqui! E não é difícil imaginar a cena, porque por algum motivo muito sombrio, velhinhas e/ou pessoas esquisitas adoram puxar papo comigo. Sou pára-raio de gente esquisita.

Ana Savini disse...

Pois é... E a velha raptora de criancinhas veio falar comigo depois. ¬¬
Mas tenho que confessar que esse post ficou engraçadíssimo e me arrancou gargalhadas impróprias já que eu trabalho na mesma sala da minha coordenadora, como é do seu conhecimento, e ela estava presente enquanto eu lia.

Rob Gordon disse...

Camila:

O problema não são os velhinhos que vêm falar com a gente. O problema são os velhinhos loucos que vendem crianças e cultivam morangos Tuc Tuc pro marcalrelho. :)

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Ana:

Espero que sua conversa com ela tenha sido melhor que a minha. :)

Beijos!

Rob

Anônimo disse...

HAHAHAHAHAHA eu ri tanto !!! ah tadinha dela ! velhinhos as vezes se sentem sozinhos, e como cresceram em uma sociedade um pouco diferente da nossa [pessoas que não se isolavam com seus fones, sms e coisas do genero até mesmo na presença de outras pessoas] eles vem puxar conversa ! vi meu avô nessa historia ! ele ama puxar assunto com gente que nunca viu na vida ! haha rob, vc velhinho ira puxar assunto com alguem tambem ? haha

Rob Gordon disse...

Nothingbutasong:

Como eu disse para a Camila, não tenho nada contra velhinhos que vêm conversar comigo - tanto que eu dou trela para todos. O problema é quando são os loucos (independente de serem velhinhos ou não), que parecem ter apenas uma missão na vida: conversar comigo na rua. :)

Beijos

Rob

Alan disse...

Eu sempre me esqueço que ler os textos do Rob no trabalho é correr o risco de gargalhar alto...kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk... Muito bom o texto com passagens onde eu desatei a rir.

Elise disse...

"No que dependesse de mim, ela podia colocar ao pé do vaso duas vasilhas, uma com ração ou leite e outra com água, e deixar que os morangos se virassem sozinhos."

Eu ri bastante nesta parte... Eu tenho a mesma impressão sobre as plantas. Minha avó passa HORAS no jardim dela cuidando as plantinhas, e eu mal consigo fazer um vaso de violeta sobreviver. Quem sabe um pouco de leite com Neston não faça com que elas cresçam fortes e saudáveis... rsrsrs

Eu fico pensando como seria se você puxasse um papo aleatório na rua com alguém mais aleatório ainda... =P

Varotto disse...

Imagino a sua cara de "This conversation can serve no purpose anymore. Goodbye." (HAL mode: ON)

Steh disse...

Eu ri muito, Rob. Sensacional, como sempre!

"Até onde eu sei, o reino vegetal é composto de quatro espécies: plantas, árvores (que são plantas com um tronco), flores (que são plantas coloridas) e salada (que são plantas que se comem). Frutas, claro, não contam, porque elas não são plantas, mas sim sabores de sorvete."

Steh disse...

Aliás, coitada da @anasavini! Haha!

Claudia Iarossi disse...

Adorei seu conhecimento de botânica.
E o "Marcalrelho" então? Chorei de rir!

Bjs

Rob Gordon disse...

Alan (FFC):

Como sempre, fico feliz que estes momentos "ô fase" da minha vida se tornem em gargalhadas no trabalho! Valeu!

Rob

Rob Gordon disse...

Elise:

Eu também não entendo as pessoas que conversam com as plantas enquanto cuidam delas. Mas, todo mundo diz que faz bem para as plantas... (eu, particularmente, se fosse planta, iria preferir ficar quieto no meu canto fazendo fotossíntese e sem falar com ninguém, mas...)

E quanto a EU puxar assunto na rua... Não. Não dá a ideia. Por favor. :)

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Varotto:

Eu até tentei fazer a cara de HAL, mas ela não se tocou. Aí pensei em continuar com a imitação do HAL e fingir que eu estava desligando, mas mudei de ideia quando percebi que, no momento que eu começasse a cantar "Daaaaaisy... Daaaaaaisy...", a velha poderia entender que eu adoro falar sobre margaridas.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Steh:

Que bom que curtiu! E, sinceramente, quanto à parte dos meus conhecimentos de botânica, eu realmente acredito nisso (especialmente na parte das frutas!)

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Claudia Iarossi:

Eu tive que me segurar MUITO para não gargalhar na hora do marcalrelho! :)

Beijão!

Rob

Dani Cavalheiro disse...

"Em minutos, os morangos delas estariam do tamanho de uma árvore, caminhando pelo bairro, gritando “Tuc! Tuc!” com voz gutural e destruindo a civilização. Era hora de fazer alguma coisa."

HAHAHAHAHA Morri!

Dani Cavalheiro disse...

Mas agora fazendo um comentário de verdade: às vezes é muito melhor continuar só imaginando. A realidade dá uns choques na gente...

Sobre seus conhecimentos de botânica, eu penso parecido. Só que pra mim frutas sempre foram aquelas coisas coloridas de enfeitar a mesa.

Beijos!

Silvia disse...

Pois eu acho que você deveria desenvolver a parte sobre conhecimentos de botânica para que as escolas possam adotar seu método avançado de estudos. :-)

Rob Gordon disse...

Dani:

Nada é mais verdade que "a realidade dá uns choques na gente". Mas, quanto aos meus conhecimentos de botânica, eles não envolvem as frutas que enfeitam as mesas, pois todas elas são feitas de plástico (ao menos dentro da minha cabeça).

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Sílvia:

Caso isso aconteça um dia, garanto que muitos menos alunos bombariam de biologia. Como alguém que bombou duas vezes, falo com conhecimento de causa.

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Anareis:

Apesar do spam, seu comentário parece ser verdadeiro. Assim, eu deixarei aqui o link da sua campanha para os demais leitores.

Boa sorte.

http://anareis-procurooamor.blogspot.com/2012/02/sos-dependentes-quimicos.html

Unknown disse...

Quando a velhinha perguntou o nome da planta, acho que ela esperava algo como "Joelma" ou "Tereza"...! :)

Pri disse...

Rob, vc entende de cactus? ahahaha

Eduardo Souza disse...

ilário man!
minha esposa até me perguntou porque eu ria tanto! :D
duvida, quem estava inspirado nesse dia? hahahaha
esse é seu terceiro texto que leio e fico cada vez mais fã! :D