16 de fevereiro de 2011

O Reencontro

Imagine uma praia.

Mas uma praia bonita, deserta, com areia branca e águas cristalinas – não aquelas lotadas, com crianças gritando, vendedores de sorvete disparando aquelas buzinas malditas, e gaivotas devorando um enorme peixe morto ali no canto, perto do esgoto.

Não, eu quero que você imagine uma praia daquelas de cinema. O lugar não importa. Não importa nem se você vai imaginar uma praia que conhece, ou vai inventar uma. Tanto faz, apenas imagine uma praia. O horário também não importa, mas é aconselhável que seja logo cedo, pela manhã, ou ao final da tarde, para o Sol estar baixo e sua luz se refletir no mar.

E é ali, enquanto as ondas quebram preguiçosamente na areia (eu não sei muito a respeito da praia de vocês, mas nas minhas praias paradisíacas as ondas sempre quebram na areia de forma preguiçosa), que eles vão se reencontrar. E será em alguns minutos, então precisamos ser rápidos.

Mas, antes disso acontecer, precisamos de uma música. Precisa ser algo romântico e grandioso, contudo intimista ao mesmo tempo. E não pode ser clichê. Nada do Tema de Amor de Blade Runner, que virou assinatura de propaganda de motel. Não, tem que ser algo bonito, mas único, que funcione somente para eles, mas sem cair no ridículo.

Ou, melhor, podemos usar duas músicas. Uma no começo e outra no final.

Então, vamos tentar esta no começo: A Rapsódia sobre um Tema de Paganini, usada no filme Em Algum Lugar do Passado (clique aqui para ouvir). Não sabe qual é? Perfeito. Assim, com estas notas doces – mas levemente melancólicas tocando – temos takes alternados dos dois. Ele e Ela, na mesma praia paradisíaca, mas obviamente separados.

Ela olha para o mar esperando reencontrar seu amor; ele se distrai olhando as conchinhas no chão. Ela está toda de branco, enquanto Ele usa apenas calças, com as barras dobradas para não molhar – é ridículo, eu sei. Ninguém usa as calças assim, mas em cenas deste tipo usar as calças desta forma é não apenas aceitável como recomendável.

Assim, temos takes alternados dos dois. Talvez uma lágrima discreta role pela face dela (outra coisa: para mim, lágrimas só caem quando são de verdade; em textos, elas rolam pela face), e ele deixando escapar um sorriso amargo, um sorriso daqueles de quem sabe ter vivido o maior amor da história, e que nunca mais encontrará alguém igual.

E, com o Paganini rolando solto, é evidente que eles estão considerando seu futuro. Ela sabe que, mesmo acompanhada, se sentirá sozinha para sempre; um pedaço seu – a melhor parte de sua vida – foi arrancada, por um motivo que ainda não sabemos, e talvez nunca venhamos a saber. Talvez ela conheça outra pessoa, se case e tenha filhos e netos, mas ela nunca mais viverá plenamente. Pelo contrário, apenas sobreviverá.

Ele? Ele já aceitou mudar de país e deixar tudo para trás. Passará o resto da vida morando em Paris, num pequeno apartamento, escrevendo poemas de amor, solitário e gastando o pouco dinheiro que ganha com os textos em garrafas de vinho (ele precisará de meia garrafa para dormir, todas as noites), e talvez um pãozinho com queijo. E os poemas, todos eles, serão sobre ela. Para ela. Por ela.

Separados para sempre.

Ou não.

Pois, numa rápida virada de cabeça, um avista o outro. Curioso como sempre acontece isso, eles sempre se vêem ao mesmo tempo. Ela jamais olharia primeiro apenas para surpreendê-lo cutucando o nariz e limpando na calça, e ele nunca teria descoberto ela pulando na areia com a cabeça torta para tirar a água dos ouvidos após um mergulho.

Não, eles se reencontram ao mesmo tempo. O Paganini ainda continua, mas seus olhos mudaram. Abandonaram a melancolia, dando lugar à esperança. E ao amor. De opacos, transformam-se em estrelas, brilhantes. Assim que seus olhos se encontram, o futuro muda. Nada mais de uma família numerosa para ela, com filhos egoístas e um marido que limpa a mão engordurada de frango na toalha da mesa; para ele, nada mais de apartamento em Paris e aquele vinho barato que o fazia acordar com azia de madrugada.

E, agora que se reencontraram, não conseguem mais ficar separados. Para dar dramaticidade ainda maior, talvez ela possa estar segurando algo na mão, para deixar cair, distraído. Uma caneca, com o resto de café? Pode ser.

Então, pronto. Será uma caneca. Ele deixa o objeto cair na areia e começa a andar na direção dela, sem olhar para baixo, sem olhar para as ondas. Ela faz o mesmo. Não se preocupe, nenhum dos dois vai cair ou dar uma topada numa pedra, essas coisas nunca acontecem neste momento – lembre-se que eles estão numa praia, logo não há nenhum criado-mudo para algum deles estourar o mindinho e sair pulando e gritando palavrões.

Aos poucos, a velocidade de cada um começa a aumentar. Corta o Paganini, entra Beethoven, no meio do quarto movimento da Nona Sinfonia. Se você acha que é clichê, problema seu. É Beethoven, então pode. Toca Beethoven mesmo, ou eu paro o texto agora. Ótimo. então, enquanto as ondas continuam a quebrar (preguiçosamente) na areia, eles correm em direção ao outro, braços abertos, em câmera lenta.

Não, câmera lenta sim é o cúmulo do clichê. Ok, o recurso funciona, mas é bem datado, vai ficar parecendo propaganda de cartão de crédito dos anos 90. Esqueçam a câmera lenta e foquem sua atenção no Beethoven, que não precisa de câmera (nem de praia com ondas preguiçosas, para falar a verdade) para funcionar.

A câmera muda dele para ela, e dela para ele. Estão cada vez mais próximos. E o Beethoven vem crescendo.

E, quando eles se encontram, se abraçam com força, desesperados, aquele abraço-de-quem-não-quer-nunca-mais-soltar-porque-já-soltou-uma-vez-e-sabe-que-é-uma-merda. E aí tem um clichê que não podemos fugir: ele a levanta e roda o corpo dela no ar, enquanto ela, abraçada a ele, dobra suas pernas para trás. Seus cabelos estão esvoaçantes, assim como sua saia branca.

E o coro da Nona Sinfonia (ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta tááááá tá-tá) explode conforme eles caem na areia, abraçados. E, conforme eles se beijam desesperadamente, famintos, uma onda quebra (preguiçosamente, não se esqueçam) por cima deles, como se até mesmo a natureza abençoasse esse reencontro. E se o pessoal da Columbia Pictures falar que copiamos isso do beijo entre o Burt Lancaster e a Deborah Kerr em A Um Passo da Eternidade, nós alegamos que nunca vimos o filme, que tivemos a ideia de colocar a onda antes que o filme fosse lançado, mas só executamos isso agora, por problemas de orçamento.

E, com o Beethoven ainda explodindo nas caixas de som, a câmera se afasta, para o alto, pegando uma panorâmica inteira da praia, com eles se beijando lá longe, na areia, no centro de tudo e minúsculos. Os críticos vão adorar isso; metade deles vai achar que isso mostra que eles ainda são humanos e pequenos; a outra metade vai insistir que esta tomada serve para o público entender que não existe mais ninguém no mundo, para eles, naquele momento.

Um leve fade-out. Beethoven começa a silenciar.

Fim.


Este texto é dedicado à minha mão direita (Ela) e ao meu teclado (Ele), que, após quase um mês afastados, se reencontraram agora há pouco, depois que tirei o gesso. E se você perguntar para mim como o texto começa, eu não me lembro mais. Nunca escrevi tão rápido na vida – eu não queria escrever, eu precisava escrever, mesmo que usando somente o indicador da mão direita. Precisava sentir o teclado. Precisava digitar na mesma velocidade que eu penso. Assim, apenas peguei o tema Reencontro e escrevi a primeira coisa que veio à cabeça.

Afinal, um menino que ficou com a perna engessada nas férias, quando tira o gesso não quer marcar gols. Ele quer apenas chutar a bola.


8 comentários:

Climão Tahiti disse...

Agora se abracem e chorem.

De felicidade, claro.

Varotto disse...

Porra! Eu fiquei resistindo em ir direto ao final porque pensei: isso não é o Chronicle, deve ter alguma sacanagem no final.

Deve ser por isso que seus cabelos foram embora. Muita energia gasta pensando nesses seus textos.

Mas, IMHO, dada a qualidade da produção, vale cada fio que se rebelou e foi embora para sempre.

E agora sua mão direita pode voltar a fazer aquelas coisas que só uma mão direita sabe fazer.

E parem de pensar em sacanagem, eu estava falando de usar abridor de latas e coisas do gênero.

P.S.: Sacanagem! Achei que ia dar tempo de assinar seu gesso...

Tyler Bazz disse...

Tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc... punheteiro.

The New Me disse...

Oh meu Deus!!!
Tá eu sabia que ai ter alguma sacanagem no final, mas o texto é lindo. E, sim, eu cliquei nos links pra ouvir as músicas enquanto lia, lol!!!!

Filipe Ribeiro disse...

Prezado Rob Gordon,

Por obiséquio, sempre que possível continue usando recursos audiovisuais em seus posts, ficou simplesmente sensacional.

Parabéns por (mais um) post "inadjetivável".

Sil disse...

A-do-rei!

Que bom que tirou o gesso!

Escreva, escreva muito, seus leitores agradecem.

Beijos e bom fim de semana.

Melinda Bauer disse...

Agora já podemos (para comemorar)unir nossas mãozinhas e bater palminhas!!
Beijos Gordon Mãos de Teclado!

Boneca Falante disse...

mas rob, esse texto é, definitivamente, um gol.