23 de dezembro de 2010

Itikarê

Um dos presentes de Natal que vou dar este ano para minha avó é um porta-retratos, já contendo uma foto que mostra ela com meu sobrinho no colo. A foto eu já tinha, precisava somente sair atrás do porta-retratos. Então, fui até uma lojinha de presentes que tem aqui ao lado de casa (fica na Fradique ou na Mourato, eu nunca consegui decorar qual é qual) em busca disso.

É uma daquelas centenas de lojinhas de presentes que existem em São Paulo, administras por famílias de imigrantes asiáticos. Já entrei em muita delas e confesso que nunca encontrei grandes problemas. Além disso, quem mora em São Paulo já entrou ao menos uma vez em um Stand Center ou Promo Center da vida, e bastam duas horas lá dentro para você aprender meia dúzia de palavras em chinês.

Contudo, esta loja é diferente. Enquanto as outras são razoavelmente organizadas, esta é uma bagunça só. Na verdade, ela deve ter mudado de dono, pois logo que vim morar em Pinheiros entrei lá um dia para comprar alguma coisa e era uma lojinha normal com seus brinquedos vagabundos, bijuterias, bibelôs e os inevitáveis porta-retratos.

Hoje, por outro lado, a loja estava apinhada de mercadorias das mais diversas cores, formas e tamanhos. Se existir um grupo de rebeldes que luta contra a Lei Cidade Limpa, do Kassab, ali certamente é o quartel-general deles.

As prateleiras ficam próximas umas das outras, e incluem dragões chineses, coisas que não consegui identificar, mas cuspiam fumaça no ar e um macaco de pelúcia imbecil que assovia quando alguém passa por perto. Aposto que se eu procurasse com cuidado, certamente encontraria um mogway (gremlin, para os não iniciados) por R$ 29,90.

Some isso ao fato que a iluminação do lugar remete diretamente à idade das cavernas e pronto: eu estava na Xangai dos anos 20.

E, no meio de tudo isso, uma poltrona, ocupada por uma velha que deve ter nascido na época da China medieval. Sim, de todos os lugares que ela poderia colocar sua poltrona (porque atrás dos balcões laterais há espaço), ela decidiu, sabe-se lá o motivo, se instalar num dos únicos corredores livres, exatamente no meio da loja. E ela passa o dia ali, provavelmente fumando ópio e atrapalhando a passagem de todas as pessoas. Alguém precisa urgentemente aconselhar a velhinha a procurar outro consultor de feng shui, porque o atual, aparentemente, não manja muito do assunto.

E o problema é que não a vi quando entrei na loja. Era tanta informação visual que foi difícil detectar a velhinha ali. Assim, eu estava na loja há menos de dez segundos quando a velhinha (provavelmente alertada sobre a minha presença pelo macaco, que soltou um assovio ensurdecedor quando me viu) se materializou do meu lado, fazendo com que eu desse um pulo para trás, quase derrubando uma boneca de porcelana.

Em pé, ela deveria ter uns 80 centímetros. Pela primeira vez na vida, descobri como as pessoas altas se sentem. Ela olhou para mim e deu as boas vindas da forma mais sucinta da história:

– Oi! Oi!

– É... Oi, tudo bem?

– Oi! Oi! Oi!

Será que ela é um brinquedo, uma boneca que anda e fala “Oi! Oi!”? Achei melhor não procurar outra vendedora para perguntar qual o preço da velhinha (e se ela já vinha com pilhas) podia dar briga lá dentro.

– Oi! Oi!

Olhei para ela. Algo me dizia que ela queria saber o que eu queria lá dentro. Meus neurônios começaram a gritar para que eu respondesse “eu estou procurando por um mestre Jedi chamado Yoda”, mas me contive. Fui sincero.

– Eu queria um porta-retratos de 10x15cm.

A velhinha deu meia volta e fui para um dos balcões. Eu fui atrás, tomando cuidado para não esbarrar em nada e certo de que, a qualquer momento, o Harrison Ford podia atravessar a loja correndo e dando tiros em um replicante. Me apoiei no balcão e a velhinha, do outro lado, apontou uma prateleira atrás dela, com diversos portas-retratos.

– Itikarê?

– Oi?

– Itikarê? – ela repetiu, apontando um dos porta-retratos.

– Isso, porta-retratos.

Ela estendeu a mão e pegou um álbum de fotografias do outro lado da prateleira e depositou no balcão.

– Não, não é o álbum. É o porta-retratos.

– Oi! Oi!

– O porta-retratos! Ali! – eu apontei.

– Retrato! Retrato! – ela repetiu, batendo no álbum.

– Não, olhe... É um retrato só. Não são muitos. É um porta-retratos.

– Oi!

Tive uma ideia. Peguei a foto da minha avó (eu levei na loja para eles colocarem a foto no porta-retratos antes de embrulhar para presente) e coloquei-a no balcão, ao lado do álbum, em pé.

– Porta-retratos!

– Retrato! – ela respondeu, batendo no álbum com mais força.
Eu guardei a foto e apontei novamente para os porta-retratos da prateleira.

– Aquele ali. Um.

– Itikarê? – ela respondeu, apontando um deles.

– Isso, o porta-retratos.

Ela estendeu o braço e pegou um porta-retratos que parecia um móbile, com espaço para umas 12 mil fotos. Mesmo se meu sobrinho vivesse por 500 anos ele conseguiria ter fotos suficientes para ocupar aquela merda inteira.

– Não, é o do lado. Aquele para uma foto só.

– Itikarê?

– Isso. Aquele ali. O itikarê ali, de metal.

Ela pegou o porta-retratos e me entregou. Para minha sorte, havia uma etiqueta de preço no porta-retratos, caso contrário eu ficaria até o carnaval tentando descobrir quanto aquilo custava.

– Posso ajudar?

Olhei para trás e uma menina de uns vinte anos de idade estava em pé, ao lado da poltrona.

– Sim, sim. Eu quero este porta-retratos aqui.

- Oi! Oi! Oi! – opinou a velhinha.

– Pode vir até o caixa pagar?

Fui, paguei e, minutos depois, estava saindo da loja com o porta-retratos já com a foto da minha avó com seu bisneto e embrulhado para presente. Estava saindo da loja quando passei ao lado da poltrona, e a velhinha resolveu se despedir de mim.

– Itikarê?

– Itikarê – eu respondi sorrindo.

– Oi!

– Feliz natal para a senhora também.

– Fiuuuuuuuuuuuuuuuuu, acrescentou o macaco que assovia.

Sai da loja e apertei os olhos, que já estavam desacostumados com a claridade.

Guardei minha carteira, resmunguei um “forget it, Jake. It’s Chinatown”, e voltei para casa.


7 comentários:

Marina disse...

Sempre tem esse macaco que assovia. Ainda tem gente que ache graça naquilo?

Tyler Bazz disse...

"O itikarê ali, de metal."

Quase engasguei aqui de rir aHUahuAHUahuaHUAhua

Ana Savini disse...

Fazia algum tempo que eu não gargalhava tanto com um post seu.
=D

Varotto disse...

Um dia você vai descobrir que itikarê deve significar "escolhe logo, baixinho careca filho da puta", ou qualquer coisa semelhante...

Renata Santos disse...

Sei não, Rob, mas kare em japones quer dizer namorado, acho que a sra. tava te cantando, em japones que é o idioma que ela achou mais tranquilo.
Só com vc!

Alessandra Costa disse...

"Pela primeira vez na vida, descobri como as pessoas altas se sentem."
Nossa, eu ri muuito, esses posts são os melhores, com certeza :D

Climão Tahiti disse...

Nossa.

No final só faltou citar Lopan.