30 de agosto de 2010

Diploma

Quando eu era criança, o meu time foi campeão brasileiro.

Não, comecei errado.

Quando eu era criança, eu ia para o colégio num ônibus escolar.

Isso aconteceu até eu o final da sexta série, o último ano onde eu estudei à tarde. No ano seguinte, as turmas da sétima série eram de manhã, e eu passei a ir para a escola de carro, com meu pai ou minha mãe, e voltando de ônibus normal (o lendário Aeroporto – Perdizes, que esteve presente em boa parte da minha vida).

Mas, todos os dias até o final da sexta-série, eu ia até a esquina da rua onde eu morava e esperava pelo ônibus, por volta das 11h30min da manhã. E, todos os dias, por volta das 18h00min, o ônibus parava na mesma esquina e eu descia, provavelmente mais cansado e mais sujo – especialmente nos dias em que eu tinha aula de educação física – com minha mala nas costas, correndo para casa.

Apesar de eu sempre ter me dado muito bem na escola, com bons amigos e histórias para contar (apesar de que, como toda criança, sofri bastante com timidez), a ida e a volta para a escola era uma das partes mais divertidas do meu dia. Eu tinha muito amigos ali dentro e, como era de se esperar quando você reúne um grupo de crianças dentro de um ônibus, íamos bagunçando na ida e na volta.

Aproveitávamos que todo o dia o motorista fazia o mesmo trajeto, na ida e na volta, e sabíamos justamente quais eram as ruas mais divertidas. Sim, nós usávamos o trajeto do ônibus para nos divertir.

Uma das ruas, por exemplo, tinha três lombadas, uma atrás da outra. Aliás, esse era o nome dela: “a Rua das lombadas”. Assim que ele virava esta esquina, nós corríamos para o corredor e cada um se apoiava nos braços dos bancos. Conforme ele passava pela lombada, aproveitávamos o balanço do ônibus e tomávamos impulso com os braços, para, literalmente, decolar. O herói do dia era quem conseguia bater a cabeça no teto do ônibus – eu consegui algumas vezes.

Quando ele entrava em outra rua, era a hora de escorregar. Era uma enorme ladeira e nós aproveitávamos a inclinação do ônibus para deslizar sentados pelo corredor, o que – dependendo da velocidade do veículo – tinha como resultado um emaranhado de crianças, emboladas umas sobre as outras num verdadeiro nó de braços e pernas, que demorava um ou dois quarteirões para ser completamente desatado.

Na verdade, até quando estávamos comportados nós estávamos bagunçando, já que não íamos sentados no banco, e sim sobre o tampo do motor, que ficava no fundo do carro. E íamos rindo e gritando, ou fazendo a última parte da lição que fingíamos ter feito em casa.

Curiosamente, uma das cicatrizes que eu tenho da infância nasceu no ônibus, mas justamente num dia em que eu não estava fazendo nada de errado. Eu estava andando pelo corredor em direção à porta, pois desceria em alguns minutos.

Mas alguma coisa no trânsito – uma fechada, talvez? – fez com que o motorista freasse bruscamente. Todos foram impulsionados à frente, e eu, em pé, não consegui me agarrar em lugar nenhum. Ou seja, saí voando pelo corredor. Não lembro quantos metros eu voei, mas sei que meu queixo aterrissou em um dos cinzeiros de metal (aqueles que parecem uma caixinha, e que nós usávamos para colocar papel de bala) na ponta dos braços do banco. Não precisei tomar pontos, mas minha barba ainda tem uma pequena falha no queixo por causa desta cicatriz.

Porém, um dos motivos de eu adorar o ônibus era o motorista, o “Seu” Álvaro. Não sei quantos anos ele tinha, mas estava mais próximo de um avô do que de um pai. E tinha bastante tempo de profissão – anos antes, havia levado meu irmão para a escola – e seus filhos o seguiram na mesma profissão. Era respeitadíssimo, tanto dentro da escola como por nós, crianças.

Às vezes, quando passávamos dos limites, ele estacionava o ônibus, saía da sua cadeira e ia até o começo do corredor, dando um esporro federal – nós corríamos para o banco e ficávamos em silêncio, olhando um para o outro com o rabo do olho, evitando olhar diretamente para ele. E ninguém retrucava. Mas, na maior parte do tempo, ele agüentava nosso barulho e nossa bagunça, desde que não violássemos a regra número 1 do ônibus: jamais colocar braços e cabeças para fora da janela.

E nós o adorávamos. Ele não apenas nos levava à escola, ele nos conhecia. E sabia exatamente como tratar cada um – o que fazia cada uma das crianças sentir que era diferente. Cada um de nós sentia que era o preferido do “Seu” Álvaro. Cada um de nós o via como um terceiro avô – ou, no meu caso, como o único avô, já que meus dois avôs morreram quando eu estava na primeira série.

Assim, o “Seu” Álvaro sabia exatamente qual a maneira de brincar com cada um dos seus pequenos passageiros. Comigo? Bem, não demorou muito tempo para ele perceber que, quando eu era criança, bastava qualquer pessoa encostar o dedo em mim para eu morrer de cócegas. Então, às vezes, quando eu entrava no ônibus e o cumprimentava, ele me dava “oi” me cobrindo de cócegas na barriga e nas axilas, o que fazia com que eu literalmente caísse no chão gargalhando e implorando para que ele parasse. E, quando ele se dava por satisfeito, me soltava e engatava a marcha, fazendo o ônibus andar, dizia, sorrindo:

– Você parece um saco de risadas.

Às vezes, porém, eu passava dos limites. Nessas ocasiões, ele percebia que toda a bagunça que acontecia lá atrás era – ao menos naquele dia – por minha causa. Assim, ele encostava o ônibus numa rua e se levantava. Cada um de nós corria para o banco mais próximo, mas ele apenas olhava para mim e me chamava:

– Aqui na frente.

E assim eu estava oficialmente de castigo. Era obrigado a pegar minhas coisas e me sentar no banco imediatamente atrás dele. Logo, a bagunça recomeçava – em menor intensidade – lá atrás, e eu ficava sentado com cara de bunda lá na frente (umas duas vezes eu aprontei tanto que meu castigo ganhou um upgrade: ao invés de me sentar no primeiro banco, eu tive que me sentar na escadinha perto da porta).

Mas a minha cara de bunda não durava muito. Minutos depois, ele escorregava a mão para trás e me cobria de cócegas ou apertava o meu joelho daquele jeito que dói, mas que você não consegue parar de gargalhar (da mesma forma que eu apertava a mão do meu primo mais novo, fazendo-o dobrar os joelhos de tanto rir e tentando escapar). E aí eu percebia que o “Seu” Álvaro não estava mais bravo comigo.

Ou seja, eu achava que era especial para o “Seu” Álvaro, justamente porque toda criança achava que era especial para ele. Este era o truque dele.

Aliás, acabei de me lembrar outra história dele. Durante uns dois ou três anos, o neto dele (“neto”, mesmo, de verdade) estudou na mesma escola que a gente e ia para o colégio no ônibus. Era um menino loirinho, mais novo que eu, que era famoso porque havia estrelado uma propaganda de uma maionese, que acho que nem existe mais, chamada Gourmet. Na propaganda, alguém falava alguma frase com “não dá para agüentar tal coisa” e o menino respondia:

– Passa Gourmet que dá!

Não é preciso ser um gênio para adivinhar que o menino passou a ser chamado de Gourmet no ônibus – mas claro que ninguém tinha coragem de chamá-lo assim na frente do “Seu” Álvaro. Afinal, era o neto dele.

Um dia, o menino aprontou alguma coisa (não lembro exatamente o que, se quebrou algo ou brigou com alguém) e a temível estacionada no meio do caminho foi por causa dele. O “Seu” Álvaro se levantou e deu um baita esporro no menino. E, quando o garoto protestou, usando justamente que o “Seu” Álvaro era o avô dele, o velho motorista respondeu apenas:

– Aqui dentro você não é o meu neto. Aqui dentro você é o Gourmet.

Nós ficamos espantados, mas divididos. Metade de nós se espantou com o fato de que o “Seu” Álvaro conhecia o apelido do neto, enquanto a outra metade se espantou com o fato de ele mesmo oficializar o apelido naquele momento. Naquele dia, o menino perdeu seu nome para sempre, ao menos dentro do ônibus. Naquele dia, ficou claro que todos nós éramos netos do “Seu” Álvaro, talvez mais netos que seu próprio neto.

Mas, como eu estava dizendo, quando eu era criança meu time foi campeão brasileiro. O jogo foi no início de 1987, e referia-se ao campeonato brasileiro de 1986. E eu me lembro que foi numa quarta-feira.

No dia seguinte, eu entrei no ônibus com o peito estufado. Todos meus amigos sabiam qual o meu time. Como toda criança, eu não sentia que o meu time era campeão, mas sim que eu era o campeão. E, no momento em que subi a escada, não fui recepcionado com cócegas.

O “Seu” Álvaro apenas se virou para mim e disse:

– Eu tenho um presente para você. À tarde eu entrego.

Não fazia idéia do que poderia ser. A tarde se passou e eu ocupado com outras coisas na escola, acabei deixando aquilo de lado. Horas depois, juntei meu material e entrei no ônibus para ir embora. E o “Seu” Álvaro me chamou.

– Isso é para você.

Era um pedaço de papel, cartonado, como se fosse um diploma, com uma moldura desenhada em todas as bordas. No centro, estava o distintivo do meu time e, logo abaixo, a inscrição “Campeão Brasileiro – 1986”. Mas, acima do distintivo, uma frase escrita em negrito me chamou a atenção:


“Nenhum sucesso na vida
compensa o fracasso no lar.”


Como toda criança que ganha um presente, não soube bem como reagir. Agradeci encabulado. Naquele dia, eu não fui vítima das cócegas quando me aproximei dele para descer do carro. Ele apenas me perguntou se eu havia pegado o meu presente, eu disse que sim e me despedi. No dia seguinte, tudo voltou ao normal, e eu me tornei o saco de risadas já na escada do ônibus, logo que entrei.

Mas nunca esqueci aquele diploma.

E eu nunca esqueci aquela frase.

Passei anos pensando sobre ela, sobre o significado dela. Teoricamente, este papel ainda está enfiado nas minhas coisas na casa da minha mãe. Tomara que esteja. Mas, mesmo se não estiver... Acho que não tem problema. Com ou sem papel, a frase ainda está comigo.

Eu nunca agradeci ao “Seu” Álvaro por isso como deveria. Nem mesmo quando o encontrei anos depois. Ele já havia largado a profissão e – olhe que mundo pequeno! – passado a trabalhar com a mãe de um dos meus melhores amigos. Fui um dia até lá, cumprimentá-lo, e ele se lembrava de tudo: não apenas do meu nome, mas de como eu passava mal de rir com as cócegas e do quanto eu aprontava dentro do ônibus. Ele não disse nada sobre o diploma, mas ele se lembrava. Eu sei que ele se lembrava.

Quando me despedi dele nesse dia, não imaginava que nunca mais o veria.

Mas nunca o esqueci.

Nunca soube por que ele escolheu logo a mim para receber aquele diploma. Nunca entendo o que ele viu em mim, que não viu nas outras crianças. Sei que foi, sim, muita sorte da minha parte. Esta frase até hoje guia muito dos meus passos. Hoje, eu vejo que talvez eu fosse realmente especial para o “Seu” Álvaro, mais especial que os outros meninos e meninas que andavam no ônibus.

Ou talvez ele tenha feito algo parecido com todas as crianças, e até hoje todas elas acham que eram mais especiais para ele que os outros meninos. Afinal, como eu disse, este era justamente o truque dele.

Mas, truque ou não... Não importa.

Porque funcionou. Ao menos, comigo.


(Nota: Eu não esqueci do outro aplicativo do meu celular, mas, algumas histórias têm o momento certo de serem contadas. )

17 comentários:

Anônimo disse...

Emocionante. Sério. Aliás, daria um curta bem legal. Alguns senhores passaram pela minha infância também. Incrível como ficam na nossa memória.

Fabi disse...

: )



[SE VOCÊ NÃO PARAR DE ME FAZER CHORAR A CADA POST, PÁRO DE LER ESTA BIROSCA, OK? OK.]

Sil disse...

Lindo texto, muito emocionante, me fez chorar.

É muito bom poder ter lembranças como essa, um privilégio que, felizmente, você soube aproveitar.

Beijo

Varotto disse...

A condução que me levava para a escola até a quarta série (depois me mudei para bem perto e passaei a ir a pé) em um Aero Willis verde-piscina enorme (cabia um monte de crianças), mas não cabia a mesma quantidade de bagunça que um ônibus.

Bom texto...

Ana Savini disse...

“Nenhum sucesso na vida
compensa o fracasso no lar.”

Foda isso...

Anônimo disse...

Que texto DOCE Rob, um encanto que me emocionou (mais uma vez, diga-se de passagem).

Claudia Iarossi disse...

Que texto DOCE Rob, um encanto que me emocionou (mais uma vez, diga-se de passagem).


Não sei porque saiu anônimo acima
:(

Dani Cavalheiro disse...

Triste mesmo é quando o fracasso na vida acompanha o fracasso no lar. E mais triste ainda é quando o fim chega e não se pode redimir o que se fez. É, eu estou triste, muito triste, perdi muita coisa em muito pouco tempo, e vc ainda me vem com esse post, eprincipalmente com essa frase... chorei.

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Porra rob, eu numa crise existencial na minha vida, e me deparo com um texto desses...

os olhos já estavam marejados no segundo parágrafo.

obrigado

Natalia Máximo disse...

Estava pensando em escrever exatamente sobre um senhor que passou na minha vida, hoje, por sinal. Foram os cinco minutos mais agradáveis do meu dia.

Queria ter tido um Seu Álvaro para chamar de meu...

Anônimo disse...

E é incrível como o Rob pode ser tão sensível...

Otavio Oliveira disse...

putz, bateu saudade do seu aminthas - de quem eu me despedi dando de presente a ele uma miniatura de kombi, aos 7 anos - e do jovelino, que me levou para a escola até o último dia de aula do 3º ano do ensino médio...

Nelson disse...

Lindo texto, Rob.

Acho que todos temos um "Seu Álvaro" na vida. Eu tenho uns cinco, isso contando por baixo. Acho que dei sorte na vida.

Jullia A. disse...

Eu tenho o 'Marcos da van'.. COmo eu nao gostava das musicas do radio, ele me deu o titulo de DJ da van todos os dias de manha.
Agora ninguem gosta de mim. (:

MarianaMSDias disse...

Rob, a primeira nota que eu quero deixar é: é impossível que vc, criança, conseguisse saltar e bater a cabeça no teto do ônibus se é CERTEZA que nem mesmo HOJE vc conseguiria...

Dito isso, que foi só para não perder o costume, quero ponderar o seguinte:

Eu tive um pai (o biológico, pq na verdade eu tenho 2, e o meu pai mesmo não é o que me passou seus genes...) que teve muito sucesso profissional. Ele era admirado e considerado muito "inteligente" por todos à sua volta.

Um dia conversando com a sua secretária, que o acompanhou por muitos anos, eu comentava que não entendia como ele podia ser tão "inteligente" e não ter sido capaz de construir uma família feliz (ele casou-se 4 vezes, sempre menosprezando todos à sua volta). Ela me respondeu: Mariana, não acho que ele seja inteligente, ele apenas detém muita cultura. Um homem inteligente tem uma vida emocional equilibrada e uma família que se orgulha de tê-lo ao lado.

Rob, independente de sucesso profissional, dinheiro e aplicativos de zumbis, a gente tem que ser inteligente para ver como as pessoas felizes vivem e buscar a felicidade para nós. A felicidade vem de dentro, em conhecermos nosso valor, em sabermos quem somos e o quanto bons somos. Depois disso, e apenas depois de sabido isso, dar à outra pessoa a honra de conviver conosco e ter a honra de conviver com ela, que certamente será maravilhosa! Porque quem é maravilhoso escolhe pessoas maravilhosas.

A família cresce onde as pessoas se respeitam e o respeito só existe onde há amor. Como vcs, crianças, respeitavam o "Seu" Alvaro, porque sabiam que ele as amava.

Respeitar o outro e se fazer respeitar (porque somos todos dignos de respeito, independente de qualquer coisa). Essa é a chave do amor. E do sucesso!

Muito,muito sucesso para vc! ;o)

Eduardo Chaves disse...

Putzz...

impressionante como a vida de Rob é feita de emoções..

..o prazer como ele descreve momentos tão simples, tão singelos..

..ele não escreve só a vida dele, ele escreve a nossa (mesmo sem nos conhecer)

Simone J. disse...

O "Seu" Alvaro me pareceu daqueles pessoas especiais e iluminadas, que param para olhar a gente e prestar atenção no que estamos falando, e é dificil gente assim.
Quanto ao texto, morri de rir ao ler: "– Aqui dentro você não é o meu neto. Aqui dentro você é o Gourmet". E logo em seguida comecei a me emocionar com o diploma e frase (bem verdadeira) sobre sucesso e o lar.
Ótimo post, me prendeu do inicio ao fim, e me fez lembrar da época da minha condução, em que tinha a "tia Suzana" que eu adorava, e que quando teve que ir embora (p/ sua cidade natal), me deixou uma cartinha escrita com canetas coloridas que guardo na minha caixinha até hoje.
Pequenos momentos em nossas vidas, mas que de alguma forma ficam para sempre.