23 de julho de 2010

Kong - A Barbeira Demoníaca da Rua Cardeal Arcoverde

Quando eu comecei a trabalhar em Pinheiros, antes mesmo de me mudar para cá, descobri que na Cardeal Arcoverde, existe um pequeno corredor repleto de salões de beleza, cabeleireiros e barbeiros.

Fica bem perto da redação, entre a Pedroso de Moraes e o Largo da Batata, em meio aos botecos decadentes e aos puteiros com nomes escrits em neon (o “escrits” não foi erro de digitação, mas sim uma homenagem ao fato de que o neon destas casas noturnas invariavelmente tem uma das letras queimadas). Ou seja, já faz anos que eu corto o cabelo em um cenário que lembra a Los Angeles de Blade Runner, mas habitada pelos personagens de Mad Max.

Porque eu corto lá? Porque é barato. Como eu não sou internacionalmente conhecido pela cabeleireira, desde os vinte e poucos anos eu uso o cabelo raspado. Antigamente, era ou máquina um ou máquina zero, mas, por ordens expressas da Sra. Gordon, pulei para máquina dois. E faço o mesmo com a barba: máquina dois.

Assim, como eu apenas raspo a cabeça, me recuso a pagar os trinta, trinta e poucos reais de um barbeiro normal. Afinal, num curso de barbeiro, “raspar a cabeça” não deve ser uma das matérias mais difíceis do currículo – se a pessoa pegar DP disso, melhor trancar o curso e ir tentar outra coisa da vida.

Hoje, como as coisas na redação estavam mais tranqüilas, aproveitei que estava na hora do almoço e fui para lá, pois a situação já estava feia: como sou careca, e a barba também estava grande, eu estava parecendo uma espécie de chaveiro do Rasputin. Assim, almocei mais rápido e fui pra minha “sessão mulherzinha”.

E, como de costume, assim que coloquei os pés na calçada daquele quarteirão, começaram as propostas. Se você nunca passou por ali, explico: cada salão de beleza tem uma emissária, que fica na calçada, oferecendo seus serviços aos pedestres. Mais ou menos como uma prostituta capilar.

– Qué cortá?

– Vâmu arrumá esse cabelo, gato?

– Tem menina nova na casa, campeão. Quer conhecer? (esse, claro, não é barbeiro, mas sim o porteiro de uma das casas com o nome escrits em neon).

– Tá n’óra de apará esse barba, amô!

Eu ignoro todas. Porque sempre fui fiel a uma das casas, que leva o singelo nome de Arquitetos da Beleza. Eu sei. Pode rir. Pode zoar nos comentários. Eu zoaria. O nome é tosco. Mas não vou lá por causa do marketing bem elaborado e agressivo, e sim porque é um dos únicos limpos que existem ali na região.

O problema é que sempre vou lá, sou atendido por uma pessoa diferente. A coisa funciona assim: na recepção, digo o que quero (cabelo e barba) e a menina vê quem está livre. O problema é que sempre dá confusão, porque nem todos que trabalham ali sabem fazer barba (aparentemente, isso é um segundo estágio no mundo dos salões de beleza).

Assim, já peguei profissionais excelentes (um deles foi um sósia do Ian Gillan, mas com idade para ser avô do vocalista do Deep Purple, que me deixou com uma das barbas mais bem feitas na vida), como gente mais tosca, que não domina tão bem a arte da tesoura.

Mas sempre deu para o gasto, especialmente em vista do preço que pago, que sempre gira em torno de 10, 12 reais. Mas hoje a coisa foi diferente. Entrei ali carregando minha Placar e fui até a recepção. Dei boa tarde e pedi:

– Quero cortar o cabelo e aparar a barba.

– Só tem a Kong disponível.

– Oi?

A recepcionista me ignorou e pegou um microfoninho tosco que fica ao seu lado, começando a falar: “Kong, recepção. Kong, recepção”. Meu sentido de aranha disparou.

A terra começou a tremer. Primeiro, de leve, de forma quase imperceptível. Aos poucos, os tremores aumentaram de intensidade. Copos começaram a tremer, canetas rolavam pelo balcão e caiam no chão. E não paravam de aumentar – em determinado momento, tive que me agarrar ao balcão da recepcionista para não ser jogado ao chão.

– É cabelo e barba?

Olhei para o lado e lá estava a Kong. Devia ter uns 25 anos, morena, cabelos pretos e lisos. Quase 1.90m de altura e um peso que tinha, facilmente, três dígitos. Em arrobas.

Na mão, uma navalha.

Não vou sair vivo daqui, pensei. Meu sentido de aranha aparentemente concordava, tanto que ele nem se preocupou em me alertar do perigo. Na verdade, ele gritou algo como “eu te espero na Fnac” e saiu correndo Cardeal Arcoverde acima.

Eu estava sozinho.

– Você pode me acompanhar?

E eu era homem de dizer “não”? Claro que fui, tentando ignorar a navalha na mão dela. Cruzamos todo o salão e ela se aproximou da última cadeira, no canto mais escuro e desolado do local. Ao lado dela, uma gaiola com três periquitos – provavelmente, era sua marmita.

Contudo, assim que ela se aproximou da sua estação de trabalho, reparou que a cadeira estava afastada do espelho. Assim, sem grandes cerimônias, ela ajeitou a posição do móvel dando-lhe um chute, com a delicadeza de um zagueiro argentino disputando uma final de Libertadores.

Os periquitos ficaram em silêncio. Eu também.

Olhei para eles com uma expressão de “vou morrer”, e eles me devolveram o olhar, concordando.

Sentei-me à cadeira e ela começou a levantá-la, usando aquele pedal que ergue a cadeira um pouco a cada vez que é apertado. Ok, eu sou baixinho. Normalmente, o barbeiro precisa pisar no pedal umas quatro vezes, mas oito (sim, eu contei) como a Kong fez, já é exagero.

Assim, lá estava eu, balançando os pezinhos e numa altura equivalente à Cordilheira dos Andes – mas ainda assim menor que ela – quando a Kong perguntou:

– Como você quer o corte?

Tentando esquecer o fato de que tenho medo de altura, ainda estava me acostumando com o vento e o ar rarefeito da altitude. Logo, não pude responder “tanto faz, só seja gentil comigo, por favor, eu não quero morrer”, mas, sem oxigênio suficiente para isso, resmunguei apenas um “máquina dois em tudo”.

Sem esconder a decepção, ela largou a navalha e pegou a máquina, ligando o aparelho. Máquinas de raspar cabelo normalmente já têm um barulho desagradável, mas a da Kong deveria ser um modelo único e feito sob medida, pois ela não fazia ruídos, e sim guinchava como um porco sendo esfolado vivo.

Com os olhos injetados de sangue e salivando, ela aproximou aquilo da minha cabeça e começou a cortar meu cabelo. A primeira passada e a segunda de máquina passada foram tranqüilas, mas a terceira quase arrancou minha orelha esquerda.

– Ai!

– Mal aí.

E quase arrancou minha orelha de novo. Felizmente, sou careca, e, sem mais o que cortar ali, ela logo teve que mudar para o outro lado – mais umas duas passadas de máquina iguais àquela, e eu teria que a) correr para o Hospital das Clínicas com minha orelha no bolso, ou b) aceitar meu destino e mudar logo meu nome para Vincent van Rob.

Evidentemente, quase perdi a orelha direita também. Me senti como um daqueles soldados da Guerra da Secessão que são obrigados a amputarem suas pernas tendo somente meia garrafa de rum como anestesia. E não, não havia rum ali. Aliás, eu estava próximo ao Largo da Batata: qualquer bebida alcoólica que vendesse ali me prejudicaria mais que a perda das orelhas. Assim, fechei os olhos e agüentei firme – para não irritá-la, eu baixei o tom de voz dos meus “ai!”.

A barba foi mais tranqüila. Tirando, claro, as duas vezes em que ela colocou metade da máquina dentro da minha narina direita ao aparar meu bigode. Minto. Ela não estava aparando meu bigode; o termo correto era “arando”. Se ela usasse uma enxada, talvez doesse menos.

Quando ela desligou a maquininha, percebi um silêncio estranho no ar. Discretamente, tateei as laterais da minha cabeça para checar se minhas orelhas ainda estavam ali. Estavam. Mas havia algo de errado.

Os periquitos. Os periquitos estavam em silêncio, como normalmente os pássaros ficam, quando sentem um predador por perto.

Olhei para baixo – sim, eu estava mais alto que a gaiola – e entendi o motivo da ausência de trinados. Dois deles estavam pálidos e escondidos num canto, e o terceiro havia se enforcado na gaiola com um cadarço velho.

A Kong ignorou tudo isso.

– Você quer lavar o cabelo.

Sim, assim mesmo, com ponto final. Ela não perguntou nem ofereceu, ela determinou que eu queria lavar o cabelo.

– Não, obrigado, eu estou com um pouco de pres...

– Você quer lavar o cabelo.

– Ok...

Chutou o pedal e a cadeira desceu novamente, como um daqueles elevadores que despencam em parques de diversões. Quase fui ao chão com o impacto.

Ela já estava me esperando em uma daquelas cadeiras especiais para lavar o cabelo. Olhei ao redor e percebi que ela estava entre eu e única saída. Não havia como escapar.

Aproximei-me e, disfarçadamente, procurei vestígios de sangue no lavatório. Nada. Tive certeza de que ela limpa aquilo após cada vítima, aquilo tinha cara de ser um abatedouro. Aposto que o pessoal do CSI faria a festa ali com uma garrafa de luminol.

Sentei-me, protegendo meu peito com os braços, feito uma virgem passeando de biquíni por dentro de um presídio. Fechei os olhos e respirei fundo. Água quente começou a cair pela minha cabeça. Senti algo gelado e imaginei que era o xampu.

Só deu tempo de imaginar.

Levei uma porrada na cabeça que me deixou zonzo. E outra. E mais uma. Eu não era mais um Rob Gordon, eu era uma massa de pão. E ela ali, socando o xampu na minha cabeça. E tomo socos, tapas, e puxões, e espirra xampu para todos os lados. Como diria Chico Buarque, “ela fez tanta sujeira, lambuzou-se a tarde inteira, até ficar saciada”.

E, finalmente, ela ficou saciada.

“Com um suspiro aliviado, eu me virei de lado, e tentei até sorrir”. Não consegui. Ela já havia enfiado uma comanda na minha cara.

– Pague no caixa.

Os dois periquitos que ainda permaneciam vivos, vendo que ela havia terminado comigo, se agitaram na gaiola. Agradeci a Kong, fazendo questão de pedir desculpa por qualquer coisa e fui até o caixa. A menina pegou minha comanda e resmungou:

– Deu 15 reais.

– Oi?

– 15 reais.

– Não, está errado. Foi cabelo e barba.

– Ela cobrou apenas um corte.

Então é isso. Como se não bastasse a surra que levei e o terror moral que fui obrigado a experimentar, ainda tive que sair de lá humilhado.

Sou tão careca que pago meia para cortar o cabelo. Ô fase.

24 comentários:

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Arquitetos da beleza... Essa daí comprou o diploma hahahahaha.


Agora a recepcionista tentou te avisar, quando ela disse: "só tem a Kong" era pra você já ter corrido de volta pra redação...

Renata Santos disse...

IDIOTA! Vc come adubo no café da manhã? Não é possível ter uma imaginação tão fértil!?!
Estava de saída e não resisti parar tudo para ler seu texto! Fico duca.
Agora de verdade, vc deve ser feio à beça, pq só alguém meio ogro vai a um salão chamado Arquitetos da Beleza. Coisa de amador!
Enfim Rob, pena que vc só saiu de lá humilhado, eu teria saído também ofendida, pq me ofendo, ressinto, quando alguém lava meus cabelos no modo heavy metal.
Mto bom!!!

Otavio Oliveira disse...

Muito engraçado, mas fiquei cismado com uma coisa: se você estava na LA de Blade Runner, tudo leva a crer que a Daryl Hannah e o Rutger Hauer cortam e pintam o cabelo nos Arquitetos. E ainda assim vc quis ir até lá... Eu teria medo.

Thiago Neres disse...

Morrendo de rir aqui e vou twitar e indicar para meus amigos.

Acho que a sua ex-síndica Brick Top deve ser cliente dela.

Anônimo disse...

Cliente? A Brick Top deve ser irmã dela!

Agora que já consegui parar de rir um pouco, deixe-me dizer que qualquer coisa que o Rob conte fica tão visual que parece desenho animado com todos aqueles exageros.

Valeu pelas muitas risadas!

Brunín Assis disse...

Reclama não... eu não tenho um pedaço da orelha por conta de um Edward-mãos-de-tesoura. E olha que ele já conrtava meu cabelo desde que eu era um bebê.

@ofrango

Bia Nascimento disse...

Salão perto do Largo da Batata?? Olha, meu cabelo sempre me deu muito trabalho, já devo ter ido em quase todos os salões de SP mas nunca tive a moral de ir nesses no Largo dos Infernos.
Chorei de rir com o "Sou tão careca que pago meia para cortar o cabelo."
Só vc mesmo Rob!!!!!

Anônimo disse...

"Chaveiro do Rasputin", huahuahua! Legal que a Kong fala em negrito, né? E adorei a parte que o seu sentido de aranha saiu correndo e foi te esperar na Fnac, hahaha! Muito bom!

Varotto disse...

Cara, ótimo texto, como sempre, e tudo mais...

Mas, sério agora: você ainda paga para cortar cabelo???

Corto o meu à máquina desde cerca de 19 anos e, depois de umas duas ou três vezes em que paguei um barbeiro para fazer isso, eu comprei uma máquina e, resultado, não pago para cortar o cabelo há quase vinte anos. Com certeza minha máquina (que hoje deve custar uns R$70,00) já se pagou umas 250 vezes.

Além do que com sua própria máquina, quem faz o horário é você! (possível slogan brega mode: ON)

Como você disse, raspar a cabeça não deve ser a disciplina mais difícil do curso.

P.S.: Passar máquina dois e lavar o cabelo? Really?!

Lígia disse...

Adorei a menção à Geni. =)

Lucas Reis disse...

Adorei. Um dos melhores textos do seu blog. Bão DemÁs.
Gostei do título que faz alusão ao filme do Sweeny Todd.
Outra coisa: eu acho que existem vantagens de morar em cidade pequena. Aqui onde eu moro, corto o cabelo por R$5. Se for numa dessas escolas de cabeleireiro, consigo por R$2 mais um corte na orelha.

Ri muito.

Thiago Dalleck disse...

Então foi ela que fez a cratera nas obras do metrô de Pinheiros? Sempre desconfiei de algo assim.

Lari Bohnenberger disse...

Socorro!
Que medo da Kong!!!
Só contigo acontecem essas coisas, mesmo, né?
Bjs!

Hong Kong Fu disse...

É dos CARECAS que as Kong's gostam mais!

Ps- Eu pagava mais só para ser tocado por uma mulher um pouco menos feia.

Varotto disse...

Calma Konga, o público é seu amigo!

(Konga, a mulher gorila mode: ON)

Bejörn disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elisangela disse...

"Eu estava curado! Besta-fera havia me curado!"
Primeiro relato que vejo, de alguém q foi Curado por um "BESTA-FERA"
kkkkkkkkkkkkkk...

Uma das melhores coisas que faço pra chegar ao trabalho de bom humor, é ler pelo menos 1 de seus posts antes de sair de casa.
Parabéns e obrigada! =P

Elisangela disse...

errei de posts! muito minha cara fazer isso! rsrs
Mas ta valendo! xD

Bel Lucyk disse...

Tive uma crise de riso lendo e imaginando a cena em que Kong lavou calmamente e delicadamente seu cabelo! kkkkkk
mbo bom!

Ana Savini disse...

"...e o terceiro havia se enforcado na gaiola com um cadarço velho."
Doente.
Hahahahahaha

Carla Leite disse...

Olá Rob, é a primeira vez que visito o seu blog. E sinceramente, ele será meu blog de cabeceira.
Não me contentei em ler o primeiro post para saber a qualidade..
já sabendo do alto nível, ainda assim eu lí outros posts seus!
Muito bom mesmo!

Ironia,humor, excelente escrita!
Muito bom mesmo!
Parabéns.

Se quiser..
Dê uma olhada no meu blog
(não tem comparação rs)

cademinhaneosaldina.blogspot.com

valeu!

Melinda Bauer disse...

Rolei de rir aqui....post sensacional!
O cenário parece com o dos meus pesadelos recorrentes....Quem sabe eu já não encontrei a Kong por lá?

Natan Mestrinelli disse...

Cara, vou ser demitido por sua culpa!
Se o diretor me visse gargalhando na mesa do computador ele não ia acreditar que "Rob Gordon é um mestre da construção-civil e eu estava apenas lendo um artigo técnico enquanto a cadeira faz cosquinha nas minhas costas".

Sil disse...

E eu não aprendo que não posso ler o blog em horário de expediente :D

Texto maravilhoso como sempre Rob, mas vou mandar o telefone de um barbeiro decente(acredite se quiser) na Cardeal, meu marido corta o cabelo lá há 35 anos, a portinha de entrada é tão pequena que passa despercebida, mas o lugar é muito bom ^_^

Imagina se a tal Kong resolve fazer suas unhas da próxima vez...adeus dedos e adeus blog ;)

Beijo

Sil