26 de fevereiro de 2010

Rob Gordon e Velha em: "Ata-me!"

Quem acompanha meu Twitter sabe que estou lendo Duna, do Frank Herbert. Aliás, tem sido quase uma experiência sensorial ler o livro com o calor que tem feito em São Paulo. As pessoas andando no deserto, e eu suando em bicas. Chega a ser um novo conceito de imersão dentro da história, algo que nem mesmo James Cameron conseguiu com Avatar.

Enfim, tenho me apaixonado pelo livro. Estou lendo com calma – ele já é difícil e estou lendo em inglês. Então, toda hora tenho que ficar espiando no final do livro, onde tem um glossário com os termos “técnicos, religiosos, sociais e históricos” de Duna. Assim, leio uma página e corro para o final do livro. Leio outra, e corro para o final do livro. No metrô, as pessoas ficam me olhando com certa curiosidade, do tipo “será que ele não sabe que o livro foi feito para ser lido na ordem?”, mas não me importo.

Aliás, quando estou com o livro nas mãos, não me importo com nada. Me fecho ali no planeta Arrakis e desligo do mundo. A única coisa que me incomoda, em ônibus e metrô, são os malditos office-boys que ficam ouvindo música no celular sem fones de ouvido. Sabe, aqueles que acham que o ônibus inteiro quer ouvir a merda da música (e vocês já repararam como nunca é Mozart?).

E eu declarei guerra a este tipo de gente: toda vez que encontro um deles, fecho o livro e fico olhando fixamente para o aparelho de celular – às vezes os donos percebem isso – tentando usar meus poderes mentais para fazer o telefone explodir na mão dele, mas nunca consegui. Uma vez, consegui fazer a bateria acabar, mas foi só.

Enfim, no último domingo, fui almoçar na casa da minha mãe, e, para ir até lá, pego um ônibus chamado Vila Clara, que é exatamente igual a uma Copa do Mundo, mas sem o charme: ou seja, é a cada quatro anos e olhe lá. Assim, eu estava esperando o ônibus – já lendo o livro – com uma menina atrás de mim.

Eu estava confiante: como os portadores de celulares-berradores-de-funk não existem de domingo, eu sabia que devoraria pelo menos umas 20 páginas do livro no trajeto.

Ou, ao menos, era o que eu imaginava. Tudo mudou quando apareceu ela: a velha.

Antes que vocês comecem a jogar pedras em mim, ela não era uma velhinha, era uma velha. Existe uma grande diferença disso: velhinhas são pessoas meigas que dão bombons aos netos; velhas são aquelas que se entopem de maquiagem, usam roupas cafonas e acham que, por serem velhas, podem fazer o que quiserem na rua. Um exemplo: velhinhas pedem licença para passar na sua frente no caixa do supermercado; velhas te empurram.

Evidentemente que a velha chegou e já veio para o meu lado, reclamando que o ônibus demorava muito. Se fosse uma velhinha, eu teria aberto um sorriso e concordado. Como era uma velha, eu não tirei os olhos do livro e comecei a murmurar – não, resmungar seria um termo mais preciso – todas as orações que conheço, implorando para que ela desistisse logo e se afastasse.

Bem, ela desistiu. Mas não de conversar, e sim de conversar comigo. Foi até a menina e começou a reclamar que “o ônibus demora”, que “isso é um absurdo”, que “todo domingo é esse inferno”. E, evidentemente, como toda velha, sua voz não era das mais agradáveis: na escala de sensualidade e suavidade, ficava entre “arara” e “revoada de corvos”.

E eu ali, tentando ler, torcendo para que a menina fosse uma espécie de Rob Gordon feminino e a) mandasse a velha à merda, ou no mínimo, b) a ignorasse.

Claro que eu estava errado.

A menina, evidentemente, começou a conversar com a velha, dizendo que realmente este ônibus demorava muito de domingo. Assim, a velha embalou na conversa e começou a expor suas opiniões sobre o transporte coletivo de São Paulo.

Fiquei puto com a garota. Minha vontade era virar para trás e dar uma bronca, algo como:

– Você sabe que quanto mais você incentivá-la, mais isso vai demorar para acabar?

Mas não disse nada, porque o ônibus chegou neste minuto.

Entrei, e eu sei que é previsível – desculpem por isso, mas às vezes a minha vida é previsível demais – a velha-arara e a menina entraram no ônibus atrás de mim. Me sentei num banco e fiquei observando as duas, torcendo para que elas se sentassem longe – bem longe – de mim.

Comecei a rezar novamente, implorando a Deus que eu não estava pedindo muito, queria apenas ler meu livro sossegado. Infelizmente, minhas orações caíram na caixa postal divina – provavelmente, Deus não trabalha de domingo e a velha se sentou à minha frente. Eu olhei desconsolado para o meu livro: eu jamais conseguiria ler nada com ela ali.

Mas um fiapo de esperança se acendeu. A menina não se sentou ao lado da velha, mas sim do outro lado do ônibus, deixando a velha sozinha no seu canto. Ninguém, em sã consciência, conversa com uma pessoa que está do outro lado do ônibus. Ninguém. As pessoas conversam com quem está ao seu lado, e a velha não tinha ninguém do lado.

E se alguém se sentasse ao lado da velha, eu fingiria uma convulsão e ficaria chutando o encosto do banco até a pessoa ir embora. Ninguém se sentaria ao lado dela E eu estava determinado a manter este bloqueio político à velha durante todo o percurso, se fosse preciso.

Assim, abri meu livro e comecei a ler. Antes de chegar no final do primeiro parágrafo, a voz dela rasgou (o termo é esse mesmo: rasgou) o ônibus:

– E este calor, não?

Eu apenas levantei os olhos. A velha aparentemente havia decidido furar meu bloqueio quebrando estabelecendo novos padrões de inconveniência. Sem se importar com o fato de a menina estar a metros dela, continuou a conversa (num volume superior a 100 decibéis). E a menina, claro, respondeu.

Agora, os papéis haviam se alterado. A velha deixara de ser especialista em transporte urbano e havia se transformado em especialista em metereologia. E eu havia deixado de ser alguém que não estava conseguindo ler para uma pessoa prestes a ter uma síncope. E, assim, durante metade da Faria Lima, eu fui obrigado a ouvir sobre frentes frias, El Niño e aquecimento global. Aliás, eu devo ter aumentado a temperatura do planeta em pelos menos 2 graus, de tanto que eu bufava atrás da velha, com a (vã) esperança de que ela se tocasse.

Claro que ela não se tocou e foi falando sobre o maldito calor até descer do ônibus, já no final da Faria Lima. Despediu-se da menina e foi para as ruas, provavelmente procurando alguém para conversar.

Fechei os olhos e fiquei alguns segundos imóvel, me deliciando com o silêncio. Eu ainda conseguiria ler pelo menos umas dez páginas.

Sorri de leve, cruzei a perna (pé direito por cima da coxa esquerda, sabe?), abri o livro e voltei a ler.

Havia devorado umas duas páginas quando fui trocar a perna de posição e percebi que não conseguia movê-la, mas apenas um pouco. Sem entender o porquê disso, forcei a perna e consegui me mexer. Foi aí que eu percebi que estava amarrado. Uma espécie de corda branca estava prendendo meu pé à minha perna.

Diversas possibilidades passaram pela minha cabeça, desde o ônibus ser, na verdade, um ninho da Laracna até eu ter me tornado a presa de um grupo de caçadores canibais que estavam escondidos no veículo (sim, porque se isso acontecer um dia, será no ônibus em que eu estiver). E conforme eu me mexia, percebia que estava ficando cada vez mais preso, as cordas pareciam se multiplicar.

Tentei usar as mãos para me soltar e senti que a corda era pegajosa. Ou seja, mais provável ser a Laracna que os canibais. Foi aí que eu resolvi cheirar meus dedos.

Tutti Frutti.

Não era uma corda, era um chiclete.

Algum filho da puta havia cuspido o chiclete no chão do ônibus, e, com o calor que fazia, ele estava totalmente derretido. E adivinhem quem havia pisado nele? Olhando para baixo, vi que todos os lugares pelos quais eu havia passado no ônibus estavam com rastros e tiras de chiclete. Se todos os caminhos levam a Roma, todos os fiapos de Bubbaloo ali levavam até Rob Gordon.

Não consegui nem sentir nojo. Imaginando que o ônibus inteiro deveria estar rindo de mim, comecei a tentar me soltar, mas bastava eu mexer – e isso incluía respirar – piorava tudo. Eu não apenas estava com as pernas grudadas uma na outra, como me grudando no banco e na parede do ônibus. Eu estava me tornando uma crisálida.

O ponto em que eu iria descer estava se aproximando e eu ali, grudado.

Com um esforço sobre-humano, consegui me soltar – quase me jogando para o corredor – a tempo de descer onde eu precisava.

E, já nas ruas, fui andando como uma pessoa destruída pela radiação, com pedaços do meu corpo de chiclete dissolvendo e grudando em postes, portões, meu pé prendendo nas calçadas.

E, assim, passei a tarde toda na casa da minha mãe, sendo operado com gelo e facas para restabelecer minha composição normal.

Isso já faz dias. E ainda não consigo dormir direito, sonhando com a voz da velha e sentindo cheiro de Tutti Frutti em todos os lugares. Me tornei praticamente um veterano de guerra.

E, pior, estou grudado, literalmente, ao meu passado.

17 comentários:

Tyler Bazz disse...

*ploc*

K.P. disse...

Eu já fingi que era surda. Muda também. Mas desde que "fingi" que era doida (dizem que é minha verdadeira face), as pessoas costumam me deixar logo em paz. Por que não tenta?

*e chiclete no chão - assim como qqr tipo de lixo - é o cúmulo da falta de respeito mesmo

Juju disse...

sua velha me fez lembrar de um velho que cruzou o meu caminho: estava eu no ponto, esperando o onibus, ouvindo meu mp3zinho, óculos escuros, aí uma criatura vem e pára o carro bem na minha frente (oi? para em ponto de onibus é proibido ou eu tô louca?), aí, fiz minha cara mais blasé e virei pro outro lado. passados uns minutos, eu ouço, láááá longe (eu estava com fones de ouvido, sou educada), alguém gritando: ô sua mal educada! aí, me virei em direção ao grito e vi que era o velho que tinha parado o carro. tirei o fone e perguntei: oi? o velho: eu te ofereci uma carona, nao ouviu? eu: muito obrigada! mas não. e me desculpe, eu nao tinha te ouvido, falei, mostrando o fone.

ora vejam. o cara alem de ser mal-educado, era louco né brasiu? vê lá se vou aceitar carona de estranhos? e de velho?

nao entendo as pessoas nao verem aquele fiozinho mágico saindo da orelha da gente viu? vão falando, perguntando, enchendo o meu sacrossanto saco! nhé!

SÓ pra variar, o texto tá hilário!

beijos

Lua Durand disse...

"E se alguém se sentasse ao lado da velha, eu fingiria uma convulsão e ficaria chutando o encosto do banco até a pessoa ir embora. Ninguém se sentaria ao lado dela E eu estava determinado a manter este bloqueio político à velha durante todo o percurso, se fosse preciso."

eu = crises de riso.

Natalia Máximo disse...

Fone de ouvido salva - pelo menos da velha insuportável.

Varotto disse...

"O chiclete que você mastiga não é igual ao meu..." (bu-bu-bundão mode: ON).

P.S.: Ainda não entendi como o chiclete na sola do seu sapato grudou uma perna na outra :-( ???

Elaine Cris disse...

Também detesto gente que escuta música sem fone de ouvido, provavelmente pra mostrar que tem celular, como se as outras 6 bilhões de pessoas restantes no mundo (com exceção da minha mãe) também não tivessem.
Da vontade de perguntar se gastou o dinheiro todo pra comprar a porcaria do celular e não sobrou cinco reais pra comprar um fone de ouvido qualquer pra escutar aquela porcaria de música...

Lari Bohnenberger disse...

Ahahahahahahahahahahahahaahahahahah!!!!!

Ninguém merece velhas em ônibus!

Bjs!

Bruno disse...

*ploc*²

ô fase!

MaxReinert disse...

"Eu prefiro ter um filho viado do que um filho velha!!!!"

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk....... e sim, eu também não sei como é rir assim!

Irmão do Rob disse...

Apenas para registro, segundo o Sistema Internacional de Unidades (SI) o plural de decibel é decibels.

lol

Anônimo disse...

Apenas para registro, segundo o blog Championship Vinyl, o coletivo de "irmão do Rob" é "bando de pentelhos".

Felipe Lima disse...

Não sabia que a desgraça alheia podia ser tão divertida!!! Me acabei de rir com esse post. É engraçado como você consegue entrar num turbilhão de incidentes com tanta frequência. Acho que seus leitores são muito sortudos por você ser tão azarado. rsrsrsrs

P.S.: Em defesa do Rob: o dicionário Aurélio aceita a grafia "decibéis".

Jullia A. disse...

Eu estava me tornando uma crisálida. Morri. acordei meu amigo que estava dormindo. ri muito alto.

Mari disse...

Isso foi praga da "velha"!!

Thiago Dalleck disse...

Chiclete na sola do pé grudou suas pernas? Eita, só com o Rob mesmo, rs

Fone de ouvido e fazer cara de louco é a solução! Tem gente que não consegue ler e ouvir música no fone ao mesmo tempo, mas eu aprendi isso na marra, por causa dos funkeiros-de-fundo-de-ônibus.

Pulo no Escuro disse...

ônibus + velha + calor = desastre.
acredite, essa matemática não vale só para o Rob Gordon.