27 de dezembro de 2006

A Revolução (e o amigo-secreto) dos Bichos

No último post, eu citei suavemente os problemas acarretados pelo final de ano, especialmente o fato de que não importa onde você for, sempre tem trânsito e estará lotado. Claro que existem outros, como o shopping que resolve fazer o show de natal bem na porta da (única) loja que você precisava entrar e as inúmeras caixinhas que você precisa entregar para todos aqueles funcionários que, assim como o Papai Noel, aparecem só no final do ano, como garis e leitores da Sabesp – felizmente, como eu moro em prédio, centralizo todas as minhas caixinhas com o staff do lugar, e eles que depois dividam entre si, seja usando a hierarquia, seja usando a lei do mais forte.

Mas nada, nada, é pior que os amigos secretos em churrascaria. Aliás, poucas coisas são piores do que entrar numa churrascaria entre os dias 15 e 25 de dezembro. Quem me conhece sabe que churrascaria é uma espécie de templo para mim. As pessoas podem até ir numa churrascaria para comer. Eu não. Eu vou para celebrar a memória do primeiro neandertal que, após jogar uma pedra em algum animal, descobriu que a carne do bicho era infinitamente melhor que aquelas frutas sem graça que a Sra. Neandertal apanhava nas árvores. Com o tempo, a humanidade foi evoluindo, surgiram os cro-magnon, que possivelmente descobriram que quanto menos tempo você assasse a carne, mais saborosa ela ficava. Daí para as churrascarias foi um pulinho.

O que ninguém contava é que um desvio na evolução humana faria com que, séculos depois, o amigo secreto do final de ano de toda e qualquer empresa fosse feito sempre em alguma churrascaria. Aliás, em “alguma” não. É sempre naquela onde estou. Eu entro, disposto a me afogar num mar de picanha e cupim, e vejo aquelas mesas gigantescas com dezenas de pessoas ocupando metade da churrascaria e já me arrepio. Passo os olhos pelo local e lá estão elas: as ameaçadoras duas cadeiras, uma ao lado da outra, com as sacolas de presentes em cima.

Bom, como com religião não se brinca, sempre crio coragem, respiro fundo, ignoro tudo aquilo e sento para comer. Ou tentar comer. Sim, porque nenhum espeto sai impune de uma mesa com 47 pessoas. Não importa a carne que o garçom levar ali. Pode ser picanha, fraldinha, lingüiça, preá, guaxinim... Dali, ninguém sai inteiro. Só o maldito frango, mas, até aí, quem quer frango numa churrascaria? (Aliás, servir frango numa churrascaria beira o sarcasmo(desabafo mode: on). Todas as carnes nobres param na mesa dos amigos-secretos, que, provavelmente, não sabem diferenciar um cupim de uma costela e não dão o mínimo valor para um primeiro corte. E eles pegam tudo, claro. Afinal, é a empresa que está pagando (não, eles não se tocam que se comerem um pedaço de carne ou trezentos pedaços de carne a conta será a mesma – daí o nome “rodízio”?).

Isso sem falar no barulho. Além de comerem feito uma legião romana (e isso inclui as mulheres da empresa, que também mandam muito bem, mesmo seguindo aquele comportamento-padrão feminino, pedindo sempre um pedaço “fininho”) eles fazem um barulho desgraçado, o que impossibilita qualquer pessoa de chamar um garçom. Todo ano eu considero a hipótese de levar uma cartolina e um pincel atômico, ao menos para conseguir pedir as bebidas, mas sempre me esqueço disso no ano seguinte e tenho que ficar no meu canto, apelando para mímicas.

E, entre o barulho que torna impossível você conversar com quem estiver na sua mesa e a aridez de carne que permeia o jantar inteiro, a única coisa que lhe resta é observar e enumerar os ridículos animais-clichês que habitam aquele ecossistema essencialmente carnívoro e barulhento.

Os Leões – são os membros da diretoria, logo, estão no topo da cadeia alimentar. Já comeram a empresa inteira, literal ou metaforicamente. Como reis da floresta, ficam sentados em um canto, isolados, tomando uísque, sem se misturar com os outros animais. Não precisam chamar nenhum garçom, porque todas as carnes que chegam na mesa são servidas primeiro para eles. E ai de quem entrar no caminho.

A Hiena – seu único objetivo na vida é puxar o saco dos leões – tanto que não se incomoda em comer a própria merda (ou as migalhas dos leões) e ainda dar risada. No amigo secreto, subornaram a pessoa do sorteio para tirar qualquer um dos leões e é o primeiro a chegar ao restaurante, para poder sentar perto deles, onde poderá mostrar aos reis da floresta que está rindo de todas as piadas que eles contam.

A Leoa – na verdade, ela não tem esse nome porque anda com os leões – apesar de já ter rodado no meio dele alguns (não, muitos) anos atrás, mas sim porque está no amigo secreto unicamente para caçar. É a solteirona ou a separada-sem-filhos, e, no segundo chopp, já está com o primeiro botão da blusa aberta, toda dadivosa, conversando com todos os homens da mesa e rindo sem parar. Seus primeiros alvos na caçada são os leões, mas como nunca é bem-sucedida, acaba descendo pela cadeia alimentar. No final do almoço, vai, quando muito, conseguir devorar um dos vendedores externos da empresa, mas já sairia contente se conseguisse o telefone de um garçom.

O(s) Macaco(s) – São os engraçadinhos. Assim como na floresta existem várias espécies de macacos, no amigo-secreto da empresa também. Então, tem o macaco que passa a maior parte do tempo contando piadas e imitando os outros, o que até causa algumas risadas no começo. Claro que isso, depois, enche o saco de todo mundo que está ali, mas não é por isso que ele vai parar. E tem o macaco-bêbado. Enquanto todo mundo está no terceiro chopp, ele já está no oitavo. E fica para lá e para cá, já de gravata aberta, cochichando com um, gritando com outro, gargalhando alto. A cada 15 minutos, quase derruba um garçom.

A Gazela – é a carne mais tenra do pedaço: a trainee loirinha de 20 e poucos anos que acabou de ser contratada. Vai de blusa decotada e saia, toda perfumadinha. Toda a ala masculina da mesa consegue arrumar um jeito cercá-la em algum momento, fazendo questão de pedir a bebida dela e rindo de tudo o que garota fala. O problema é que ninguém imagina que os leões, antes mesmo do almoço, já leiloaram a garota entre si e definiram qual deles irá levá-la para casa.

As Gralhas – Andam sempre em grupo de três. Todas têm por volta de 35 anos, mas aparentam ter 50, e são sempre do mesmo departamento. Parecem estar se divertindo e serem amigas de todo mundo da empresa, mas, na verdade, passam 90% do tempo falando mal dos outros e fofocando sobre a vida alheia. São, porém, verdadeiras enciclopédias sobre a vida corporativa: sabem desde quem está comendo quem até quantas prestações do carro o gerente de vendas atrasou. No mesmo dia, farão um happy-hour exclusivo, para trocarem impressões sobre o almoço – com ênfase nos tópicos que abordam o quanto a trainee é atiradinha e como um dos diretores (que já traçou uma delas, anos atrás) é mal vestido.

O Veado – É, normalmente, o mais bonito da empresa, mas logo fica claro porque a leoa nem perde tempo tentando alguma coisa com ele. Normalmente é tímido, fica vermelho com as piadas sujas dos macacos e é o único que fez o laço do embrulho do seu presente, sempre com o maior capricho. Claro que tem também o veado histérico, que gargalha alto – e fino – na mesa, e faz questão de deixar seu amigo secreto embaraçado ao agradecer o presente com um abraço apertado demais e um beijo estalado na bochecha.

O Pássaro Dodô – Comporta-se sempre como se fosse o último da sua espécie. E, na verdade, ele é mesmo, já que não tem nada em comum com as outras pessoas da floresta. Eles estão numa churrascaria e ele não come carne; ele só toma Pepsi e o lugar só tem Coca. Normalmente, é o único torcedor da Portuguesa, então não consegue nem participar das conversas sobre futebol na segunda-feira. Nem de amigo-secreto ele gosta, participou apenas porque foi obrigado pelos colegas. Já pediu três vezes para um dos garçons um pedaço de peixe, mas ainda não conseguiu nada. Vai tomar água e comer pãozinho com patê o almoço inteiro, de mau-humor.

O Abelha – É um dos funcionários mais antigos da empresa. Separado, não pode ver uma fêmea ser contratada que já começa a voar ao redor dela. O problema é que fica só fazendo cera, e não consegue ferroar ninguém de verdade. Tanto faz se é recepcionista, telefonista, assistente da diretoria: não perdoa ninguém. Mas nunca conseguiu levar ninguém para a colméia, no final do dia. Mas sabe a noção do perigo e nem chega perto da gazela – pelo menos, quando os leões estão de olho.

E, papo vem, papo vai, desce fraldinha, desce caipirinha, desce chopp, desce picanha e os ânimos começam a se alterar. De repente, todo mundo é amigo de todo mundo, a trainee já está descalça e com uma alça do vestido caída no ombro – para delírio das gralhas, que terão assunto para janeiro inteiro – e o pássaro dodô até mesmo resolveu experimentar a costela. Os macacos estão pulando de galho em galho, gritando e fazendo bobagens e a hiena fica de olho nos leões, para ver se eles estão rindo, e aí ele ri também. E começa a entrega dos presentes, sempre com os infalíveis CDs do Roberto Carlos e do U2, as gravatas, os livros novos do Paulo Coelho e do cara que escreveu O Código da Vinci e o novo DVD ao vivo do Bruno e Marrone, que é exatamente igual ao anterior, mudando apenas o lugar. E todos se abraçam, desejam feliz natal, dizem que “ano que vem tem mais” e vão embora.

E, assim, a vida volta ao normal. Eu volto a comer carne tranquilamente, no meu canto e eles voltam para a empresa, onde cada um deles mal consegue tolerar a existência dos outros ao longo do ano inteiro. Até, claro, o próximo amigo secreto.

Cinco Gritinhos Mais Clichês da História dos Amigos-Secretos

1. Marmelada! Marmelada! – quando descobre-se que a Hiena tirou um dos Leões.
2. Experimenta! Experimenta! – quando a Gazela abre o seu presente e descobre que é uma blusinha decotada
3. Beija! Beija! – pronunciado no momento em que o Veado entrega o seu presente, para desespero e vergonha do macho presenteado
4. “Salve o Corinthians...” – quando qualquer pessoa ganha uma roupa com detalhes em preto e branco
5. “Vamos pedir para tocar aqui no restaurante!” – quando alguém ganha o CD novo do Roberto Carlos.

5 comentários:

Anônimo disse...

as gralhas provavelmente sao do RH, certo?

Carioca.

R Lima disse...

Belo texto... de pura genialidade.

Anônimo disse...

Perfeitamente detalhista e ilustrativo, como sempre.
Vc é a hiena e eu sou a gralha?

Tyler Bazz disse...

aUHAuhAUHAuhaUHAuhaAuhaUHAuha
BOM DEMAAAAAIS!!! Nunca tinha pensado nessa análise com animais aUHAuhaUHauhA..

o/

Cami Pires disse...

PQP... você traçou perfeitamente o perfil psicológico dos animais corporativos!