Eram quatro horas da manhã e eu dormia o sono dos justos.
Na verdade, eu precisava ter trabalhado durante boa parte da
madrugada, mas depois de seis horas de reunião – caso nunca alguém contou para
você, uma das desvantagens de trabalhar em casa é que não existe sábado,
domingo ou feriados – eu voltei para casa querendo apenas dormir.
O plano era perfeito. Eu ia dormir cedo, acordar cedo e
começar a trabalhar. Não tinha como dar errado.
A não ser pelo fato de que eram quatro horas da manhã e eu
dormia o sono dos justos e acordei com sede. Assim, levantei para beber água.
Fazia um frio desgraçado e eu estava com meu pijama de inverno (a saber: um par
de meias, uma calça de moletom mais antiga que muitos leitores deste blog e uma
camiseta qualquer).
Enquanto eu andava na direção da cozinha, escutei que caía
uma tempestade bíblica do lado de fora. E provavelmente eu sorri, porque poucas
coisas me fazem sorrir tanto quanto acordar de madrugada, descobrir que está
chovendo e lembrar que não preciso sair de casa pela manhã.
E, ainda sorrindo, eu entrei na cozinha pensando em tudo o
que eu deveria fazer no dia seguinte. Iria acordar e finalizar o roteiro X,
depois responderia e-mails e partiria para o roteiro Y, esperando as respostas
que preciso para os textos A, B e C chegarem, e então eu...
BLOSCH.
Como assim, “blosch”?
Será que eu estava sendo seguido pelo Monstro da Lagoa
Negra? Eu estava no meio da cozinha, a alguns metros da pia e senti minha meia
encharcar. Mas, antes que meu cérebro processasse isso, dei um novo passo.
E ouvi um novo BLOSCH e minha outra meia encharcou.
Eu estava pisando em água. Não. Era pior. Eu estava pisando
em água usando apenas meias. Algo estava acontecendo na cozinha. Assim,
apressei o passo em direção ao interruptor que fica ao lado da pia.
BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH.
A cozinha estava inundada. Não “inundada nível Jornal
Nacional”, com móveis boiando e o Gato Ridículo navegando em cima de uma tábua,
mas inundada o suficiente para encharcar minhas meias. Metade da cozinha eram poças
de água. A outra metade, eu acho que ainda estava seca, mas nem olhei, porque,
na minha cabeça, o pior havia acontecido.
Vou explicar para vocês: minha casa tem um corredor lateral
que é um dos maiores mistérios da natureza. É uma extensão do quintal que se
liga ao hall de entrada e que possui uns quarenta centímetros de largura. Sabe
aqueles filmes de ação que o herói precisa escapar de uma sala onde as paredes
estão encolhendo? Todos eles são filmados aqui nesse corredor.
E no final desse corredor tem um ralo, que é por onde toda a
água do quintal escoa. Mas com plantas e três cachorros, não é difícil esse
ralo perder sua vazão em tempestades. São folhas e pelos e pelos e folhas e
pequenos galhos que se acumulam ali e a água começa a acumular.
É aí que a magia acontece, pois isso faz com que a água
comece a acumular no quintal, mas, também, no hall de entrada (ela começa a
entrar por baixo da porta). Uma vez isso aconteceu. Estávamos na rua e, ao
voltar para casa, abri a porta e...
BLOSCH.
Então, de volta às quatro da manhã. Morrendo de medo,
atravessei a cozinha correndo em direção ao hall para ver se ele estava
inundado.
BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. TUM. TUM. TUM. TUM.
A boa notícia: o hall estava seco e o ralo trabalhando
normalmente. A má notícia? A cozinha continuava cheia de água e eu não fazia
ideia do que estava acontecendo. Voltei para a cozinha em busca de pistas e, ao
olhar para cima, descobri o que estava acontecendo.
TUM. TUM. TUM. TUM. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH.
Imagine que um dia um fã de Sergio Reis decida entrar para o
Livro dos Recordes e realizar o maior tributo da história à música sertaneja,
reunindo milhares de pessoas para cantar que “nessa casa tem goteira, pinga ni
mim” ao mesmo tempo, e num local temático, repleto de goteiras de verdade para
dar aquele charme e fazer todo mundo entrar no clima.
Aparentemente, era isso que estava acontecendo no forro da
cozinha. Na minha casa tinham dezenas de goteiras e todas elas pingavam ni mim,
encharcando minhas meias.
Isso já havia acontecido antes. Uma enorme infiltração
surgiu no forro da cozinha e nós, desconfiando que a calha que fica bem em cima
do local estivesse entupida, chamamos o cara da Porto Seguro. Ele chegou em
casa, subiu no telhado, agachou-se, tirou uma bolinha de plástico que o filho
do vizinho jogou ali sem querer e resolveu o problema. Deve ter sido o trabalho
mais fácil da vida dele.
E devia ser aquilo de novo.
Então, eu tinha três alternativas. A primeira envolvia sair
na chuva, pegar a escada, subir no telhado, tirar a bolinha do vizinho, secar a
cozinha e voltar para a cama. Mas eu não faria isso de madrugada e na chuva.
A segunda, na verdade, era uma versão da primeira, mas com
final alternativo. Eu devia sair na chuva, pegar a escada, subir no telhado,
tirar a bolinha do vizinho, secar a cozinha, colocar uma roupa, pular na casa
do vizinho, invadir o quarto do menino, enfiar a bola na boca dele e ficar
repetindo que “você inundou a cozinha errada” até ter certeza que ele havia se
asfixiado, pular de volta para minha casa e voltar para a cama. Não, eu também
não faria isso de madrugada e na chuva.
Sobrava apenas a terceira alternativa. Enxugar o chão e
encher a cozinha de baldes.
Assim, eram quatro e meia da manhã e eu experimentei o
momento mais solitário da minha vida.
A cidade estava em silêncio, embalada pela chuva fria.
Milhões de pessoas dormiam, sonhando com mundos fantásticos onde eram heróis e
amantes, guerreiros e poetas. Outras deviam estar fazendo sexo
enlouquecidamente para espantar a solidão da vida urbana. Bebês aninhavam-se
nos cobertores, adolescentes se apaixonavam na internet, casais faziam as
pazes... São Paulo estava em paz.
E eu estava ali no meio da cozinha, com as meias
completamente encharcadas e esfregando panos no chão feito uma alma condenada a
não dormir nunca mais.
Quinze minutos e alguns bloschs depois, o trabalho estava
terminado. Fui até o quintal e peguei todos os baldes possíveis e fiz uma nova
decoração na minha casa, transformando minha cozinha numa espécie de monumento
à casa do Feios, Sujos e Malvados.
Voltei para o quarto, tirei as meias, enxuguei os pés e
deitei.
E adormeci ouvindo a sinfonia feita pelas gotas caindo nos
baldes da cozinha. E finalmente sonhei. Um sonho estranho, onde eu deixava de
ser uma pessoa e me tornava um personagem de Graciliano Ramos e ria sozinho, no
meio da aridez, ao descobrir que eu havia me tornado um personagem de Vidas
Secas. Minhas meias estavam cheias de areia, mas estavam secas, que era o
importante.
E acordei com duas certezas: a primeira é quando você deseja
se tornar um personagem de Vidas Secas, é porque sua vida chegou ao fundo do
poço. E a segunda é que o pior não é chegar ao fundo do poço, e sim descobrir
que o fundo do poço tem água o suficiente para encharcar suas meias.
A cachorra baleia apareceu no sonho? =)
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