Nós temos três cachorros aqui em casa – além do Besta-Fera,
que está muito bem, obrigado, na casa dos meus pais. Todos eles eram da Esposa
e, como acontece com qualquer bicho, cada um tem uma personalidade diferente.
E essa história começa com uma das fêmeas, que é certamente
uma das criaturas mais retardadas que já caminhou pelo planeta. E veja bem, não
sou eu quem fala isso, pois quando ela era filhote um veterinário disse que ela
tinha mesmo alguns problemas de desenvolvimento. Talvez fique mais claro se eu
der um exemplo.
Às vezes, os cachorros começam a latir embaixo da janela do
meu quarto. Então, ao invés de ir até o quintal, eu dou a bronca da janela
mesmo. Eles não podem ver dentro do quarto por causa da tela – caso você seja
novo, nós também temos três gatos – mas isso não faz diferença. Eles conhecem
minha voz, eles sabem que sou eu que estou ali na janela, e já perceberam que
se não calarem a boca eu vou até o quintal dar um esporro em todo mundo.
Quer dizer, pelo menos dois deles. A cadela que estamos
falando não consegue pensar além da tela. O cérebro dela funciona assim: se
tudo o que eu vejo é uma tela, não existe nada ali. Então o dono dessa voz deve
estar em outro lugar. Talvez dentro da minha cabeça? Não, os outros cachorros
também estão ouvindo. Eles estão olhando para a tela por algum motivo, mas
estão ouvindo. De onde vem essa voz? Será que é do céu? Será que é Deus?
Sim, eu falo com ela pela tela e ela fica olhando para o
alto. Não sei se ela está me procurando ou pensando em se ajoelhar e começar a gritar
que “Senhor! Eu não sou digna!”.
E caso você esteja se perguntando... Sim, às vezes eu me
aproveito da situação e assumo o papel de Deus. Começo a falar coisas como “Fui
eu quem tirou você da terra do Egito” ou “Você vai construir uma arca e reunir
um casal de cada espécie”, ou, quando estou me sentindo um deus mais
autoritário, mando logo um “Você vai receber duas tábuas com os meus
mandamentos, que deverão ser obedecidos por todos os animais dessa casa”. E ela
ali, olhando para o alto com a fé queimando em seus olhos.
(Toda vez que a Esposa me vê fazendo isso ela pergunta se eu
sou imbecil. Minha resposta é sempre apontar o dedo na direção dela para fulminá-la
com meus raios, mas como nunca saiu raio nenhum, às vezes acho que ela tem
razão).
Bem, vamos voltar à cadela. Aqui em casa, no quintal do
fundo, existe uma laje que é um pedaço morto da casa. É um espaço enorme que
fica em cima do covil do meu enteado e que é usado somente para estender roupas
– eu às vezes subo ali para fumar um cigarro e pensar na vida.
E nós não deixamos os cachorros subirem ali porque um dos
lados (justamente o que fica virado para o nosso quintal) é aberto, sem grade
ou cerca nenhuma. Tínhamos uma tela na escada caracol que leva até lá e tudo
funcionou muito bem... Até que a cadela do povo de Deus olhou um dia para a
escada e pensou “será que esse caminho que leva para o alto me aproximará do
Criador? Será que aqui começa minha jornada para o Paraíso?” e destruiu a tela
que a mantinha afastada do seu Monte Sinai.
Então ela decidiu que aquela escada não leva para a laje
onde as roupas são estendidas. Não, aquela estranha construção curva no canto
do quintal é uma stairway to heaven, e sua missão é caminhar por aquele divino.
Assim, agora ela sobe naquilo sempre que pode – ou melhor,
sempre que lembra que a escada existe. Só que ao invés de encontrar o criador,
ela encontra o cachorro do vizinho e começa a latir. E o cachorro do vizinho
late de volta. E aí ela precisa mostrar que a fé dela é a certa, só que ao
invés de iniciar uma cruzada nas redes sociais atacando os membros da outra
religião (ou de juntar um exército e montar uma cruzada, invadindo a casa do
vizinho aos gritos de “Morte ao infiel!”), ela decide latir mais alto.
Ela faz isso o dia inteiro (e preste atenção nessa frase porque
ela será importante no texto). Então a única alternativa é ir até o quintal e mandá-la
descer – o que ela sempre faz de duas maneiras: ou fazendo festa porque você
disse o nome dela, ou olhando você intrigada com uma cara de “desculpe, eu
realmente me lembro do seu rosto, mas não do seu nome... De onde nós nos conhecemos
mesmo?”.
Então, eu e a Esposa fazemos um rodízio aqui. Ela começa a
latir lá em cima da laje, eu vou até lá manda-la descer. Uma hora depois, ela
volta para a grade e começa a latir para o cachorro mouro do vizinho e a Esposa
vai até lá...
E aí começa o inferno. Porque como eu disse, temos três
cachorros e um deles – o macho – não pode ver a Esposa que explode de amor e
começa a correr pelo quintal e latir sonetos. Só que, veja bem, não estamos
falando de um yorkshire e sim de um cachorro que é uma mistura de qualquer
coisa com dogue alemão. Ou seja, cada latido dele equivale, em decibéis, a um
show do Manowar.
Então ficamos assim: uma latindo lá em cima para o infiel. O
outro latindo aqui embaixo para a Esposa. O terceiro cachorro – outra cadela – percebe
que porque todo mundo está latindo então ela não pode ficar para trás e começa
a latir para, sei lá, o oxigênio. Às vezes, quando tudo isso acontece, minha vizinha Lilha Three Times começa a gritar que está fazendo cocô.
E lembram que eu disse que isso acontece o dia inteiro?
Bom, o dia inteiro é um espaço de tempo que inclui a unidade
“sete horas da manhã”. E isso acontece especialmente nos dias que fiquei
trabalhando até quatro horas da manhã. Depois de três horas de sono, começa a
guerra religiosa dos cães. Aí eu vou lá fora, bêbado, com a calça caindo,
batendo nos móveis e mando parar com essa merda.
Silêncio. Volto para a cama e, sete e meia da manhã, nova
jihad. E dessa vez quem vai é a Esposa... E aí o cachorro explode de amor ao
vê-la e resolve recitar um poema com o tamanho dos Lusíadas que ele passou a
noite compondo.
E eu ali, com três ou quatro horas de sono na cabeça, implorando
na cama por uma morte rápida e indolor. Mas aí já é tarde. Aí eu já acordei e tudo
o que me resta é levantar, pensando se algum dia eu vou conseguir dormir
direito na vida.
Só que a última vez que isso aconteceu, eu reparei algo
estranho na porta do quarto. A Esposa estava lá fora desaparecendo no meio dos
latidos, e eu levantei... E vi algo me olhando da porta do quarto.
Era apenas um olho, bem próximo ao chão. Olhava diretamente
para mim, estudando meus movimentos e com um brilho... Não sei, era diferente de
tudo o que eu havia visto antes. Era a maldade encarnada. Mas, quando eu fixei
meu olhar nesse misterioso olho, ele desapareceu e eu vi uma sombra pulando
pelo corredor em direção à sala.
Gato Ridículo.
Era ele me observando. Conforme ele pulava na direção da
sala, eu pude ouvir sua risada (tenho quase certeza que também ouvi um grito de
“vitória!”, mas pode ter sido impressão minha, por causa do sono).
Tudo havia sido um plano dele para me acordar. De alguma
forma ele convenceu a cadela a subir na laje e latir para o vizinho para que a
Esposa fosse até o quintal e o cachorro-Camões começasse a recitar seu amor aos
berros. Talvez até mesmo o cachorro do vizinho estivesse trabalhando para ele. Com
todas essas peças cuidadosamente encaixadas, eu não consigo dormir. Sou
obrigado a admitir: o plano é de uma genialidade invejável.
Passei o dia morrendo de sono e percebendo que o Gato às
vezes olhava para mim e dava risadinhas escondido. Mas só horas depois eu
descobri como ele fez isso.
Fui beber água e ele estava em pé na pia da cozinha, olhando
fixamente para os cachorros. Mas assim, fixamente mesmo. Eu o chamei e ele nem
olhou para mim. Foi quando eu entendi o que ele estava fazendo. Ele estava numa
espécie de transe. Era um misto de telepatia e hipnose, que faz com que ele
mantenha os cães sobre seu poder, usando-os para impedir que eu durma direito.
Lembram quando eu brincava com a cadela na janela do quarto
dizendo que eu era Deus? Aparentemente, os cachorros descobriram que existe uma
divindade mais poderosa e mudaram de fé. Eu fui abandonado pelos meus
seguidores.
Agora eu sei como os deuses gregos se sentem. Mas, por outro
lado, tenho certeza que o Monte Olimpo é muito mais sossegado que minha casa.
Tenho certeza que, diferente de mim, pelo menos eles conseguem dormir.
Boa a citação do antigo Egito, talvez esteja em uma fase "revival", onde gatos eram adorados e santificados... está tentando dominar o mundo...um humano de cada vez...
ResponderExcluirEu tenho a mana-monstrenga aqui, tento mostrar quem manda,mas ela teima em fingir que não entende...
Hahahaha gatos sempre foram mais sagrados do que anões, Rob! Essa você perdeu mesmo. Você deveria adestrar um dos cães (ou gatos) pra ser a testemunha de Rob Gordon e tentar doutrinar os outros!
ResponderExcluirEu só acho que o fato de você poder ter 3 cães em casa e o Besta-Fera continuar ficando na casa dos seus pais é simplesmente injustificável.
ResponderExcluirsó vou dize uma coisa.... Rob, vc é um Gênio! Apenas ainda não aprendeu a hipnotizar os gatos assim como faz conosco ao leu seus textos.
ResponderExcluirQue saudade do Besta Fera, viu... as histórias com ele eram melhores que qq uma da cachorra do povo de deus... (apesar dela ser engraçada tb) #voltabestafera
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