Eu já falei aqui sobre meus vizinhos. Para refrescar a
memória, você pode ler aqui quando eu os apresentei; aqui quando meu vizinho
morreu; e aqui sobre como eles não me deixam dormir. Talvez eles tenham
aparecido em mais textos, mas esses são os que importam de verdade.
Entretanto, faz mais ou menos um mês – talvez um pouco menos
– que o barulho da casa ao lado diminuiu. Nós já tínhamos reparado que a
japonesa mais velha que o Japão não estava aí. Provavelmente havia sido
internada mais uma vez (isso vinha acontecendo com frequência). Não ouvíamos
mais ela ter crises de falta de ar de madrugada, nem ela brigando com todos ao
redor, muito menos brincando com os gatos.
Ontem, porém, eu estava fumando na garagem quando vi uma das
moradoras da casa ao lado – caso você teve preguiça de clicar nos links acima,
são duas famílias que moram ali: uma na frente e outra (a dela) nos fundos –
saindo pelo portão. Eu dei bom dia, ela deu bom dia e se aproximou.
– Você ficou sabendo da senhora que morava aqui?
Bem, eu não estava sabendo, mas, provavelmente assim como
vocês, fiquei sabendo só com a forma que a pergunta foi feita. Mas resolvi dançar
conforme a música e disse que não.
– Ela faleceu. Faz um mês.
Eu sempre achei engraçado como as pessoas usam as palavras “morrer”
e “falecer”. Quando é alguém que não conhecemos pessoalmente, seja uma
estatística no jornal ou uma celebridade, usamos morrer. Mas as pessoas
próximas de nós nunca morrem. Elas falecem. Claro que o tempo o falecimento vira
apenas uma lembrança e passa a ser chamado de morte, mas, quando se trata de
dar a notícia, a pessoa sempre faleceu.
E a velhinha da casa ao lado tinha falecido.
Pelo que descobri, ela levantou no meio da madrugada e foi
até o banheiro. Fez tudo o que tinha que fazer e começou a passar mal. Assim,
voltou para a cama, deitou e morreu – ou faleceu, como queiram. Quando foram
ver, minutos depois, ela já estava morta. Quando o Samu chegou, não havia mais
o que fazer a não ser levá-la embora.
Também descobri que ela iria fazer 97 anos no dia 13 de
agosto. Dificilmente vou esquecer isso, porque era o aniversário da minha avó.
Mas, assim que fiquei sabendo disso, me lembrei do aniversário dela no ano
passado. Todos cantaram parabéns para ela (eu estava no quintal do fundo e ouvi
tudo) e não consegui segurar o sorriso quando, ao final da música, ela
agradeceu um por um dos convidados com um sonoro arigatô.
Foi o último aniversário dela. Talvez o último agradecimento.
Foi a primeira morte do dia.
É engraçado. Quando me mudei para cá, eles eram uma família.
Mas o filho morreu – acho que ela nunca ficou sabendo disso, ou às vezes apenas
se esquecia disso – e agora foi a vez dela. Não há mais família, pois não há mais
ninguém.
Mas eu não estava pensando sobre isso, pois a mulher da casa
não havia terminado de falar. Ela havia dado a notícia, e agora queria
desabafar. Quer dizer, ela não queria desabafar, estava mais para “precisava”.
Começou a dizer que não sabia o que iria acontecer com ela. Contou
que mora aqui há quatro anos e que cuidava da velhinha japonesa por amor.
Muitas vezes, perguntaram a ela quanto ela queria por isso, e ela sempre
respondeu que “nada, porque eu faço por amor”. E, pelo que eu ouvia aqui, era
verdade: ela era quem mais cuidava da velhinha.
Mas agora tudo estava começando a mudar. Os parentes da
velhinha já devem estar de olho na casa. Já pediram a garagem – o filho dela
guarda a moto lá dentro – de volta, como numa espécie de ensaio para o pedido
da casa. Confessou que não sabe o que vai acontecer daqui em diante, porque
provavelmente em pouco tempo terá que ir embora daí e procurar outro lugar para
morar.
Mas seus olhos se encheram de lágrimas e sua boca começou a
tremer quando disse que o problema não era ter que sair daí, e sim a mudança que
a morte trouxe. Até dois meses atrás, ela era quase da família; hoje, ela se tornou
uma estranha. Provavelmente, é vista como um obstáculo para a posse da casa. O
problema não é procurar outra casa, mas sim um reconhecimento (e um
agradecimento) que foram enterrados junto com a velhinha japonesa.
Foi a segunda morte do dia. Essa, talvez, um pouco mais
cruel, pois é uma daquelas mortes que acontece em vida. Já aconteceram comigo,
e provavelmente com você. E essas nunca são falecimentos, são mortes mesmo.
Eu tentei confortá-la. Disse que as coisas são assim mesmo –
o que provavelmente ela deve saber mais que eu, mesmo que apenas por motivos cronológicos
– e que se esse reconhecimento foi arrancado dela, é porque o problema está nas
outras pessoas, e não nela.
Ela sorriu daquele jeito estranho de quem sorri com lágrimas
nos olhos, que é o que eu chamo de “sorriso Sol e chuva” e me agradeceu por um
conforto que foi o maior que eu pude entregar e que, provavelmente, não chegar
perto do que ela precisa.
Eu quis falar para ela que a velhinha japonesa, esteja onde
estiver, é grata a ela. Mas não tive coragem. Parecia... Não piegas demais,
mas... Não sei. Íntimo demais. Não sei. Sei apenas que o pensamento ficou
comigo. Mas ela parece ter gostado das poucas frases que eu dei, porque o Sol
ficou um pouco maior que a chuva. E assim ela se despediu para fazer o que quer
que fosse fazer na rua.
Eu fiquei observando ela se afastar pela calçada. Acho que o
agradecimento da velhinha japonesa não será suficiente nesse momento. Mas, sim,
acho que ele existe. E espero que, quando minha vizinha coloca a cabeça no
travesseiro, ela ouça esse agradecimento.
Arigatô.
Essa dor é complicada... A segunda morte acho a mais complicada de todas, pq reconhecimento e gratidão são coisas que fazem muita falta mesmo...
ResponderExcluirDo Itashimashitê.
P.S.: Eu sou de 11 de Agosto, tenho um amigo de 12 de Agosto que mora aí perto, na Dom Duarte Leopoldo, e entendo bem essas pessoas marcantes deste mês frio que é Agosto, rs
='(
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