5 de junho de 2016

BLOSCH

Eram quatro horas da manhã e eu dormia o sono dos justos.

Na verdade, eu precisava ter trabalhado durante boa parte da madrugada, mas depois de seis horas de reunião – caso nunca alguém contou para você, uma das desvantagens de trabalhar em casa é que não existe sábado, domingo ou feriados – eu voltei para casa querendo apenas dormir.

O plano era perfeito. Eu ia dormir cedo, acordar cedo e começar a trabalhar. Não tinha como dar errado.

A não ser pelo fato de que eram quatro horas da manhã e eu dormia o sono dos justos e acordei com sede. Assim, levantei para beber água. Fazia um frio desgraçado e eu estava com meu pijama de inverno (a saber: um par de meias, uma calça de moletom mais antiga que muitos leitores deste blog e uma camiseta qualquer).

Enquanto eu andava na direção da cozinha, escutei que caía uma tempestade bíblica do lado de fora. E provavelmente eu sorri, porque poucas coisas me fazem sorrir tanto quanto acordar de madrugada, descobrir que está chovendo e lembrar que não preciso sair de casa pela manhã.

E, ainda sorrindo, eu entrei na cozinha pensando em tudo o que eu deveria fazer no dia seguinte. Iria acordar e finalizar o roteiro X, depois responderia e-mails e partiria para o roteiro Y, esperando as respostas que preciso para os textos A, B e C chegarem, e então eu...

BLOSCH.

Como assim, “blosch”?

Será que eu estava sendo seguido pelo Monstro da Lagoa Negra? Eu estava no meio da cozinha, a alguns metros da pia e senti minha meia encharcar. Mas, antes que meu cérebro processasse isso, dei um novo passo.

E ouvi um novo BLOSCH e minha outra meia encharcou.

Eu estava pisando em água. Não. Era pior. Eu estava pisando em água usando apenas meias. Algo estava acontecendo na cozinha. Assim, apressei o passo em direção ao interruptor que fica ao lado da pia.

BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH.

A cozinha estava inundada. Não “inundada nível Jornal Nacional”, com móveis boiando e o Gato Ridículo navegando em cima de uma tábua, mas inundada o suficiente para encharcar minhas meias. Metade da cozinha eram poças de água. A outra metade, eu acho que ainda estava seca, mas nem olhei, porque, na minha cabeça, o pior havia acontecido.

Vou explicar para vocês: minha casa tem um corredor lateral que é um dos maiores mistérios da natureza. É uma extensão do quintal que se liga ao hall de entrada e que possui uns quarenta centímetros de largura. Sabe aqueles filmes de ação que o herói precisa escapar de uma sala onde as paredes estão encolhendo? Todos eles são filmados aqui nesse corredor.

E no final desse corredor tem um ralo, que é por onde toda a água do quintal escoa. Mas com plantas e três cachorros, não é difícil esse ralo perder sua vazão em tempestades. São folhas e pelos e pelos e folhas e pequenos galhos que se acumulam ali e a água começa a acumular.

É aí que a magia acontece, pois isso faz com que a água comece a acumular no quintal, mas, também, no hall de entrada (ela começa a entrar por baixo da porta). Uma vez isso aconteceu. Estávamos na rua e, ao voltar para casa, abri a porta e...

BLOSCH.

Então, de volta às quatro da manhã. Morrendo de medo, atravessei a cozinha correndo em direção ao hall para ver se ele estava inundado.

BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. TUM. TUM. TUM. TUM.

A boa notícia: o hall estava seco e o ralo trabalhando normalmente. A má notícia? A cozinha continuava cheia de água e eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Voltei para a cozinha em busca de pistas e, ao olhar para cima, descobri o que estava acontecendo.

TUM. TUM. TUM. TUM. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH. BLOSCH.

Imagine que um dia um fã de Sergio Reis decida entrar para o Livro dos Recordes e realizar o maior tributo da história à música sertaneja, reunindo milhares de pessoas para cantar que “nessa casa tem goteira, pinga ni mim” ao mesmo tempo, e num local temático, repleto de goteiras de verdade para dar aquele charme e fazer todo mundo entrar no clima.

Aparentemente, era isso que estava acontecendo no forro da cozinha. Na minha casa tinham dezenas de goteiras e todas elas pingavam ni mim, encharcando minhas meias.

Isso já havia acontecido antes. Uma enorme infiltração surgiu no forro da cozinha e nós, desconfiando que a calha que fica bem em cima do local estivesse entupida, chamamos o cara da Porto Seguro. Ele chegou em casa, subiu no telhado, agachou-se, tirou uma bolinha de plástico que o filho do vizinho jogou ali sem querer e resolveu o problema. Deve ter sido o trabalho mais fácil da vida dele.

E devia ser aquilo de novo.

Então, eu tinha três alternativas. A primeira envolvia sair na chuva, pegar a escada, subir no telhado, tirar a bolinha do vizinho, secar a cozinha e voltar para a cama. Mas eu não faria isso de madrugada e na chuva.

A segunda, na verdade, era uma versão da primeira, mas com final alternativo. Eu devia sair na chuva, pegar a escada, subir no telhado, tirar a bolinha do vizinho, secar a cozinha, colocar uma roupa, pular na casa do vizinho, invadir o quarto do menino, enfiar a bola na boca dele e ficar repetindo que “você inundou a cozinha errada” até ter certeza que ele havia se asfixiado, pular de volta para minha casa e voltar para a cama. Não, eu também não faria isso de madrugada e na chuva.

Sobrava apenas a terceira alternativa. Enxugar o chão e encher a cozinha de baldes.

Assim, eram quatro e meia da manhã e eu experimentei o momento mais solitário da minha vida.

A cidade estava em silêncio, embalada pela chuva fria. Milhões de pessoas dormiam, sonhando com mundos fantásticos onde eram heróis e amantes, guerreiros e poetas. Outras deviam estar fazendo sexo enlouquecidamente para espantar a solidão da vida urbana. Bebês aninhavam-se nos cobertores, adolescentes se apaixonavam na internet, casais faziam as pazes... São Paulo estava em paz.

E eu estava ali no meio da cozinha, com as meias completamente encharcadas e esfregando panos no chão feito uma alma condenada a não dormir nunca mais.

Quinze minutos e alguns bloschs depois, o trabalho estava terminado. Fui até o quintal e peguei todos os baldes possíveis e fiz uma nova decoração na minha casa, transformando minha cozinha numa espécie de monumento à casa do Feios, Sujos e Malvados.

Voltei para o quarto, tirei as meias, enxuguei os pés e deitei.

E adormeci ouvindo a sinfonia feita pelas gotas caindo nos baldes da cozinha. E finalmente sonhei. Um sonho estranho, onde eu deixava de ser uma pessoa e me tornava um personagem de Graciliano Ramos e ria sozinho, no meio da aridez, ao descobrir que eu havia me tornado um personagem de Vidas Secas. Minhas meias estavam cheias de areia, mas estavam secas, que era o importante.

E acordei com duas certezas: a primeira é quando você deseja se tornar um personagem de Vidas Secas, é porque sua vida chegou ao fundo do poço. E a segunda é que o pior não é chegar ao fundo do poço, e sim descobrir que o fundo do poço tem água o suficiente para encharcar suas meias.

Um comentário:

Bel Lucyk disse...

A cachorra baleia apareceu no sonho? =)