Dois dias atrás, meu vizinho morreu.
Foi no meio da madrugada. Estava no hospital fazia umas duas
semanas – ele já havia ficado internado alguns meses atrás, mas voltou para
casa – e não aguentou. Foi piorando a cada dia, até que seu corpo começou a se
desligar, aos poucos, feito uma casa na hora de dormir. Aos poucos, cada
aposento teve suas luzes apagando até ficar totalmente escura.
Totalmente em silêncio.
A morte passou perto da minha casa, e eu não vi. Mas ouvi
cada passo dela. Pegava trechos de conversa do outro lado do muro que diziam o
que estava acontecendo, e as notícias nunca eram boas. Isso porque na casa ao
lado, as pessoas não falam; elas gritam. Gritam por vontade própria – tem gente
que não sabe falar sem gritar – e gritam por necessidade. São duas famílias que
moram ali. Uma delas, justamente a do meu vizinho que morreu, tem duas pessoas,
ambas surdas.
Na verdade, agora que ele se foi, uma das famílias deixou de
ser uma família e se tornou apenas uma pessoa: sua mãe, que tem uns 90 e tantos
anos e é completamente surda. Chega a ser curioso: eu ouvi meu vizinho morrer
durante duas semanas. Sua mãe, que está do mesmo lado do muro que ele, não
ouviu nada.
Meu vizinho havia aparecido no meu blog. Eu o chamava de
Bruxa do Kurosawa, pois quando nos mudamos para cá, ele usava um cabelo grande,
meio grisalho e sempre despenteado – além de ser magro feito um pau. Os meses
se passaram e ele cortou o cabelo. Teve um momento que ele deixou o cavanhaque,
mas logo desistiu.
Sempre que eu ia fumar lá na frente, me encontrava com ele –
ele também fumava no quintal da frente, quase sempre lendo uma revista e sempre
usando um velho pote de margarina como cinzeiro. Às vezes ele me via, às vezes,
não. Mas, sempre que me via, sorria para mim, levantava o braço e acenava para
mim como alguém que acena para uma pessoa que está a centenas de metros de
distância, mesmo estando a cinco ou seis metros de mim.
Hoje, eu vou fumar e ele não está lá. E, me lembrando da
última vez que o vi – algumas semanas atrás, quando ele saiu de casa e foi até
o ponto de ônibus do outro lado da rua, da forma mais casual do mundo e sem
fazer ideia de que duas semanas depois estaria morto – me pergunto por quantos
metros estamos separados agora.
É engraçado; encontrar com ele fazia parte da minha rotina,
e ele sequer soube meu nome. Chegamos a conversar algumas vezes – quase sempre
sobre os gatos – mas o diálogo era difícil, já que ele ouvia muito pouco.
Uma vez ele brigou comigo. Foi durante a Copa e soltaram uma
bomba na rua; ele saiu esbravejando porque sua mãe havia se assustado e gritou
comigo, querendo saber se tinha sido eu. Precisei de umas quatro ou cinco
frases para que ele entendesse que eu estava apenas fumando e batendo papo com
quem estava comigo no quintal. No dia seguinte, lá estava ele sorrindo e
acenando com o braço levantado.
Agora, minha rotina é sair para fumar e estranhar que ele
não está ali. E não porque ele está vendo TV, mas porque ele nunca mais estará
ali. Isso poderia ter acontecido de diversas maneiras: ele poderia ter parado
de fumar; ele poderia ter se mudado de casa; ele poderia ter começado a fumar
no quintal dos fundos.
Ao invés disso, ele morreu. Partiu deixando um enorme
silêncio e três gatos que costumam vir para o meu quintal. Ontem, um deles, o
mais mansinho, veio brincar comigo à noite, e eu me perguntei se eles sabem o
que aconteceu. Acho que sabem. E acho que também estranham o silêncio.
É estranho não ouvir mais o som de programas japoneses, filmes
de ação ou futebol (na Copa, ele torceu apaixonadamente pela Suíça), que ele
assistia com TV no volume máximo. É estranho não ouvir mais ele brincando e conversando
em japonês com seus gatos, que pareciam ser sua grande alegria. E é estranho
não ouvir mais ele discutindo com a mãe em japonês, sobre qualquer coisa que eu
não entendia.
Agora, só existe silêncio na casa ao lado. Não é aquele
silêncio pacífico, da madrugada ou do final de domingo. É aquele silêncio
forte, pesado. Aquele silêncio que só pode ser causado por uma ausência. Aquele
silêncio que só existe em uma casa que foi visitada pela morte.
Aos poucos, as vozes na casa ao lado vão voltar. Com elas,
voltarão os gritos, já que a mãe do meu vizinho é completamente surda. E talvez
seja melhor assim. Sendo surda, ela não pode ouvir o silêncio. Pois seu filho
morreu e este silêncio sempre estará lá, mesmo que as vozes e gritos retornem.
Enquanto isso, eu fumo lá na frente. Sozinho, exceto pelas
vezes em que converso com os gatos do meu vizinho que se foi.
Mas, quando os gatos vão embora, o resto do cigarro é silêncio.
Um comentário:
Você me trouxe lágrimas aos olhos. É curioso como essa relação de vizinhos se dá. A gente mal conversa, não sabe o nome, mas consegue traçar um perfil da família só pelo entra e sai no portão, pelas conversas mais altas (no seu caso, gritadas)... E quando uma coisa dessas acontece, dá pra sentir.
Você se referiu de forma muito bem colocada a isso como o silêncio que fica pela ausência. É um silêncio que é possível escutar, um silêncio que a gente sente.
Parabéns pelo texto!
Postar um comentário