Ao escrever um texto você precisa usar muito mais que uma
palavra para descrever um personagem. Cada personagem é um mundo inteiro, e se
prender a somente um aspecto dele é extremamente injusto com ele – e invariavelmente
vai resultar num texto pobre.
E não, este texto não é sobre escrever.
Mas para continuar com meu raciocínio, preciso de uma pessoa
real para usar como exemplo. Vou fumar um cigarro no quintal da frente e volto
em minutos com minha escolha.
Voltei. Para você que está lendo, não se passou nem um
segundo. Mas eu fui até lá o quintal e fumei um cigarro inteiro no portão, esperando
alguém passar pela calçada. Consegui uma menina que deve ter uns 16 anos e, acredito
que esteja voltando da escola para casa. Usava calça jeans, camiseta, tênis e
mochila nas costas e descia sozinha pela calçada.
Eu poderia muito bem voltar e defini-la com uma palavra: é
uma “estudante”. Ou, ainda, é uma “menina”. Uma “adolescente”. Existe um monte
de palavras que poderiam ser usadas sozinhas para descrevê-la. Mas fazer isso
num texto seria de uma pobreza imensa.
E insisto na ideia de que este texto não é sobre escrever.
Vamos pensar sobre a menina. Sim, ela parece ser uma
estudante. Mas ela é certamente outras palavras. Basta pensar a respeito. Para
os seus pais, ela é “futuro”. Já o irmão diria “mimada”. Para as amigas dela, é
“companheira”. Para aquela outra menina da sala que não gosta dela, a garota é “arrogante”.
Para o namorado dela – como ela é a minha menina que desceu a rua, eu quero que
ela tenha um namorado – ela é o “sorriso”. E para o ex-namorado? Aí podemos
pensar em dois ex-namorados. Para aquele com quem ela terminou, ela é “lembrança”;
mas para aquele que terminou com ela, a garota é “passado”. E para o menino que
senta no canto da classe e fica admirando ela a manhã inteira, sem coragem de
se declarar? Para ele, a menina que passou aqui é um “sonho”. Se pensarmos nos
professores dela, então, outras palavras surgem para descrevê-la. Para o
professor de química ela é “aplicada”, para o de história ela é “desatenta”,
para o de matemática talvez ela seja “inteligente”. Para o porteiro do prédio,
é “bonita”, para o zelador é “irritante”. Para a vizinha de cima é “simpática”,
para o vizinho de baixo é “atrevida”.
São muitas e muitas palavras que mostram que ela é mais que
uma menina.
E cada uma delas, ao seu modo, está certa.
E outras palavras surgem quando pensamos somente na própria
menina. Ela não parece ser muito experiente a respeito da vida, mas mesmo assim
deve saber que ela é mais que uma “garota” ou que uma “estudante”.
Se você soubesse o que ela pensa sobre ela mesma, encontraria
palavras que surpreenderiam todas as pessoas que têm uma palavra para ela e
apareceram no parágrafo acima. Talvez ela se ache “estabanada”. Pode se achar “tímida”.
Gosta de pensar que é “romântica”. Sabe que é “teimosa”, mas não gosta de
admitir isso para qualquer um. É “estourada”, sabe disso, e sabe que precisa
melhorar nesse aspecto. Algumas vezes ela já se considerou “ingênua”, mas não percebeu
ainda com clareza se ela mesma se enxerga assim.
E poderíamos continuar por horas e horas. Buscando novas
palavras e transformando a menina que passou por aqui – e que agora deve estar
entrando em casa – em um personagem mais rico.
Mas este texto não é sobre escrever. Este texto não é sobre
a menina.
Este texto é sobre qualquer pessoa que é definida com uma
palavra. Temos um monte delas. Escolha à vontade: Ali temos os gays, aqui temos
os comunistas, perto dos religiosos; naquele canto temos os reacionários, e
naquele outro, ali, os sexistas; já ali naquele armário temos as feministas. Naquele
outro, os ateus. Temos uma sala especial com torcedores de futebol caso você
queira escolher seu estereótipo por time, é algo que tem tido muita procura.
Escolha qualquer uma delas. Se você acha que, como elas já foram previamente definidas com uma única palavra pelos outros, isso fará com que a pessoa já esteja totalmente definida... Tudo bem. E se com isso você achar que já decifrou
totalmente a pessoa e que esta palavra se aplica totalmente a qualquer coisa
que ela vá pensar, falar ou fazer... Tudo bem também.
Aposto que, em alguns casos, a pessoa não vai reclamar por
ser estereotipada, porque ela já está acostumada com isso. Em outros, ela está
tão acostumada que até faz o mesmo com outras pessoas.
Mas vai ser de uma pobreza incrível. A menina que passou
aqui na frente pode ser apenas isso: uma “menina”. Mas isso não chega nem perto
do que ela pode ser – e este “pode ser” inclui o que ela já foi e o que ela
ainda vai ser.
Cada pessoa é um mundo. E cada mundo é maior que você
imagina.
E se mundos pudessem ser definidos perfeitamente com uma
única palavra, um planeta que se chama “Terra” não teria oceano algum.
Mas nunca é demais lembrar que este texto não é sobre
escrever.
Infelizmente.
6 comentários:
Que pena mesmo que esse texto não é sobre escrever. Comportamento, convivência é tão mais complexo!
Nossos preconceitos reduzem as pessoas. Gostei demais da abordagem!
Fantástico...
Sensacional
Bem contagiante, pois a ideia de não resumir as pessoas a meros esterótipos é bem completa.
Bem contagiante, pois a ideia de não resumir as pessoas a meros esterótipos é bem completa.
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