Minutos depois, eu continuava deitado ali, com o lado direito do meu corpo paralisado. A maníaca estava debruçada em cima de mim, ainda com o chapéu de mineiro, mas parecia mais uma açougueira que uma dentista, pois seu jaleco já estava todo manchado de sangue. Meu sangue. Além disso, ela segurava um instrumento que parecia um daqueles ganchos usados em frigoríficos, o que não ajudava muito a diminuir meu medo.
O procedimento correto seria o seguinte: com aquele gancho, ela rasparia o tártaro da minha boca, gentilmente. Mas isso, claro, num mundo de sonhos. Mas, aqui, no mundo real, ela apoiava o joelho no meu peito, espetava aquele gancho na minha boca e puxava como se a vida dela dependesse daquilo. Gargalhando. E eu ali, paralisado e indefeso, assistindo a tudo aquilo, com a boca aberta. Comecei a ter dó do tártaro.
Os olhos dela brilhavam a cada enganchada. Eu chorava de dor, ela chorava de emoção. Na terceira vez que ela puxou o gancho, pensei em propor um acordo a ela. “Se você me deixar fumar um cigarro na sala de espera, prometo que volto e me comporto. E pago o dobro do valor do tratamento”. Mas claro que ela não iria aceitar. Aliás, tive vontade de acender um cigarro ali mesmo, mas mudei de idéia quando vi que ela ainda não tinha usado nem metade das ferramentas, especialmente aquela grandona, que ela comprou no Peg & Faça.
Foi a meia hora mais longa da vida. Em alguns momentos, eu achei que iria desmaiar. Tudo ficava preto e eu conseguia apenas ver o Coronel Kurtz, de Apocalypse Now, sentado num canto do consultório, na sombra, recitando “o horror... o horror...”. Mas o pior era quando ela parava para descansar o braço e me mandava cuspir. Isso, claro, poderia me proporcionar alguns momentos de alívio, mas o problema é que, para eu cuspir, eu precisava passar, antes, pelo terrível ritual do jato de água glacial na boca. Ela pegava o caninho de água e eu já me arrepiava de novo. Aí, ela espirrava aquele liquido congelado na minha boca, com os olhos trincando de prazer e realização pessoal.
– IIIIIA(glub)AAAAAUU(glub)UUU!!!!!
– Pode cuspir.
– Água stá glada! Num tem água num tempratura conhecida plo hôme?, eu perguntei, com a minha boca anestesiada, modelo Dom Lázaro.
– Resistance is futile. Cospe.
Uma duas vezes pensei em cuspir na cara dela, aproveitar a confusão e sair correndo, mas como o lado direito do meu corpo não me obedecia, eu provavelmente rolaria pela escada do consultório durante a fuga e me quebraria todo. Mas, ao menos, eu aproveitava os intervalos para cuspir para recompor um pouco minha força, e criar coragem para deitar ali de novo. Umas três vezes, cheguei a ficar uns três minutos sentado, fingindo que cuspia.
– Vamos continuar?
– Eu inda tô cspindo!, mentia.
Mas, invariavelmente, eu voltava a deitar na maldita cadeira. Ela arrumava o capacete, estalava os dedos e continuava. Chegou uma hora em que eu comecei a perder a noção do que era pior: os ataques do Capitão Gancho (em um determinado momento, acho que ela chegou a ficar em pé em cima de mim puxando o maldito ferro com as duas mãos), ou os jatos de água gelada, que pareciam uma martelada na minha boca. As duas dores já se misturavam. Eram dois exércitos que se aliaram com o objetivo de me destruir, sob as ordens daquela encarnação do Stálin com diploma de ortodontia.
De repente, senti uma sensação estranha na boca. Uma sensação diferente. Acima das duas dores, uma nova dor apareceu. Enquanto as outras dores doíam apenas fisicamente, essa rompia as barreiras do tempo e do espaço. A minha vida doía. Cada momento que eu havia vivido até hoje e, cada segundo que eu viveria depois disso estavam doendo. Tudo ficou embaçado, depois escuro. Subitamente, me vi num túnel e lembro apenas de pensar repetidamente na frase “Fique longe da luz, Rob! Fique longe da luz!”. Quando voltei a mim, os olhos dela brilhavam como os de uma criança na manhã de natal.
– Enquanto eu raspava sua boca, achei uma cárie!, ela comemorou. Achei que ela fosse começar a dançar de felicidade.
– Enquanto eu raspava sua boca, achei uma cárie!, ela comemorou. Achei que ela fosse começar a dançar de felicidade.
– Deus du xéu...
– Doeu porque a anestesia não pegou a cárie, e eu acertei a cárie em cheio com o gancho!
– ....
Resultado, tivemos que parar tudo para ver a porra da cárie. Achei que ela fosse alugar um smoking para mexer na minha cárie (sim, eu percebi que isso era uma acontecimento especial na vida dela), mas um traje de gala não combinaria com a serra e o bate-estaca que ela usou a partir daí. Sinceramente, eu não lembro muito do que aconteceu. Provavelmente meu cérebro bloqueou essas memórias, e elas serão alcançadas apenas por hipnose. E, quando ela acabou com a cárie, começamos a raspagem de novo. Mas, aí, a raspagem já era fichinha.
– Doeu porque a anestesia não pegou a cárie, e eu acertei a cárie em cheio com o gancho!
– ....
Resultado, tivemos que parar tudo para ver a porra da cárie. Achei que ela fosse alugar um smoking para mexer na minha cárie (sim, eu percebi que isso era uma acontecimento especial na vida dela), mas um traje de gala não combinaria com a serra e o bate-estaca que ela usou a partir daí. Sinceramente, eu não lembro muito do que aconteceu. Provavelmente meu cérebro bloqueou essas memórias, e elas serão alcançadas apenas por hipnose. E, quando ela acabou com a cárie, começamos a raspagem de novo. Mas, aí, a raspagem já era fichinha.
Meia hora depois, ela saiu de dentro da minha boca e limpou o suor da testa. Até o meu celular estava doendo. Ela olhou para mim e disse:
– Pronto. Doeu muito?
– U ki vsse acha?, eu consegui balbuciar, com o lábio não me obedecendo.
– E olha que esse era o quadrante mais light. Doeu bastante por causa da cárie.
– Pdemus falar de ôtra cois?
– Sim, porque o arame entrou com tudo na cárie, que estava inflamada.
– Cual part de “pdemus falar de ôtra cois” vce num tendeu??
– Ok. Vamos dar uma última lavada e aí...
– Não!
– Pronto. Doeu muito?
– U ki vsse acha?, eu consegui balbuciar, com o lábio não me obedecendo.
– E olha que esse era o quadrante mais light. Doeu bastante por causa da cárie.
– Pdemus falar de ôtra cois?
– Sim, porque o arame entrou com tudo na cárie, que estava inflamada.
– Cual part de “pdemus falar de ôtra cois” vce num tendeu??
– Ok. Vamos dar uma última lavada e aí...
– Não!
Ela me ignorou e veio com aquele jato de água de novo. Acho que comecei a chorar na cadeira. Ela pegou um caderno e começou a rabiscar algo.
– Quinta-feira que vem você volta?
– Eu quero morrê... Por afor... Acaba ogo cumigu...
– Quinta-feira, mesmo horário, ta?. Ah, sim. Duas coisas. Primeiro, você não pode tomar gelado.
– Ah, jura? Eu jmais tria desconfiado.
– Sim, se você tomar gelado, vai doer. E aí você vai me ligar e dizer: [voz de criança] Doutora Ana, eu fiz o tratamento, mas minha boca está doendo?
– Eu num sou monglóide! Eu num ia falá assim!
– Vai doer porque seu dente está sensível após o tratamento.
– Num é só o denti. Eu tamém tô.
– Então, nada de gelado. Ah, e u gostaria que você não fumasse pelas próximas duas horas.
– Hum? Vsse nloqueceu!
– Sim. Sem cigarro por duas horas.
– Eu fumo cuando fico nervosu. Eu stou nervosu! O qui vsse fez acui na inha boca num foi gostoso. Eu vô fumá sim que coloca u pé na cualçada!
– Quinta-feira que vem você volta?
– Eu quero morrê... Por afor... Acaba ogo cumigu...
– Quinta-feira, mesmo horário, ta?. Ah, sim. Duas coisas. Primeiro, você não pode tomar gelado.
– Ah, jura? Eu jmais tria desconfiado.
– Sim, se você tomar gelado, vai doer. E aí você vai me ligar e dizer: [voz de criança] Doutora Ana, eu fiz o tratamento, mas minha boca está doendo?
– Eu num sou monglóide! Eu num ia falá assim!
– Vai doer porque seu dente está sensível após o tratamento.
– Num é só o denti. Eu tamém tô.
– Então, nada de gelado. Ah, e u gostaria que você não fumasse pelas próximas duas horas.
– Hum? Vsse nloqueceu!
– Sim. Sem cigarro por duas horas.
– Eu fumo cuando fico nervosu. Eu stou nervosu! O qui vsse fez acui na inha boca num foi gostoso. Eu vô fumá sim que coloca u pé na cualçada!
Percebi que estava soando como Homem-Elefante. Só faltou eu pega-la pelo colarinho e começar a gritar que “não sou um monstro, sou um ser humano!”. Mas, ela me convenceu a prometer que não fumaria pelas próximas duas horas, mostrando aquelas malditas fotos de pessoas com dente podres – todas elas exageradas, mostrando aquelas pessoas do meio da África que ficaram três encarnações sem escovar o dente. Aposto que foram os primeiros experimentos dela.
Quando eu prometi tudo aquilo – inclusive que sim, volto quinta-feira que vem – ela me deixou ir embora.
Fui para a rua e respirei fundo. Olhei no relógio e percebi que eu não estava vendo as horas, mas sim quanto tempo faltava para a próxima consulta. Ah, sinto muito. Já que eu vou começar a viver aterrorizado, vou ao menos ter um pouco de prazer, e mostrar que minha boca pode estar inutilizada, mas a minha alma ainda é de um guerreiro.
Dei a volta ao redor da casa, parei embaixo da janela do consultório e acendi um cigarro, dando uma longa tragada desafiadora. Ok, o cigarro quase caiu da minha boca por causa da anestesia, mas, ainda assim, o gesto não foi em vão. Aquilo não era uma simples tragada, era um gesto de resistência à toda e qualquer forma de tirania existente no planeta. Fiquei ali, fumando de forma desafiadora e olhando para a janela.
Quando eu ia gritar algo como “quer me pegar, eu estou aqui fora!”, ela apareceu na janela, ainda com o avental sujo de sangue. Antes que ela me visse, saí correndo – ou algo parecido com isso, porque metade do meu corpo ainda não me respondia – e me atirei dentro de um táxi.
– Me lev’embora dacui!, disse pro taxista.
– Quê?
– Vam! Vam bora!
E assim, parti para uma mais etapa da minha vida. A merda de etapa da Coca Zero sem Gelo. E, pior, quinta-feira que vem tem mais. Ô fase!
18 comentários:
huahuaahauh Nem comento que sofri o mesmo dias atrás (tá no meu blog tb) Pior hora não poderia haver p ler seu post, afinal quarta eu volto lá no carniceiro...
Pedi logo p arrancar a pesta p nao ter q voltar mais...hauhauahau
Bom texto, bom mesmo. Valeu!
Pelo que você descreve, essa mulher é uma monstra! Oo
Me dê o telefone do consultório dela. Só assim terei certeza que nunca irei lá.
hehehe
BeijOo =D
Hehehe...Voc~e é muito original.O importante é que não ewsconde a sua dor.Os atiradores no alto das favelas escondem nas balas e por elas se aliviam atirnado nas gentes.
Parabéns!Atire palavras!
eu tenho uma mania esquisita, eu vejo o tamanho dos posts antes de começar a ler. e ao puxar a tela para baixo, mesmo antes de ler o texto morri de rir só com as figuras. Depois de ler o texto então... Já decidi, só leio o teu blog depois que o povo sai do escritório pq é muito difícil segurar a gargalhada!!!
beijos
**Chorando de rir da sua desgraça alheia descrita, AHAUHUHAUHAUUHAUHAU.
Que dentista é essa minha gente, ta loco....
Rob. te indiquei a um Meme. Dá uma passada lá e confere. Abraços!
mais uma vez... coitado de vc...
rsrs
mas sorte a nossa, pq ficou um post hilário...
ah, recupere suas energias... na quinta vc vai precisar...
"Comecei a ter dó do tártaro."
"– Resistance is futile. Cospe."
Só você mesmo! Mas minha predileta (figurativamente!) foi esta:
"– Enquanto eu raspava sua boca, achei uma cárie!"
Me lembrei imediatamente de "Maratona da Morte"! Brrrrrr!!!
E você tem de voltar na quinta...
...is it safe?
Há há há há há há...
Cara, Tive que voltar e ler a história do começo. Foi ótimo porque foi como pegar um "box" da série e ver tudo de uma vez.
A riqueza de detalhes de um escritor/cinéfilo é incrível. Ri
principalmente ao imaginar a anestesia sendo tomada e o cara ficar como se tivesse tido um derrame, com parte do corpo imobilizada.
Parabéns, não é por acaso que o blog tem tantas premiações.
e ai cara...
Entra lá no meu blog , e veja a indicação que eu deixei lá , para ti. è um reconhecimento simples , mas que você precisa ter...
http://clickfilmes.blogspot.com/
é do teu interesse...
Quanto ao post. Sempre é um espetaculo ver você escrevendo...
Abraço
Dentistas me lembram a Liza e o Bart nos Simpsons onde eles ouvem a mãe deles comentado que "Crianças podem ser tão crueis!" e ele retrucam: "PODEMOS,MÃE?"
boa sorte na quinta e tente quem sabe a hipnose (mas não em você, na dentista, pra ela fazer só o que você quer)rs.
Beijos
Mariliza
Muito bom Rob! :D
Te presenteei com um selo (coisa boba mas merecida), tá lá no Troféu. Passa lá e confere depois. :)
Abração e boa sorte na quinta. :X
Você brinca com o perigo, cara...
Boa sorte semana que vem.
o/
Opa... tem uma indicação, prêmio selo pra você lá no Pequeno Inventário... passa lá depois pra ver!
abraço!
hahaha! muito bom!
Sabe, eu realmente acredito que os braços de cadeiras de dentista são feitos de adamantium! rs... Mesmo que eu não sinta um décimo da dor que você descreveu, eu travo minhas mãos nesses apoios e puxo com toda a força que tenho quando o dentista usa alguma máquina de tortura nos meus dentes.
Enquanto metade do meu pensamento quer que voce não sofra na próxima consulta, a outra metade é bem sádica, e deseja uma continuação nesta saga! Abraço!
Quase que o chefe me pega gargalhando no meio do expediente.
Agora só leio seu blog no horário do almoço ^_^
Ainda bem que desisti da profissão, todo mundo que eu conheço morre de medo de dentista.
Mas você descreveu muito bem o prazer que um dentista sente quando pega um caso de gengivite como o seu, eu a-do-ra-va pegar casos complicados assim na faculdade ^_^
Beijos
Sil
ai caramba cada coisa rsrsrsrs
o melhor é "Aquilo não era uma simples tragada, era um gesto de resistência à toda e qualquer forma de tirania existente no planeta"
bom uma ida ao dentista pode render mto heim...tu me mata de rir cara...
Nossa Rob, deve ter sid um sofrimento sem tamanho... mas heróis têm que passar pela tortura para serem aclamados heróis!
Bjs!
Voce jah extraiu o ciso?
eh mais ow menos assim... a diferença eh na hora q extrai... e ainda fia uma semana comendo coisa liquida rsrs
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