18 de agosto de 2022

POU! TUM! CRÁS!

 Já faz bastante tempo que eu tenho pensado em voltar a escrever para mim.

Se isso aqui fosse uma coletiva de imprensa, eu teria vários motivos bonitos para dar sobre isso. “Quando escrevo para mim, não preciso usar regras”. Quer dizer, eu uso regras para a construção de texto, mas todas elas são minhas. Outro motivo? “Quando escrevo para mim, não tenho prazos”. Mesmo porque quando eu faço textos como esse, eu escrevo mais rápido que consigo acompanhar. Sim, eu poderia listar motivos e mais motivos aqui.

Mas o motivo mesmo é que sinto falta.

Aliás, eu não sei se sinto falta de escrever para mim, ou se sinto falta de algo que fazia antes, que era ir até a padaria e voltar com três histórias na cabeça. Acho que sinto falta dos dois. Mas sinto falta, principalmente, da sensação de “dia preenchido” quando postava em algum dos dois blogs.

 Enfim. Faz semanas que tenho pensado nisso com mais frequência. E o que mais me incomoda é que pareci que perdi a prática em descobrir histórias onde elas não existem. Era sobre isso que eu estava pensando ontem quando entrei na cozinha e coloquei um prato na pia.

Eu ainda estava pensando nisso quando minha pia virou uma espécie de apresentação do programa Ra-Tim-Bum. Coloquei o prato de um modo que ele empurrou uma vasilha; a vasilha bateu numa garfo que explodiu um balão; o som da explosão assustou um rato que saiu correndo e pulou numa colher; a colher bateu num pote que ligou um ventilador que empurrou as folhas de um coqueiro que bateram num copo.

E o copo rodou, rodou e rodou até a beira da pia. Aí ele parou, olhou para mim, deu uma piscadinha... E se atirou da pia rumo ao chão.

Aí testemunhei aquele fenômeno físico que acontece somente depois que um copo, depois de pensar bastante a respeito do assunto, conclui que a Lei da Gravidade não existe – ou, que pelo menos, ela não é tudo isso – e decide que irá provar isso na frente de todo o resto da louça, se atirando de um penhasco:

 O tempo congelou.

Talvez bastasse eu esticar o braço para tentar apanhar o copo. Mas meu corpo não se movia. Ou, ao menos, não se movia na velocidade normal. Minha mente, porém, funcionava a todo vapor. Antes mesmo do copo percorrer metade do trajeto rumo ao chão, eu já havia decidido que, na pior das hipóteses, iria colocar a culpa no gato.

Com isso definido, comecei a pensar no que fazer. Eu tinha duas alternativas: a primeira continuava a ser “tentar apanhar o copo”. Mas meu corpo ainda não estava na velocidade normal. Era como se eu e o corpo estivéssemos em planos diferentes. Ou como se eu fosse o Vigia da Marvel.

“Estou desde o começo vendo copos caírem, mas não posso interferir”.

O ponto é que tudo o que consegui fazer foi assistir ao copo cair no chão.

 POU!

 “POU?” Como assim, “POU?”

 Não devia ter sido CRÁS Ou talvez CRASH? Sim, CRÁS ou CRASH, qualquer um dos dois, desde que milhares de cacos de vidro se espalhassem pela cozinha depois do barulho. Porque, veja bem, eu não sou exatamente especialista no assunto, mas tenho minha parcela de copos quebrados. E a maioria deles aconteceu em completo estado de sobriedade, e tenho certeza que o som fica sempre entre CRÁS ou CRASH.

Mas não. O copo fez POU, pelo simples motivo de que ele achou que seria uma boa ideia, ao invés de se espatifar no chão, quicar de volta para o alto.

Tem copo que faz isso, né? Ele cai e quica de volta, que nem uma bola. Eu não sei se é alguma aposta que ele fez com os outros copos, se é simplesmente vontade de aparecer, ou se faz isso para impressionar alguma xícara que ele ficou sabendo que está solteira. O ponto é que ele faz.

E o tempo continuou parado. Porque o tempo não congela quando o copo cai, mas sim durante todo o intervalo que ele permanece no ar.

Só que o problema não é que o copo simplesmente voltou para o alto. Ele fez isso dando piruetas, seguidas de um mortal duplo, e voltou a cair.

E eu ali, olhando. Sem poder fazer nada. Tudo o que eu conseguia fazer era pensar a respeito do copo. Será que naquele momento a vida inteira do copo estava passando na frente dos seus olhos? Será que ele estava se lembrando de todas as vezes que coloquei Coca lá dentro? Estaria ele se lembrando das noites que ele passou esquecido ao lado do computador?

O copo continuava girando no ar e começou a cair. E meu pensamento também deu uma volta.

Comecei a questionar a relação entre copos e mortes. Será que eles acreditam que existe alguma espécie de vida após a morte? Ou depois que eles se arrebentam é realmente o fim de tudo – com exceção daquele caco que escorregou para baixo do fogão e só vai ser descoberto meses depois? Existe algum tipo de luto, de cerimônia? Onde será que a Santa Marina entra nessa história?

 TUM!

TUM? Não devia ser TUM. É um copo. Ele é de vidro. Vidros não fazem TUM. Sei lá, estacas de madeira podem fazer TUM.  Mas copos de vidro? Cadê o CRÁS? Ou o CRASH, que seja?

Não. O copo realmente fez TUM. Lembra que eu disse que ele estava dando mortais e piruetas no ar? Ele encerrou a série literalmente caindo de pé e agradecendo à plateia. Ergui os olhos em direção à pia e vi três talheres levantando as placas com as notas. 10. 9. 9.5. Quase uma ginasta russa.

E a ginasta russa estava no ar novamente, dando novas piruetas. Desta vez, girando ao redor de si mesma na diagonal, como se fosse um elétron. E rindo da minha cara, vendo que eu não conseguia me mexer.

Mas aí comecei a achar que era abuso. Sabe, quer cair fazendo POU e não quebrar? Ok, eu consigo eu aceitar. Quer bater no chão fazendo TUM e voltar para o ar. Vá lá, que seja. Você é um copo adulto, não vou me meter na sua vida. Agora um POU e um TUM na mesma queda já é demais. Já é abuso.

Foi quando lembrei do Matrix. Talvez seja tudo uma simulação, e se eu aceitar isso, posso tentar fazer a mesma coisa. Sim. Eu não devia tentar apanhar o copo, e sim me convencer de que o copo não existe. E foi o que fiz. Mergulhei naquela realidade onde o tempo e o espaço não fazem sentido algum – e são maleáveis – e estiquei o braço na direção do copo.

Ele ria. Acho que ele fez um gesto obsceno para mim, mas não tenho certeza. E também não dei muita atenção. Apenas estiquei o braço, guiado totalmente pelos meus instintos, e apanhei o copo com segurança.

– EU SOU O ESCOLHIDO!, gritei na cozinha.

O problema é que eu estava no “lhi” de “Escolhido” quando o copo escapou dos meus dedos, deu mais uma volta, bateu no meu pulso e mergulhou – veja bem, ele não caiu; ele mergulhou – em direção ao chão.

CRÁS!

Ah. Agora sim. Finalmente.

O tempo voltou à velocidade normal enquanto os cacos ainda deslizavam pelo chão da cozinha (um deles foi para baixo do fogão, e vai ficar lá até o fim do ano para aprender a não fazer mais isso). Desta vez, eu conseguia me mover naturalmente, mas não fiz nada. Não havia mais nada a ser feito.

Não. Minto. Tinha algo que eu podia fazer. Tinha algo que eu devia fazer.

Foi quando Filipino colocou o rosto na porta da cozinha.

– Papai! Que barulho foi esse?

E respondi a única coisa que podia ter respondido. A coisa que esperei anos para voltar a falar.

– O papai teve uma ideia para um texto. O papai ainda sabe fazer isso.

Mas ele não estava ouvindo. Sua atenção estava toda voltada para os cacos no chão.

– Você quebrou o copo?

– Eu? Não. Claro que não. Foi o gato.

Mas ele já tinha saído correndo pela casa.

– O PAPAI QUEBROU UM COPO!

– FOI O GATO, FELIPE! FOI O GATO!

Mas, na boa? Foda-se o copo e foda-se o gato. Limpei os cacos e vim para o computador escrever. Porque eu PRECISAVA escrever.

7 comentários:

Aprendiz disse...

Cara, a vida é bem bizarra. Esses dias comecei a ouvir o podcast Gente Que Escreve e o primeiro texto que decidi procurar sobre Rob Gordon, advinha? Dia 18, hoje.

Elise Garcia disse...

Puta merda, como eu senti falta dos seus textos!
Quando o caco do copo sair do castigo agradeça a ele por mim, sim?

pityfi disse...

MARAVILHOSO!!!! Sério, eu amo seus textos e a mistura de realidade e ficção!!
Só não precisava culpar o Gato Ridículo, tadinho...

Cesar disse...

Puta merda, que saudades do seu texto, PQP…
MORRI NO FOI O GATO!!
Hahahahahaha!

Anônimo disse...

Que texto incrível, como eu senti falta de ler um texto do Rob Gordon!

Mario Cau disse...

Que saudade de ler seus textos, meu irmão. Bem-vindo de volta!

Juliana Canoura disse...

E nós de ler você de novo! ❤️