Eu não estava no meu escritório esperando o tempo passar por
um simples motivo: eu não tinha mais escritório. Pilhas de caixas com arquivos
de casos antigos se escoravam na parede, enquanto eu carregava cada uma delas
para o carro. No começo foi fácil. Mas, a partir da sexta ou sétima caixa, minhas
pernas acusaram a idade e decidi fumar um cigarro.
Debrucei num canto da laje e observei a rua. Era o começo da
noite e o céu laranja já havia se tornado uma lembrança. Os postes abriam
pequenas ilhas de claridade na escuridão da rua. Na avenida, ao longe, carros se
amontoavam com pessoas voltando do trabalho. Pelo barulho das buzinas, nenhum dos
motoristas estava feliz em voltar para casa.
As estatísticas da polícia dizem que esse horário ainda é
seguro. Os jornais, desesperados para encher suas páginas, compram essa ideia. Mas
números não entendem as ruas. Predadores não agem de acordo com o relógio. Basta
o Sol se esconder para que eles comecem a vasculhar calçadas em busca de presas.
Sempre foi assim na floresta. É assim na cidade.
E era assim na frente da minha casa.
Estava na metade do cigarro quando o carro preto estacionou
na frente da minha garagem. Poderia ser algum marido buscando a esposa na missa
da igreja da frente, que havia acabado de terminar. Mas os católicos que
frequentam a missa preferem parar na frente da igreja, mesmo sabendo que e proibido
estacionar ali. Pelo jeito, as leis não se aplicam a quem está com as rezas em
dia.
O carro não tinha nada a ver com a missa. Assim que ele
parou – o motor ficou ligado – um sujeito de vinte e poucos anos abriu uma das
portas traseiras e andou apressado até a frente do veículo. Aparentemente, seu
alvo era o carro da frente, um veículo importado e caríssimo da vizinha
barulhenta que acredita que o melhor momento para ouvir música é quando estou
no telefone.
Quando o rapaz estava entre os dois carros, parou e olhou freneticamente
para os lados, como um menino que planeja assaltar a lata de biscoitos. Mas ele
se esqueceu de um lado. Ele não olhou para cima.
Ele não olhou para mim.
Existem predadores de todos os tipos. O rapaz na frente de
casa era do tipo inexperiente, que anda pelas ruas fazendo uma ou outra presa
até ser inevitavelmente caçado por um predador maior. Esse é um dos problemas da
cidade. Ela está cheia de presas que acreditam que são predadores.
Dei uma tragada no Marlboro de filtro vermelho. Antes de soprar a fumaça eu já
havia adivinhado que ele estava ali para roubar o estepe.
Minha vontade era virar as coisas e ir fumar dentro de casa.
Apenas dois motivos fazem uma pessoa deixar um carro que vale mais do que eu
ganho em um ano estacionado na rua: ou ela não sabe o valor do que tem ou
acredita que está imune à cidade. Nos dois casos, a pessoa precisa levar um
tapa da realidade.
Mas não pega bem para alguém na minha área de trabalho não
cuidar da própria calçada. Enquanto eu enchia meus pulmões de fumaça mais uma
vez, o garoto deitou no chão com uma agilidade surpreendente e começou a mexer
na parte de baixo do carro.
Mesmo com a barriga na rua, como um bêbado que não encontrou
o caminho de volta, continuava olhando para os lados. Estava assustado e
mostrando que fugiria de volta para sua toca ao menor sinal de perigo.
Expirei a fumaça e decidi que era hora de bater o pé e
espantar o rapaz. Eu não precisava pensar no que falar, mas sim em como falar. Ao
se lidar com alguém que está assustado, o tom de voz é uma mensagem muito mais ameaçadora
que qualquer palavra. Respirei o mais fundo que a idade e os cigarros me
permitem e deixei meu grito escapar.
“Posso ajudar em alguma coisa, meu irmão?”
Eu mal havia terminado a frase e ele estava de pé, olhando
para mim. Seus olhos piscavam assustados. Provavelmente, a única coisa maior
que o medo que sentia era o arrependimento de não ter olhado para cima antes de
deitar na rua.
Eu o encarei de volta, esperando pela sua reação, pronto
para pular para trás, ao menor sinal de perigo. Mas tudo o que ele fez foi
correr de volta para seu carro. Abriu a porta traseira e olhou de volta para
mim, talvez para ver o que eu estava fazendo. E o que eu estava fazendo era
apontar o dedo para ele.
“Se manda”, eu disse, apontando agora para a esquina. “Esquece
que isso aconteceu e não volta mais para cá”.
Antes que ele batesse a porta do carro, o veículo já estava
descendo em disparada pela rua. A vizinha continuou com seu estepe caríssimo e
as pessoas da missa começaram a sair da igreja, sem desconfiar do pequeno
predador que estava ali minutos antes.
Eu dei mais uma tragada no cigarro. Não ganhei nada por esse
trabalho. Não é a primeira vez que isso acontece. Não será a última.
Voltei para dentro de casa e fui pegar mais uma caixa.
9 comentários:
Caralho o.O
Muito bom Rob.
Gostei do novo formato.
Ficou muito bom...
Mandou bem, muito bem mesmo.
Genial.
Caramba rob, quanta sagacidade
Muito bom, cara! Eu li em preto e branco! Valeu por compartilhar!
Excelente! Me convenceu agora a comprar um livro do Raymond Chandler para experimentar o gênero noir.
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