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9 de agosto de 2017

Pequeno Conto Noir

Eu não estava no meu escritório esperando o tempo passar por um simples motivo: eu não tinha mais escritório. Pilhas de caixas com arquivos de casos antigos se escoravam na parede, enquanto eu carregava cada uma delas para o carro. No começo foi fácil. Mas, a partir da sexta ou sétima caixa, minhas pernas acusaram a idade e decidi fumar um cigarro.

Debrucei num canto da laje e observei a rua. Era o começo da noite e o céu laranja já havia se tornado uma lembrança. Os postes abriam pequenas ilhas de claridade na escuridão da rua. Na avenida, ao longe, carros se amontoavam com pessoas voltando do trabalho. Pelo barulho das buzinas, nenhum dos motoristas estava feliz em voltar para casa.

As estatísticas da polícia dizem que esse horário ainda é seguro. Os jornais, desesperados para encher suas páginas, compram essa ideia. Mas números não entendem as ruas. Predadores não agem de acordo com o relógio. Basta o Sol se esconder para que eles comecem a vasculhar calçadas em busca de presas. Sempre foi assim na floresta. É assim na cidade.

E era assim na frente da minha casa.

Estava na metade do cigarro quando o carro preto estacionou na frente da minha garagem. Poderia ser algum marido buscando a esposa na missa da igreja da frente, que havia acabado de terminar. Mas os católicos que frequentam a missa preferem parar na frente da igreja, mesmo sabendo que e proibido estacionar ali. Pelo jeito, as leis não se aplicam a quem está com as rezas em dia.

O carro não tinha nada a ver com a missa. Assim que ele parou – o motor ficou ligado – um sujeito de vinte e poucos anos abriu uma das portas traseiras e andou apressado até a frente do veículo. Aparentemente, seu alvo era o carro da frente, um veículo importado e caríssimo da vizinha barulhenta que acredita que o melhor momento para ouvir música é quando estou no telefone.

Quando o rapaz estava entre os dois carros, parou e olhou freneticamente para os lados, como um menino que planeja assaltar a lata de biscoitos. Mas ele se esqueceu de um lado. Ele não olhou para cima.

Ele não olhou para mim.

Existem predadores de todos os tipos. O rapaz na frente de casa era do tipo inexperiente, que anda pelas ruas fazendo uma ou outra presa até ser inevitavelmente caçado por um predador maior. Esse é um dos problemas da cidade. Ela está cheia de presas que acreditam que são predadores.

Dei uma tragada no Marlboro de filtro vermelho. Antes de soprar a fumaça eu já havia adivinhado que ele estava ali para roubar o estepe.

Minha vontade era virar as coisas e ir fumar dentro de casa. Apenas dois motivos fazem uma pessoa deixar um carro que vale mais do que eu ganho em um ano estacionado na rua: ou ela não sabe o valor do que tem ou acredita que está imune à cidade. Nos dois casos, a pessoa precisa levar um tapa da realidade.

Mas não pega bem para alguém na minha área de trabalho não cuidar da própria calçada. Enquanto eu enchia meus pulmões de fumaça mais uma vez, o garoto deitou no chão com uma agilidade surpreendente e começou a mexer na parte de baixo do carro.

Mesmo com a barriga na rua, como um bêbado que não encontrou o caminho de volta, continuava olhando para os lados. Estava assustado e mostrando que fugiria de volta para sua toca ao menor sinal de perigo.

Expirei a fumaça e decidi que era hora de bater o pé e espantar o rapaz. Eu não precisava pensar no que falar, mas sim em como falar. Ao se lidar com alguém que está assustado, o tom de voz é uma mensagem muito mais ameaçadora que qualquer palavra. Respirei o mais fundo que a idade e os cigarros me permitem e deixei meu grito escapar.

“Posso ajudar em alguma coisa, meu irmão?”

Eu mal havia terminado a frase e ele estava de pé, olhando para mim. Seus olhos piscavam assustados. Provavelmente, a única coisa maior que o medo que sentia era o arrependimento de não ter olhado para cima antes de deitar na rua.

Eu o encarei de volta, esperando pela sua reação, pronto para pular para trás, ao menor sinal de perigo. Mas tudo o que ele fez foi correr de volta para seu carro. Abriu a porta traseira e olhou de volta para mim, talvez para ver o que eu estava fazendo. E o que eu estava fazendo era apontar o dedo para ele.

“Se manda”, eu disse, apontando agora para a esquina. “Esquece que isso aconteceu e não volta mais para cá”.

Antes que ele batesse a porta do carro, o veículo já estava descendo em disparada pela rua. A vizinha continuou com seu estepe caríssimo e as pessoas da missa começaram a sair da igreja, sem desconfiar do pequeno predador que estava ali minutos antes.

Eu dei mais uma tragada no cigarro. Não ganhei nada por esse trabalho. Não é a primeira vez que isso acontece. Não será a última.

Voltei para dentro de casa e fui pegar mais uma caixa.

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