Olhando com atenção, eles eram bem parecidos. Tinham a mesma
altura e o mesmo tipo físico. E se vestiam com roupas semelhantes. Mas, por
outro lado, eram bem diferentes entre si. Um estava com a cabeça completamente
raspada – o que não escondia sua calvície. O outro estava deixando os cabelos
crescerem. Estavam na altura da nuca.
Mas a grande diferença entre eles estava nos olhos. O
cabeludo tinha aquele brilho de quem acredita que cada dia pode ser uma
aventura diferente. Já os olhos do careca estavam cercados por linhas de expressão
e traziam aquela calma de quem sabe que a grande aventura não está mais em um momento,
mas sim na soma de todos os dias.
Essa forma com que cada um enxergava a passagem do tempo era
a grande diferença entre eles. E era fácil de ser explicada.
Afinal, um tinha 14 anos.
O outro estava com 41.
Mas, mesmo assim, ainda eram bem parecidos. Inclusive no
gosto. Ambos estavam encostados no balcão de uma loja de CDs no centro da
cidade. O Mais Novo havia pedido o disco de sua banda favorita e o vendedor
havia desaparecido por uma portinha para buscar o LP. O Mais Velho esperava sua
vez de ser atendido. E, enquanto o vendedor não voltava do estoque, puxou papo
com o garoto.
“Eu também gosto muito dessa banda”, ele disse.
“Para mim, eles são os melhores”, o garoto respondeu.
“Eu já pensei assim um dia. Hoje eu mudei de ideia. Mas
ainda gosto muito.”
“Não, não existe nenhuma banda melhor que essa”, o Mais Novo
devolveu contrariado.
O Mais Velho sorriu ao compreender a reação do garoto. Há
décadas não se sentia ofendido quando alguém duvidava das bandas que ele
gostava, mas havia feito isso antes. Muitas vezes. Música era algo importante
para ele. Mas, antes que pudesse responder, o Mais Novo emendou.
“Talvez os Beatles. Mas são os Beatles, então não conta.”
“Você gosta de Beatles?”
“Sim. Eu tenho uma fita em casa com 20 sucessos deles. É bom
demais. Mas Guns... Guns é mais pesado”.
O Mais Velho não comentou que essa fita K7 dos Beatles,
década depois, teriam se transformado em todos os discos da banda e uma
tatuagem no ombro. Preferiu manter o assunto no peso das músicas.
“Eu sei. Quando eu tinha sua idade, isso fazia diferença.
Quanto mais pesado, melhor. Eu e meus amigos pensávamos assim”.
“Eu e meus amigos também achamos isso. Por isso ouvimos
Guns. E não é só o peso, sabe? A música é animal, mas o que pega é a atitude.”
“Atitude?”, o Mais Velho perguntou, fingindo não saber sobre
o que o garoto estava falando.
“Você vê os shows e os clipes, e sabe que eles são daquele
jeito o dia inteiro. Não é só quando estão tocando. Eles estão lá fumando e
bebendo no meio do show. Tipo, eles não estão nem aí para nada. Eles que
mandam”.
“Sim, e isso é importante”, o Mais Velho respondeu, antes de
mudar de assunto. “Você já foi a um show deles?”
“Não. Mas eu ainda vou um dia. E você?”
“Eu também nunca fui.”
“O show deles deve ser animal. Eu já vi uns vídeos na TV.”
“Sim, sim. Eu também”, o Mais Velho sorriu. “Quais outras
bandas você gosta?”
“Faith No More”, o Mais Novo respondeu sem precisa pensar. “É
animal! Os clipes também passam direto na TV ”.
“Faith No More, Beatles... Seu gosto parece ser bom.”
“Valeu. Gosto de Raul Seixas também. Você gosta?”
O Mais Velho fez que sim com a cabeça. Dessa vez, precisou
se esforçar para segurar o sorriso. O Mais Novo não percebeu e continuou
falando.
“Você sabia que Trem das Sete é sobre a morte?”, perguntou,
sem disfarçar o orgulho que sentia por saber isso. Ele achava importante
entender sobre o que eram suas músicas preferidas. Mas não esperou a resposta e
continuou: “E você? O que mais você gosta?”
“Eu gosto muito de Iron Maiden”, o mais velho devolveu.
“Eu não conheço. Mas já ouvi falar.”
“Algo me diz que você vai gostar”.
“É pesado, né?”
“Sim. Mais que Guns”.
“O vocal é bom?”
“Sim. Mas não é só o vocal. É tudo. Sabe”, o Mais Velho explicou,
“a primeira vez que eu ouvi Iron Maiden, foi a primeira vez que consegui
escutar um baixo na vida.”
“Como assim?”
“Eu sabia que as bandas tinham baixistas, mas não sabia
direito o que era o baixo. Só descobri isso quando ouvi Iron Maiden”.
“Vou ver se ouço. O baixista do Guns é o Duff. Ele é bom demais.”
O Mais Velho sabia que o Mais Novo estava mentindo. Sabia
que ele não entendia direito o que o baixo fazia dentro da música. Mas não
falou nada. Assim como havia acontecido com ele, o garoto ainda iria descobrir
que a música ia além do vocalista.
Ficaram em silêncio. O garoto pegou um disco do Megadeth e
começou a olhar o nome das músicas na contracapa. O mais velho sorriu. Ele não
compraria esse disco. Não naquele dia. Mas semanas depois, sim. Metallica.
Megadeth. Sepultura. Living Colour. Alice Cooper. AC/DC. E Iron Maiden.
“Você conhece essa banda?”, perguntou o Mais Novo.
“Sim. Eu gosto bastante”, respondeu o Mais Velho.
“Como é o som deles?”
“É bem pesado. E rápido. Mas talvez você precise de um tempo
para se acostumar com o vocal”, explicou o Mais Velho, antes de concluir: “Eu
precisei”.
O Mais Novo voltou a ler os nomes das músicas no disco, e o
Mais Velho continuou observando. Sabia que algum tempo depois, ele entraria num
estádio para assistir a um show pela primeira vez. Seria Iron Maiden, que a
essa altura já seria a sua banda preferida. Depois, iria num show do Metallica.
“E esse, você conhece?”
O Mais Velho olhou o disco do Judas Priest na mão do garoto.
Como explicaria para ele que o vocalista iria deixar a banda pouco tempo depois?
E que o mesmo aconteceria com Iron Maiden?
Se explicasse isso, teria que explicar que seria esse tipo
de coisa que faria com que ele abandonasse o heavy metal poucos anos depois –
algo que, naquele momento, o Mais Novo julgaria impossível.
Lembrou-se de si mesmo quando essas bandas começaram a se desfazer.
Na sua paixão imatura, enxergou isso como “falta de atitude” e viu riscos
estragando a imagem que tinha de seus ídolos. Demoraria muito tempo para ele
entender que os músicos eram pessoas como ele.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que isso seria bom na vida desse
garoto. Ao pegar birra do heavy metal, descobriria que a música ia além do
peso. Começaria a escutar trilhas de filmes e enlouqueceria com Ennio
Morricone. Descobriria a música clássica e se apaixonaria por Beethoven. Os
anos se passariam e ele descobriria o rock clássico, o blues, o jazz.
E, dez ou quinze anos depois, voltaria a ouvir heavy metal –
dessa vez, com maturidade suficiente para entender porque gostava tanto daquele
estilo de música. Sim, ele passaria por gêneros e mais gêneros musicais, mas
seu lar seria sempre dentro do hard rock e do heavy metal.
E hoje sabia que sempre que ouvia o primeiro disco do Guns,
voltaria a ter 14 anos. Voltaria a ser
aquele Garoto com quem estava conversando. Voltaria para uma época em tudo parecia
fresco como um céu azul brilhante. Ao saber disso, seus olhos brilharam tanto
quanto os do Mais Novo.
“Esse é o Painkiller?”, perguntou, afastando os pensamentos.
“Sim.”
“Durante muito tempo, foi meu disco preferido deles. Hoje,
isso mudou. Mas ainda gosto muito. E você vai gostar. Ele é pesado e o vocal é
maravilhoso. Tem tudo o que você gosta.”
“Não vou levar hoje porque ainda quero comprar uma camiseta.
Mas na próxima vez...”
Ah, as camisetas, pensou o Mais Velho. Quanto dinheiro havia
gasto com isso? Mas não pode falar nada, pois o vendedor voltou com um LP do
Appetite for Destruction nas mãos.
“Desculpe a demora. Era o último.”
O Mais Novo sorriu ao segurar o disco, e o Mais Velho sorriu
ao observar seu passado.
A música fazia parte de sua vida. E faria parte da vida do
Mais Novo. Seria com música que aquele garoto se apaixonaria por mulheres
impossíveis, que ele curaria seu coração sempre que ele se partisse. E, junto
com seus amigos, cantaria junto em momentos que, aos 14 anos, pareciam ser
apenas uma noite de sexta... Mas que, olhados do alto dos 41 anos, ganhavam
sabor de história.
Sim, a música seria muito importante na vida desse garoto, o
Mais Velho pensou. E, mesmo que ele já ouvisse Beatles e Raul Seixas, tudo
começaria com aquele disco. Aquele LP acenderia a fagulha.
Tudo aconteceria por causa daquele minuto. Tudo aconteceria
por causa do que o Garoto sentiu ao colocar as mãos naquele disco pela primeira
vez. E viu quando o Mais Novo colocou o disco embaixo do braço e percebeu que,
naquele momento, o menino sentia-se a maior pessoa do mundo.
Antes de ir embora, o Garoto olhou para o lado e se
despediu.
“Não vou me esquecer das suas dicas”, disse.
O Mais Velho sorriu. Tinha outros conselhos para dar, mas
sabia que era proibido. Afinal, se desse algum conselho que mudasse sua história,
seria uma pessoa diferente hoje. Talvez nem estivesse ali. E, naquele momento, tudo
o que ele queria era estar naquela loja apertada e cheia de prateleiras, olhando
a si mesmo com 14 anos.
Assim, apenas sorriu.
“Quem sabe um dia a gente não se cruza num show do Guns?”, o
mais Novo perguntou.
Novamente o dilema. Como explicar para o garoto o que
aconteceria com a banda pouco tempo depois? Os anos que demorariam até que a
banda finalmente...
Não. Não valia a pena. Assim, apenas tocou o bolso por cima
da calça e sentiu os ingressos no bolso. E sorriu mais uma vez.
“Olhe”, devolveu. “Eu acho que isso ainda vai demorar muito
tempo para acontecer. Mas eu tenho certeza que vai acontecer”.
“Como assim?”
“Algo me diz que o primeiro show do Guns que você irá será o
primeiro show do Guns que eu irei. E... Sabe? Tenho certeza que a gente vai se
encontrar lá.”
“Será?”
“Sim. Aliás, aposto que a gente ainda vai se encontrar em
muitos shows.”
O Mais Novo sorriu de volta, sem saber como responder.
Acenou com a mão e deixou a loja, olhando a contracapa do LP, estudando a ordem
das músicas que o Mais Velho ainda sabia de cor e desapareceu pelos corredores.
“E você? Procurando algo específico?”, perguntou o vendedor.
“Não”, respondeu o Mais Velho, ainda olhando para fora da
loja. “Quer dizer, sim. Mas já encontrei. Obrigado”.
Virou as costas e foi embora de volta para seu tempo. Nunca
mais conseguiram conversar diretamente – mas se encontraram em muitos shows e
ouvindo discos que os transformavam na mesma pessoa.
A loja? A loja ainda está lá.
De vez em quando o Mais Novo entra ali para comprar discos.
De vez em quanto o Mais Velho entra ali para matar a saudade de quem ele foi
aos 14 anos de idade.
3 comentários:
Relato de quem reconhece que o Tempo ensina muito e muita coisa
Texto poderosíssimo, Rob!!!
Caralho... esse bateu forte. Posso dizer que o Appetite For Destruction foi meu primeiro disco e que, nesse momento, aos 31 anos, sou ao mesmo tempo o garoto e o velho. Obrigado por trazer memórias fodas à tona.
A loja seria a Championship Vinyl? Hehehe! Megadeth era minha banda favorita nos tempos de metaleiro da adolescência. O vocal do Mustaine não é mesmo pra qualquer um.
Quanto ao baixista, é indispensável para um baterista como eu. Se o baixista erra, o baterista erra. E vice-versa.
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