Um dia, Chico Buarque apoiou um candidato do PDMB chamado
Fernando Henrique Cardoso.
Isso aconteceu nas eleições para prefeito de São Paulo em
1985. É a famosa eleição que Fernando Henrique, líder nas pesquisas, posou na
cadeira do prefeito antes da votação e acabou perdendo por pouco mais de cem
mil votos – Jânio, o vencedor, talvez a pessoa mais pitoresca da política
nacional, fez questão de dedetizar a cadeira (publicamente) antes de ocupá-la.
Esse talvez não tenha sido o primeiro jingle político que
conheci, mas é o mais antigo que me lembro. Eu completei dez anos durante a
campanha (sou de setembro) e me lembro de assistir o horário político junto com
meus pais.
Mas esse não foi meu primeiro contato com política. Entre
1980 e 1982, eu morei em Manaus, e me lembro de assistir a campanha política
das eleições de 1982. Ainda vivíamos numa ditadura e os candidatos não podiam
falar na TV – era apenas uma foto do sujeito e uma narração em off contando
quem ele era e o que tinha feito. Lembro que eu e meu irmão não perdíamos
aquilo por nada, e ficávamos escolhendo quais fotos eram as mais bizarras.
Em 1985, já morando em São Paulo de novo, lembro que fomos
um dia até a Avenida 23 de maio (é do lado da casa dos meus pais). Ela estava
fechada e esperamos algum tempo no canteiro central, enquanto as pessoas ali
iam crescendo até se tornarem uma multidão. O dia já seria inesquecível para
mim simplesmente por estar no canteiro central da Avenida 23 de Maio (na minha
cabeça, eu e a multidão ao meu lado éramos as primeiras pessoas a colocar o pé
naquela terra cercada de carros em alta velocidade por todos os lados).
Mas eu mal me lembro disso (na verdade, essa memória surgiu
agora enquanto eu escrevia esse texto). O que eu lembro mesmo é o carro de
bombeiros e o caixão coberto com uma bandeira do Brasil. Eu não sabia direito o
que era um presidente – provavelmente, eu enxergava esse cargo como “alguém que
manda em todo mundo” – mas eu sabia que dentro daquele caixão tinha um
presidente.
E um presidente que, aparentemente, as pessoas
gostavam. Quando o carro de bombeiros
passou, vi muitas pessoas chorando. Diferente de hoje, choravam sem se
preocupar com o filtro da foto. Apenas choravam. Algumas pareciam ter perdido
um ente querido.
Eu chorei também. Chorei porque todos estavam chorando, e
chorei porque eu já tinha ouvido, nas últimas semanas, que aquele homem que
estava dentro do caixão ia fazer o Brasil crescer. Eu não sabia direito o que
era “fazer o Brasil crescer”, então meu cérebro de nove anos criou uma imagem para
traduzir isso: um homem trabalhando no campo, com uma enxada na mão e sorrindo.
Era como se fosse um desenho, com um traço bem parecido com o
das histórias do Mauricio de Sousa. Até hoje eu não sei o motivo desse meu
brasileiro imaginário usar uma roupa de operário já que ele trabalhava no
campo, mas eu sei por que eu o imaginei sorrindo enquanto trabalhava.
Ele sorria porque estava feliz, e estava feliz porque o
Brasil estava crescendo.
Sim, quando você é criança, é fácil assim.
Depois que o carro de bombeiros passou, a multidão se
dispersou. Fomos embora. Eu estava de mãos dadas com a minha mãe, e vi que com
a outra mão ela limpava as lágrimas dos olhos. Eu sabia que eu e minha mãe
estávamos chorando por motivos diferentes. E por mais que eu não entendesse o
motivo dela, eu percebi naquela hora que era certo chorar por aquele presidente
dentro do caixão.
Meses depois, começou a campanha política para prefeito. E
eu me encantei por esse vídeo do Chico Buarque na campanha do Fernando
Henrique, por vários motivos. Primeiro, era o mesmo cantor que eu via nas fitas
K7 do meu pai (Construção e aquele outro disco que não lembro o nome agora e
que abre, se não me engano, com Feijoada Completa).
Aprendi a gostar de Chico Buarque com meu pai, porque eu
tive a sorte de ter um pai que não gosta de Chico Buarque, mas sim um pai que
gosta de Chico Buarque e explicava o significado das letras para o filho de
nove anos.
Além disso, o Fernando Henrique – veja bem, não era Fernando
Henrique Cardoso, nem FHC; era apenas “Fernando Henrique” – era um cara que
parecia muito mais com meu pai ou com os pais dos meus amigos que com um
politico.
Os políticos para mim eram velhos que usavam terno e gravata
e tinham nomes difíceis como Ulysses e Aureliano, enquanto o Fernando Henrique era
um cara com um nome normal, que não estava de terno falando coisas que eu não
entendia, e sim de calça e camisa sambando com o Chico Buarque no meio da rua,
cercado de pessoas felizes. Sobre a música, eu nem preciso comentar nada (a não
ser que assistindo agora, depois de trinta anos, entendi a referência genial ao
Jânio no verso “a renúncia de um fujão”).
Eu tinha nove anos. Era uma criança.
E, como eu disse, quando você é criança, é fácil assim.
Mas esse texto não é sobre o Fernando Henrique, nem sobre o
Chico, nem sobre o Jânio. Esse texto é sobre 1985, o ano em que eu chorei, sem
saber direito o motivo, por causa de um político; e sorri, sem saber direito o
motivo, por causa de outro político. Talvez o Brasil ainda fosse para frente
mesmo sem aquele presidente que passou na minha frente num carro de bombeiros.
Hoje eu sei que eu não acreditava que o Brasil fosse crescer
por causa da música do Chico, por Fernando Henrique estar sem gravata ou por
todos estarem dançando. Eu acreditava nisso porque eu via claramente que meus
pais acreditavam nisso.
Eu via isso nos rostos dos dois. E quando você tem nove
anos, se os seus pais acreditam em algo, você acredita. Porque, quando você é
criança, é fácil assim.
Aliás, não eram só eles. Os pais dos meus amigos, meus
professores na escola... Depois de duas décadas de silêncio (que eu ainda não
sabia que haviam existido) todo mundo estava pronto para ver e fazer o Brasil
crescer. Algo tinha mudado. Eu não fazia ideia do que isso poderia ser, mas
sentia isso o tempo inteiro. Estava na cara dos meus pais, nas conversas dos
adultos, no jornal que passava na TV.
Independente do que poderia acontecer, a certeza de que iria dar certo estava no ar. Tudo iria dar certo para meus
pais, para meus professores, para as pessoas que eu via na rua, para o taxista
que uma vez levou minha mãe a algum lugar e, conversando com ela, chamava
aquele presidente no caixão de “Tranquedo”, para o meu brasileiro imaginário com roupa de
operário que trabalhava no campo. Essa sensação estava nos olhos de cada um
deles, na tom de voz, no sorriso.
Isso não quer dizer que as pessoas tinham a mesma opinião. Muitos
discordavam do caminho a ser seguido. Mas todos concordavam sobre qual devia
ser o objetivo. Talvez por isso a discordância fosse apenas isso: uma
discordância. Não se terminava uma amizade por causa disso. Não se agredia
ninguém por gostar de outro partido. Não se ofendiam, nem se batiam. Era um
país onde ninguém cuspia e tudo o que se odiava era o passado. Era um país
diferente.
Talvez todos fôssemos crianças de nove anos, e não apenas
eu.
E, quando você é criança, é fácil assim.
Naquela época, pelo menos, parecia ser.
4 comentários:
Em 85, meus pais se separaram e, engraçado: eu, com 3 anos, tbm lembro vagamente de coisas assim - desde alguns outdoors, que fizeram com que meus pais descobrissem que eu sabia ler com tão pouca idade, até músicas e jingles.
Confesso que não me lembro da morte do Presidente - era, de fato, bem pequeno mesmo - mas lembro de meus pais e minha avó também depositando essa confiança que seus pais tinham numa pessoa, num ícone...
É: quando se é criança, é fácil assim... Mas e quando ficamos adultos e continua assim?
Cenas de um próximo capítulo...
O outro disco é "Chico Buarque", de 1978. Também escutei muito esse na minha infância.
Nasci num Brasil em pleno luto pelo Tancredo. Acho que nunca vou ver essa esperança de 1985 :(
"Era um país onde ninguém cuspia".
Eu tinha 5 anos quando Tancredo morreu, e também já sentia essa comoção que você descreveu. Mesmo só vindo a entender o que era apenas décadas depois.
Agora, eu não suporto o Chico Buarque. Reconheço que algumas músicas dele ficam muito boas com outros intérpretes, mas a voz dele mesmo é péssima! Mesma coisa que eu sinto quanto ao Bob Dylan, hehehe!
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