- PIMENTA! PIMENTA!
Eu estava em casa e me assustei com os gritos.
Sim, você pode achar que eu não devia ter me assustado. E,
quer saber? Eu concordo com você. Afinal, eu moro em São Paulo.
E São Paulo é uma cidade onde qualquer coisa, de pano de
prato a Playstation 5, de som de carro a bico de mangueira, é vendida na rua. Sabe
aqueles anúncios que aparecem do nada no Instagram? São Paulo é assim. Você
está ali sem fazer nada e de repente aparece um sujeito no seu portão vendendo lustres.
São Paulo é um Instagram analógico.
Então, se você mora São Paulo e escuta alguém gritando “Pimenta”
na rua, o que você imagina? Que tem alguém vendendo pimenta na rua, certo? Sim,
esse pensamento faria sentido, se não fosse por um detalhe importante:
Eram mais ou menos quatro horas da manhã.
Eu estava dormindo e literalmente acordei com alguém
gritando “Pimenta” embaixo da minha janela. E, apenas para referência, eu moro
no primeiro andar. Então, se alguém grita Pimenta embaixo da minha janela, é
como se essa pessoa estivesse em pé e parada ao lado da minha cama, tipo numa
cena de Atividade Paranormal.
Bem, quando alguém grita a palavra “Pimenta” na sua janela
às quatro da manhã, você tem duas alternativas. A primeira (e mais indicada) é tentar
se convencer imediatamente de que aquilo foi um sonho, se esforçar para dormir e
torcer para não lembrar disso no dia seguinte. A segunda, que não é exatamente aconselhável,
é levantar e ir espiar pela janela.
Adivinhem qual eu fiz?
Sim, essa mesma. Eu me sentei na cama e pensei “puta que
pariu, por que é sempre comigo?”... E talvez eu até tivesse me convencido a tentar
dormir novamente, se não fosse pelo novo grito.
- PIMENTA! VEM AQUI!
Aí eu tive que levantar, porque o “vem aqui” mudou tudo. O “vem
aqui” mostrou que não a pessoa embaixo da minha janela não estava simplesmente
gritando “Pimenta”. Ele estava CHAMANDO uma pimenta. E atiçou minha
curiosidade.
Afinal, quem chama uma pimenta?
Ou melhor: quem chama uma pimenta às quatro da manhã?
E, não podemos deixar de lado: por que é sempre comigo?
Então claro que Levantei e claro que abri a janela.
Mas não vi ninguém, a não ser um pequeno cachorro salsicha
parado na calçada. Sim, o nome é dachshund, mas eu vou usar “cachorro salsicha”
porque não quero ter que olhar no Google toda vez para ver como se escreve
isso.
O salsicha olhou para mim. Eu olhei para o salsicha. Sim,
tudo isso à quatro da manhã. Ficamos nos olhando por alguns instantes, até que
reuni coragem e perguntei para o cachorro:
- Desculpa perguntar, mas... É você que está chamando uma
pimenta?
O cachorro fez que não era com ele. Apenas virou a cara (como
se eu não fosse sequer digno de uma resposta) mijou no portão do meu prédio (pensando
bem, talvez essa seja a forma que ele encontrou de deixar clara sua opinião
sobre minha pergunta) e saiu correndo pela calçada. Eu me esforcei para
entender tudo de forma consciente e mais ou menos ordenada (eram quatro da
manhã, lembra?), quando...
- PIMENTA! VEM AQUI!
Ah. Aparentemente, Pimenta era o cachorro. Aparentemente, o
dono dele está vindo. Aparentemente, o dono dele tem o hábito de passear com os
cachorros de madrugada. E, aparentemente, gritando feito um anormal debaixo da
minha janela.
Fiquei esperando para ver o autor dos gritos, mas tudo o que
vi foi outro salsicha, que se aproximou do portão. Cheirou o mijo do Pimenta,
mijou por cima e foi embora.
- CAPU!
Espera. Como assim, Capu?
Sabe, Pimenta eu (até) entendo. Mas... Capu?! Será que é de
Capuleto? É tipo uma versão de Romeu e Julieta, feita com cachorros salsicha, mas
a garota dos Capuleto se chama Pimenta para escapar dos direitos autorais?
Será que a esta altura o Pimenta está na outra esquina, refletindo sobre a
infelicidade do amor e declamando que “sou um joguete do destino”?
- CAPUCCINO! VOLTA AQUI!
Ah. É Capuccino.
Pimenta e Capuccino. Que dupla. Pimenta e Capuccino, às
quatro da manhã.
Mas o mistério não estava resolvido. Eu já conhecia dois
cachorros e sabia o nome deles, mas faltava descobrir
- CAPUCCINO!
Sim. Ele mesmo. O autor dos gritos.
E eis que ele aparece, virando a esquina. Mais ou menos 70
anos de idade. Bermuda, camiseta regata e uma sandália de couro que tinha uma
idade parecida com a dele.
E outros dezenove cachorros salsicha andando ao seu redor. Lembra
do Chiqueirinho, do Snoopy? Lembra que ele levantava uma nuvem de pó quando andava?
O velho levantava uma pequena nuvem de cachorros salsicha.
Antes que o velho olhasse para mim e decidisse puxar papo
(convenhamos que uma pessoa que andava pela rua gritando de madrugada é tipo um
banner expansivo: ela só está esperando alguém passar o mouse para cima para começara
falar com você, cobrindo a tela inteira sem fechar nunca mais) ou mandasse o
seu exército de salsichas organizar um mijaço no portão do meu prédio, voltei
para a cama.
E adormeci ouvindo os gritos de “PIMENTA, NÃO CORRE!” “CAPU,
VOLTA AQUI!!”, “NOME DE OUTRO CACHORRO SALSICHA QUE REMETE À ALIMENTO E NÃO
ENTENDI DIREITO! JUNTO!” cada vez mais longe.
Fim da história.
Ou não, porque, dia seguinte, quatro e pouco da manhã...
- CAPU!
Ô fase.
Abri a janela e lá estava o Flautista de Hamelin. Quer
dizer, uma versão atualizada que decidiu que ratos não têm graça, então resolveu
andar pelas ruas atraindo os cachorros salsicha da cidade inteira. Lá estava
ele, o Pimenta, o Capuccino e a nuvem de cachorros salsicha. A turma toda. E eu
ali na janela, tentando entender porque tem que ser sempre comigo.
E sabe o que é pior? É toda noite isso. Bate quatro da manhã
e começa Pimenta pra cá, Capuccino pra lá... E eu ali, tentando dormir. Quer
dizer, nem tento mais dormir. Agora eu não consigo pregar os olhos antes do
Pimenta passar. Se não, não durmo. É como se estivesse faltando algo.
Mas... Por outro lado... Se olharmos para a história
inteira, talvez seja justamente o oposto. Talvez não falte mais nada. Porque
não demorou muito para eu descobrir que o velho e seu exército de salsichas
mora na minha rua.
(Certo, aqui estou roubando um pouco, porque meu prédio e de
esquina e tem dois portões: então, eu tenho duas ruas. O Velho mora em uma
delas).
E eu sou da opinião que toda rua tem o direito inalienável
de ter um velho ou uma velha. Veja bem, não estou falando de “pessoas idosas”,
estou falando do velho. Ou melhor, Velho, com maiúscula mesmo, porque estamos
falando quase de uma entidade. Manja, o Velho da Casa Monstro? É disso que estou
falando.
E eu já tive alguns Velhos. Quer dizer, a rua onde eu cresci
nunca teve um Velho mas, em compensação tivemos duas Velhas.
A primeira, que morava lá quando eu era do tamanho do Felipe
e conheço apenas por histórias, era a Dona Iolanda, que chamava a polícia
quando a molecada jogava bola na rua. A segunda – essa sim do meu tempo – era a
Velha Louca. Aliás, a Velha Louca era tão Velha Louca que era conhecida como
Velha Louca no bairro inteiro, o que ia desde os meus pais e os pais dos meus
amigos até os funcionários do supermercado.
E não posso negar que, às vezes, eu sentia falta de ter um
Velho na rua. Sabe? Aquele que você finge que não vê, mas olha com o canto dos
olhos? Aquele que você sabe que a qualquer momento pode sair correndo atrás de
você com uma barra de ferro na mão? (A Velha Louca fez isso com a gente, mas
não foi em qualquer momento, e sim no momento seguinte a termos xingado ela
pelo muro).
E agora eu tenho um Velho. Beleza, ele é acompanhado de gritos
e vinte e cinco cachorros salsichas. Sim, se você somar o Pimenta, o Capu e a
nuvem, dava 21. Mas como parece que ele tem um cachorro salsicha a cada noite
que passa gritando, creio que já estamos nos 25. Talvez mais. Mas o ponto é que
eu tenho um Velho.
E, claro, eu tenho 46 anos. Sou pai. Tudo o que quero, às quatro da manhã, é estar dormindo. Por outro lado, aquele moleque de 14 anos que ainda mora dentro de mim e não faz ideia de que o tempo passou fica o tempo cochichando na minha orelha que a coisa mais fácil do mundo é ir tocar a campainha do Velho e correr para dentro do meu prédio. Mas aí, claro, eu mando ele calar a boca.
Vamos ver no que isso vai dar.
"E outros dezenove cachorros salsicha andando ao seu redor. Lembra do Chiqueirinho, do Snoopy? Lembra que ele levantava uma nuvem de pó quando andava? O velho levantava uma pequena nuvem de cachorros salsicha." ~> Foi aqui que eu tossi uma risada e não parei mais hahahahahahhahahaha socorro xD
ResponderExcluirEu já tô feliz de vc não ter xingado, hahahahaha!
ResponderExcluir4 e meia da manhã é castigo!
Ahh, que delícia voltar a te ler! Você não sabia a falta que fazia. ❤️
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