– O Telhada está morto embaixo do carro.
Enquanto frases normais são apenas faladas, existem aquelas
que gostam de atravessar a sala correndo até dar um tabefe na sua cara. Você precisa
reagir, ou pelo menos mostrar que recebeu a mensagem, talvez demonstrando
espanto ou susto ou raiva ou o que for... Mas tudo o que você consegue é ficar estático,
sentindo o rosto arder.
Foi essa minha reação no último sábado, quando a Esposa
entrou na sala com essa notícia nas mãos. Ela estava nervosa, mas eu consegui
apenas ficar parado – por alguns segundos que pareceram metade do dia –
tentando entender o que ela havia falado. As palavras estavam todas lá. A frase
estava construída perfeitamente. Seu sentido era claro.
Mas, para mim, ela não fazia sentido nenhum.
O Telhada estava bem quando o vi pela última vez. E acho
que eu ainda estava tentando lembrar se isso havia acontecido uma ou duas noites
antes, quando percebi que estava de pé, na frente da Esposa. Não lembro o que eu
perguntei, muito menos o que ela respondeu. Afinal, mesmo sem entender o que
estava acontecendo, eu sabia que não havia nada a ser feito.
Não me lembro de descer a escada, mas sim de me agachar na
garagem e ver ele deitado de costas. Não me lembro de contornar o carro,
mas sim de estar em pé, olhando ele deitado de costas para mim, e me lembrar de
todos os filmes e livros e quadrinhos com uma cena parecida com essa, e que alguém
diz que “ele parece estar dormindo”.
Ele não estava dormindo. E eu soltei um palavrão com a
pergunta “o que aconteceu com você?” escondida em cada sílaba. Ele não me
respondeu. Ele nunca mais iria responder nada.
De repente, eu estava na rua, fumando e indo até um pet shop
aqui ao lado. Vocês podem retirar o corpo de um gato? Não? Eu não sei o que
fazer. Vocês tem alguém para me indicar? Onde fica? Descendo a Lins? Certo.
Obrigado. Não. Obrigado.
Fui para o outro lado do bairro. Ele ainda estava embaixo do
carro, mas também dentro da minha cabeça.
Não era meu gato. Era apenas um gato que havia aparecido no
telhado dois anos atrás, visivelmente com fome. Escrevi sobre ele. Passei
semanas subindo no muro para dar comida para ele, até que ele se acostumou e –
para alegria dos meus joelhos, que rosnavam sempre que eu descia do muro – criou
coragem de entrar na garagem. E ele sempre voltava.
Não era meu gato. Provavelmente, não era de ninguém. Mas sabendo
que precisava ser de alguém, recebeu o apelido óbvio de Coronel Telhada. Eu
saía para fumar à noite e ele estava sentado na escada, esperando pela ração. Assim
que eu aparecia, ele corria para a calçada e ficava me observando até eu trocar
a ração. E ele sempre voltava.
Não era meu gato. Nunca sequer encostei nele – o mais perto
que consegui chegar foram três metros, antes dele sair correndo, desconfiado. Mas
nunca precisei encostar. Conversava com ele quando ele estava na escada, ou na
laje acima da porta da sala, observando cada movimento que eu fazia no quintal.
Fumava e conversava com ele. E ele sempre voltava.
Não era meu gato, mas era minha responsabilidade. Especialmente
quando apareceu miando de fome. Especialmente agora quando parecia dormindo. E
foi por isso que eu entrei em outro pet shop.
Vocês retiram corpo de um gato? Só se eu trouxer aqui? Olhe,
era um gato de rua que eu cuidava. Eu tenho três outros gatos, eu não quero tocar
no corpo dele porque eu não sei do que ele morreu. E, assim, por mais que ele
não fosse meu... Bom, eu e minha Esposa nos apegamos a ponto de... Desculpe. Olhe,
eu pago. De verdade, tudo o que eu quero é resolver isso da forma mais rápida e
mais limpa possível. Eu pago.
Não cobraram nada, além da taxa da prefeitura, e voltei com
a menina para casa. Ela com um saco vazio e eu com um saco de histórias sobre o
gato. Como ele havia aparecido. Como ele se comportava. E, quando mencionei
como ele me esperava na escada quase todas as noites, o pequeno nó que se
formou na minha garganta apertou a frase “ele não era meu gato”.
Foi tudo rápido e limpo. Havia um pouco de sangue no quintal
e mais um pouco embaixo da cabeça dele, mas eu não quis saber as alternativas
do que pode ter acontecido. Algumas explicações podiam ser cruéis, outras
podiam ser pacíficas, mas todas elas jogariam a frase “é minha responsabilidade”
num bueiro.
E foi isso que eu pensei quando fiquei parado no portão,
observando aquele saco preto que podia ter qualquer coisa dentro indo embora. E
é isso que ainda penso que sempre que eu vou fumar e, olhando para o alto, percebo
como meu telhado parece um pouco mais triste.
– O Telhada está morto embaixo do carro.
Existem frases que precisam de tempo. E algumas delas deixam
claro que não há nada que você pode fazer, a não ser aceitar. Todas as vezes
que olho para o alto e percebo o quanto meu telhado parece mais triste.
E percebo
que preciso aceitar que o gato que nunca foi meu, mas que era meu amigo, desta
vez, não irá voltar.
4 comentários:
Malditas cebolas, Rob. Malditas cebolas...
Que pena cara...
Se a escrita deve despertar sentimento nas pessoas... o trabalho foi muito mais do que bem executado.
Meus pêsames. É triste ver amigos partirem.
Bah Rob, tu me lembrou um cão meu, o Afonso.
Quando fui morar com a Esposa, não deu pra levar ele, afinal, um cachorro que sempre viveu num pátio não se adaptaria bem a um apartamento pequeno.
E uns três anos atrás, numa das vezes que fui visitar minha mãe, ele me recebeu como sempre, pulando, querendo atenção como sempre. Não dei muita atenção pra ele, ou melhor, dei menos do que eu deveria. Antes de ir embora, briguei com ele por alguma coisa qualquer e fui. Minha mãe me levou em casa, quando estava quase chegando, meu padrasto liga dizendo que ele tinha morrido atropelado, correu atrás do carro da minha mãe quando eu fui embora e, quando ele estava voltando pra casa, um carro pegou ele.
Ainda hoje, tenho um peso enorme por a última vez que o vi, ter brigado com ele, não ter dado um último carinho, nada. Eu espero de verdade que ele tenha me perdoado, porque eu nunca vou esquecer um amigo leal como o Afonso foi pra mim.
E claro, como sempre, texto brilhante, Rob!
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