Os dois estavam sentados sobre uma nuvem, olhando para
baixo.
Talvez sentar em uma nuvem possa parecer estranho para mim e
para você, mas para eles isso era algo absolutamente normal. Afinal, eram
anjos. Usavam uma veste branca e cada um tinha um par de asas nas costas.
Seus nomes? Não fazem muita diferença. Eram nomes comuns de
anjos: Gabriel, Natanael, Miguel, Samuel.
Aliás, isso pode ficar a critério do leitor, que tem
liberdade de escolher qualquer nome terminado em “el”. Basta usar o bom senso e
não escolher nomes como Aluguel, Coronel, Infiel, Carretel, Bacharel ou coisas
assim. Tonel também não pode – e o fato de você ter imaginado um anjo gordo não
muda isso. E, claro, Kal-El e Jor-El certamente darão problemas com direitos
autorais.
Enfim, vamos deixar os nomes de lado. O que importa mesmo
era que eram dois anjos extremamente parecidos entre si... Mas com uma única
diferença entre eles. Um deles era do Velho Testamento e o outro era do Novo.
E foi o do Velho Testamento quem começou o diálogo.
“Eu acho aquilo uma falta de respeito”, ele disse, apontando
o dedo na direção de uma casa. “Dormir até uma hora dessas. Isso não tem
cabimento”.
“Onde?”, o companheiro do Novo Testamento perguntou.
“Ali. Naquela casa em São Paulo”.
O Anjo do Novo Testamento apertou os olhos.
“Qual casa?”
“Está vendo a antena da Avenida Paulista?”
“Sim”.
“Desce um pouco os olhos até aquele prédio avermelhado. Viu?
Agora segue reto bem em direção ao Sul e você vai encontrar um prédio azul, com
janelas que brilham”.
“Achei. Aquilo é Vila Mariana, não é?”
O Anjo do Velho Testamento deu de ombros. Ele não estava
preocupado com isso.
“Acho que sim. Agora olhe para o leste... Aquela casa ali,
com cachorros”.
“Ah, sim. Achei. O que tem?”
“O cara ainda está dormindo. Está vendo? Olha lá a carequinha
dele para fora da coberta.”
“E daí?”
O Anjo do Velho Testamento suspirou. Detestava que os
colegas do Novo Testamento não viam problemas em nada. Mas também, pensava,
nunca tiveram que arrasar cidades inteiras habitadas por pecadores. Por fim, perguntou:
“O que aconteceu com ‘Deus ajuda a quem cedo madruga’?”.
“Bem...”, o Anjo do Novo Testamento começou a tentar
explicar.
“Todo mundo sabe isso”, o Anjo do Velho Testamento
interrompeu. “Deus ajuda a quem cedo madruga. E São quase onze e ele está na
cama. Isso não é mais preguiça, já é desaforo.”
“Mas acordar cedo não é um mandamento”, disse o Anjo do Novo
Testamento. “Não é como se ele estivesse matando alguém ou cobiçando a mulher
do próximo. Acordar cedo não é uma ordem.”
“Devia ser”, respondeu o Anjo do Velho Testamento. “Nos bons
tempos, isso já seria suficiente para eu descer até ali e arrancar ele da cama
com uma espada de fogo”.
“Você está exagerando.”
“Não, estou sendo até comedido. Porque o ideal mesmo seria
descermos até lá e destruirmos toda a cidade por causa dele. As casas dos
pecadores virariam cinzas e aqueles que ousassem olhar para isso se
transformariam em estátuas de sal”.
O Anjo do Novo Testamento reparou que o outro estava
começando a falar por entre os dentes, com os olhos vidrados. Percebeu que
seria melhor tomar cuidado com o resto da conversa.
“Os tempos são outros”, ele disse, de forma apaziguadora.
“É justamente esse o problema. Antigamente as pessoas
andavam na linha. Hoje, não. Precisamos de um novo dilúvio”. Ele ficou em
silêncio um pouco, até olhar para o outro anjo e levantar o dedo, de forma
ameaçadora. “Respeito. É isso que falta hoje. Respeito”.
“E você acha que aquele cara dormir até a essa hora é falta
de respeito?”
“Sim. Por mim, já poderíamos jogar algumas pragas para ele
acordar. Ninguém conseguiria ficar na cama com uma nuvem de gafanhotos. Você
não se lembra do Egito?”
“Eu não estava lá”.
“Bem”, o Anjo do velho Testamento olhou para baixo,
novamente. Seus olhos escondiam um pouco de... Saudade, talvez. “Você deve ter
lido a respeito. Aquilo sim que era vida.”
“Sei.”
“Sabe do que eu precisava mesmo? De um profeta. Pelo menos
isso.”
“Como assim?”
“Um profeta. Alguém que tocasse a campainha dele e falasse
que a ira de Deus irá se abater sobre ele.”
“Um profeta?”
“Sim. Eles sempre funcionaram. Não era muito fácil lidar com
eles, claro. Alguns eram meio desequilibrados. Mas acho que você precisa ser um
pouco louco para andar de cidade em cidade prometendo que os pecados daquele
lugar serão varridos por uma tempestade de areia e que as casas das pessoas
vivarão cinzas. Mas, enfim... Eles faziam o serviço”.
“Entendi”, disse o Anjo do Novo Testamento. Gostaria de
mudar de assunto, mas não sabia como. E teve a sensação de que qualquer frase
errada iria somente piorar o humor do companheiro.
“Eu precisava de um profeta. Não precisava nem mesmo ser um
daqueles apocalípticos, que andam rasgados e com barbas na altura dos joelhos.
Esses são os melhores, claro. Mas qualquer outro já ajudaria. Aí esse cara ia
descobrir o preço de dormir até a essa hora”.
“Mas eu já expliquei a você. Acordar cedo não é um
mandamento”.
“Não importa”.
“Enfim, vamos resolver isso”, disse o Anjo do Novo
Testamento, puxando um tablet do bolso. Sim, as roupas brancas dos anjos têm
bolsos e cada um deles carrega um tablet. E caso você esteja se perguntando, a
resposta é sim, o wi-fi do Paraíso é infinitamente melhor que o da sua casa.
Ele começou a apertar a tela do tablet em busca de
informações. Seu companheiro permaneceu observando para baixo, na direção do
carequinha que dormia.
Seus olhos estavam injetados de ódio e sua expressão
insinuava que ele estava tentando começar um pequeno dilúvio por conta própria.
Ou talvez transformar a água da casa do sujeito que dormia em sangue.
Porém, o Anjo do Novo Testamento não estava mais prestando
atenção nisso. Havia puxado a ficha do carequinha. Estava tudo ali. Nome.
Idade. Sonhos. A última vez que rezou. A última vez que rezou com sinceridade.
A última vez que rezou sem pedir para Deus resolver suas dívidas. Suas últimas
cinco boas ações. Seus últimos pecados.
O Anjo correu os olhos buscando a informação que queria.
Mas, no mesmo instante que a encontrou, seu parceiro do Velho Testamento deu um
grito de triunfo. Olhou para baixo e viu uma pessoa na porta da casa do
carequinha.
“Quem é aquele?”, perguntou.
“Meu profeta”, respondeu o Anjo do velho Testamento.
“Seu profeta?” O Anjo do Novo Testamento apertou os olhos
para enxergar melhor e viu quando a pessoa na calçada começou a tocar a
campainha, até o carequinha sair da cama, visivelmente bêbado de sono. “Aquilo
não é um profeta. É uma daquelas pessoas que bate de porta em porta levando
revistinhas de religião”.
“Quem pode negar que uma pessoa dessas não é a mesma coisa
que um profeta? Eles levam a palavra do Senhor e não são muito normais. É a
mesma coisa.” Os olhos do Anjo do Velho Testamento brilhavam ao ver o
carequinha indo atender a porta tropeçando em cadeiras e resmungando que não
encontrava a chave.
“Você sabe”, replicou o Anjo do Novo Testamento, “que o uso
dessas pessoas que vão de porta em porta não é autorizado”.
“Não importa”, respondeu o Anjo do Velho Testamento. “Ele ia
tocar a campainha do preguiçoso de qualquer forma. Eu apenas acelerei o
processo.”
Os dois ficaram em silêncio, observando o carequinha abrir a
porta e escutar o que a pessoa dizia. Precisou de quase dois minutos para dizer
que não, não estava interessado em revista nenhuma e queria apenas ser deixado
em paz. Assim, o profeta foi embora e o carequinha sentou-se no sofá, tentando
terminar de despertar.
“Pronto”, disse o Anjo do Velho Testamento, esfregando as
mãos. “Assunto resolvido”.
“Bem”, respondeu o Anjo do Novo Testamento, entregando o
tablet para o colega. “Talvez você devesse dar uma olhada nisso. Aqui diz que
ele estava dormindo até essa hora porque ficou trabalhando até seis da manhã
com os textos que precisava fazer”.
“E daí?”
“Daí que tecnicamente ele não é vagabundo. Pelo contrário.”
“Tecnicamente?” O Anjo do Velho Testamento não conseguiu
disfarçar seu desprezo ao repetir a palavra. “No meu tempo, tínhamos apenas o
bem e o mal. Não teve nenhum tecnicamente em Sodoma e Gomorra. Não teve nenhum
tecnicamente na Torre de Babel. Por isso as coisas funcionavam”.
“As coisas não são simples assim”.
“Mas deviam ser. Por isso que o mundo está essa bagunça. Por
causa de anjos como você e termos como tecnicamente”.
O Anjo do Novo Testamento suspirou. Era impossível
argumentar com certas pessoas. Quilômetros abaixo, o carequinha também
suspirou. Gostaria de ter dormido mais uma horinha.
7 comentários:
Profeta bom era o Vós Tradeis. Caiu em desuso.
Que anjo malvado, credo. Meh.
Hahahahahahahahahaha acabei de me sentir exatamente igual! Fiquei até umas 5:30 escrevendo e só fui dormir mesmo quase 7h da manhã. Mas dormi como um bebê até meio dia, sem peso na consciência ou profetas de interfone (isso aconteceu na terça).
Muito bom!
Hahahahahahahahahaha acabei de me sentir exatamente igual! Fiquei até umas 5:30 escrevendo e só fui dormir mesmo quase 7h da manhã. Mas dormi como um bebê até meio dia, sem peso na consciência ou profetas de interfone (isso aconteceu na terça).
Muito bom!
Sensacional...
Que texto incrível, Rob, teus contos sempre me inspiram (embora eu fique pensando que nunca chegarei a esse nível haha).
Acho que esse anjo do velho testamento trabalha em franquias. Aqui em Goiania tem um que me liga todo dia as 6 da manha.
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