Ontem fomos até a exposição do Picasso, no Tomie Ohtake. Tudo
para ser bacana. Caso você não saiba, trata-se da coleção pessoal dele,
catalogada pelos herdeiros e tal. E realmente a exposição é maravilhosa – se você
é de São Paulo ou passar por aqui, vá.
Mas nem tudo é perfeito, e eu devia ter desconfiado isso
quando estávamos entrando na exposição e encontramos um casal com cara de Vila
Madalena. Você conhece o tipo: são aquelas pessoas que encontram um pote de Toddy
jogado na rua e acham que aquilo com certeza é uma intervenção urbana que
critica a falta de amor materno fazendo uma releitura do papel do achocolatado na
sociedade moderna e que obra transgressora e existe amor em São Paulo e tal.
Eles estavam empurrando um carrinho de bebê.
Dentro do carrinho, uma criança de mais ou menos um ano.
Meu cérebro já disparou o alerta vermelho. E com razão, pois
quando entramos, vi que, de cada dez pessoas que estavam ali, pelo menos duas
eram crianças.
Antes de continuarmos: eu sou completamente a favor de você
levar crianças em exposições de arte. Mas acho que tudo na vida é uma questão
de contexto. Você levar uma criança de sete ou oito anos e mostrar os quadros para
tentar despertar o interesse dela por arte é algo completamente diferente que levar
uma criança de dois anos de idade, que mal sabe o que está fazendo ali, e fazer
de tudo para que ela simplesmente olhe para as pinturas.
Quando entramos, tinha uma mulher do primeiro tipo. Estava
com dois filhos – um casal – que deviam ter algo entre seis e oito anos. E ela estava
pacientemente explicando, na frente de um quadro, o que era o quadro e como
elas podiam entender a pintura. Claro, explicava como se explica para uma
criança, de uma forma simplificada que ela pudesse entender (mesmo porque ela
tinha idade para isso). Acho que esse é o primeiro passo.
Agora, na metade da exposição, os meus-filhos-são-gênios-e-precisam-gostar-de-arte
começaram a aparecer. São aqueles pais que querem forçar a criança adorar arte
porque eles adoram arte, todos seus amigos adoram arte e, imagine só, o Lucas
não tinha nem dois anos e A-DO-ROU a fase azul do tio Picasso, não é, Lucas? (Claro
que essa pessoa não conta que o Lucas passou a exposição inteira comendo meleca
de nariz e gritando que queria salgadinho).
São aquelas pessoas que colocam Ladrões de Bicicleta para
passar na TV e ficam fazendo de tudo para que o moleque olhe para a tela por
quatro segundos. É tudo o que eles precisam para dizer que “desde pequeno, ele
sempre se atraiu pelo neorrealismo italiano”. Ou que levam a criança numa
biblioteca e dizem que “Os Miseráveis foi o único que ele não rabiscou com giz
de cera, porque ele sempre admirou os clássicos”.
Sério, que cansaço disso. Na exposição não tinha uma pessoa
assim, tinha duas.
A primeira era um sujeito com mais ou menos a minha idade.
Ele estava agachado ao lado do filho, que devia ter menos de dois anos, e apontando
alguma coisa na parede atrás de mim. E eu pude ouvir o que ele falava:
– Olha a vaquinha! Olha, Pedro! Um cavalinho! Você gosta do
cavalinho? Olha para o cavalinho, Pedro! Você acha o cavalinho bonitinho? Olha ali!
O cavalinho! Quer que o papai te dê um cavalinho?
Eu virei para ele pensando em dizer que “olha, o último pai
que deu um cavalinho para uma criança pequena foi o Rhett Butler, e isso não
acabou muito bem”, mas perdi as palavras quando vi sobre o que o pai estava
falando. Na parede estavam sendo projetados vários elementos de Guernica.
Sabe, estamos falando de Guernica. Não é exatamente um pôster
de um filme da Disney, onde os cavalinhos e vaquinhas são apenas cavalinhos e vaquinhas.
O quadro tem um contexto, um visual e, principalmente, uma agressividade que
não parece ser pensado para uma criança de dois anos de idade. Aliás, se a
criança não entender o quadro é ainda melhor.
E, para piorar, ele estava mostrando o quadro para o filho com
o celular apontado para a criança, filmando o que o filho fazia. Ou seja, sua
principal preocupação não parecia ser exatamente fazer o filho gostar de arte.
Minha vontade foi me meter na conversa. Teria sido mais ou
menos assim:
– Seu filho está gostando?
– Muito! Ele adora arte do século 20, não é Pedro? Fala para
o tio como você gosta de arte!
– Vaquinha.
– Gostou da vaquinha que seu pai mostrou, Pedro?
– Vaquinha.
– E o cavalinho? Você viu o cavalinho?
– Vaquinha.
– Você viu que o cavalinho tem uma lancinha enfiada nas
costas? Olha a carinha de dor dele!
– Vaquinha.
– Olha só, Pedro! Um predinho pegando fogo! Olha aqui desse
lado, uma mulher com um bebezinho morto nas mãos! Você gosta do bebezinho
morto?
– Vaquinha.
– Olha que fofo! Pedro! Você viu que aqui no chão tem um
soldadinho morto?
Claro que daria briga e eu provavelmente seria expulso da
exposição. Aliás, eu até consigo ver a cena: o Pedro chorando, o pai dele
horrorizado e eu sendo carregado para fora da exposição por dois seguranças, e
gritando que “Pedro, eu estou esperando aqui fora, quando você sair, eu te
conto a historinha da Guerra Civil Espanhola e de como os nazistas mataram o
cavalinho usando aviõezinhos num bombardeio!”.
Eu realmente acho que existe uma enorme diferença entre “adaptar
a explicação do quadro para a criança”, como a mulher que vi logo na entrada fazia
com seus dois filhos, e “boçalizar a arte para ver se seu filho se interessa
por algo apenas porque isso é mais importante para você que para ele”.
Sinceramente, eu acho que se você precisa simplificar uma
coisa a esse nível para que seu filho simplesmente olhe para o quadro por dois
segundos (e você tenha assunto para fazer seus amigos intelectualóides morrerem
de inveja) é sinal que seu filho não está exatamente pronto para aquilo.
Olhe, se você for o pai do Pedro e estiver lendo isso aqui,
vou te dar um conselho: pegue seu carro, vá até a Marabraz e compre uma mesa. Porque
pelo que eu me lembro das propagandas, sempre que você compra algo na Marabraz você
ganha um quadro, que SEMPRE mostra dois cavalos fugindo de uma floresta pegando
fogo. Pronto, agora você tem um quadro com cavalinhos – que não parecem animais
saídos de um pesadelo bélico como no Guernica – e você pode passar o dia
mostrando isso para o Pedro, até ele ter idade para conhecer o do Picasso.
Continuei andando pela exposição e estava quase me esquecendo
disso quando ouvi um berro:
– JOANA! JOANA!
Olhei ao redor e constatei que a Joana era uma garotinha de
dois anos e pouco, que estava brincando com um celular que ela levava em uma
das mãos. Sua mãe da Joana estava histérica olhando um quadro que ainda não
havíamos passado – faltavam umas três pinturas para chegar até ele.
– JOANA! LARGA ESSE CELULAR E VEM AQUI VER ESSE QUADRO!
Nesse momento, todos os olhos se voltaram para a mãe da
Joana – porque provavelmente até as pessoas na rua ouviram os gritos. Provavelmente,
todos os quadros do Picasso que estavam na exposição se transformaram
imediatamente em quadro da fase “roxa de vergonha”. A Joana, porém, parecia mais
entretida com o celular. Eu, no lugar dela, pensaria do mesmo jeito.
– JOANA! VEM VER ESSE QUADRO! É UM GATINHO!
Pensei em gritar um “spoiler alert!” como protesto, mas (quase)
sempre acho melhor evitar contato com esse tipo de gente. Vi a Joana se
aproximando do quadro e sua mãe explicando que “olha esse gatinho que bonitinho!
Será que ele quer brincar? Ele não parece o gatinho da tia Marli?”. A Joana
resmungou qualquer coisa e saiu andando pela exposição, procurando um canto
onde pudesse ficar brincando com o celular em paz.
Eu continuei caminhando pela exposição, curioso par ver o tal
do gatinho que se parece com o gatinho da tia Marli. Pela descrição fofa,
imaginei que se a gente passasse a mão no quadro ele começaria a ronronar e
brincar com novelos de lã. Mas, na verdade, era esse quadro aqui.
Senti muita pena do gato da tal da Marli. Mas fiquei
pensando como alguém pode achar fofo um gato que parece um coadjuvante de Vidas
Secas, brutalizado pela fome e prestes a estraçalhar um passarinho? Se eu entrasse
na casa da Marli, provavelmente nem mexeria nesse gato com medo que ele pulasse
no meu rosto e tentasse devorar meus olhos.
No final da exposição, quando estávamos saindo, vi a Joana e
sua mãe indo embora. Sua mãe estava no telefone e a Joana andava apressada
atrás dela. Provavelmente, ela nem lembrava mais do gatinho, porque a Joana é
uma criança de dois anos e pouco e está mais interessada em ser uma criança de
dois anos e pouco e olhar para coisas que crianças de dois anos e pouco gostam
de olhar.
Mas sua mãe teria uma história para contar para os amigos,
porque a Joana olhou para o quadro durante um segundo e meio antes de ir
procurar outra coisa para fazer, então ela deve adorar arte. Para algumas
pessoas, aparentemente, isso é mais o importante.
Um comentário:
Procurei algo sobre o Rhett Butler e um cavalo, mas não achei. É alguma cena do "Vento Levou" que eu não me lembro?
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