Ontem, quase tudo parou.
A começar pela cidade – aquela, que dizem que não pode parar
– que enfrentou um congestionamento histórico. A tempestade também parou e resolveu
dar uma trégua quando os Rolling Stones apareceram no palco.
E os olhos de milhares de pessoas também pararam.
Bastava olhar ao redor para perceber isso. Muitos dançavam,
outros gritavam, alguns cantavam juntos. Mas os olhos de todos estavam parados,
apontados na direção da única pessoa que se recusava a parar. Assim que colocou
os pés no palco, Mick Jagger afirmou que “se você me ligar, eu nunca vou parar”.
Era mais que um trecho de música. Era um aviso. E uma promessa.
Enquanto a cidade estava parada, o Morumbi era um mundo à
parte, onde tudo não apenas se movia, mas se movia junto com Jagger.
Qualquer pessoa sabe que o vocalista não para quieto um
minuto durante o show. Ele canta, dança, corre, toca gaita, às vezes tudo quase
ao mesmo tempo. Mas ontem eu descobri que é preciso assistir a banda ao vivo
para entender isso. Mick Jagger tem a plateia na mão desde o início do show,
mas a TV ou a tela de um computador são pequenas demais para mostrar a
intensidade desse domínio.
É um daqueles casos raros em que tudo parece girar ao redor
do vocalista – muitas bandas são assim – mas que todos os outros músicos têm
vida própria – poucas bandas são assim. Basta alguns minutos olhando o palco para
entender que Keith Richards está dando seu próprio show. Ron Wood, o único
Stone que não ajudou a fundar a banda, também. E o mesmo pode ser dito de
Charlie Watts, atrás de sua bateria.
Todos funcionam isoladamente, mas juntos, formam os Rolling
Stones, um daqueles casos em que o todo é muito maior que a soma das partes.
E é justamente por causa desse “o todo é maior que a soma
das partes” que eu consegui compreender o show completamente somente hoje pela
manhã. Afinal, cada uma das partes que formam esse show já é enorme. A abertura
de Sympathy for the Devil, que levou milhares de pessoas de volta para os
excessos e a teatralidade do fim dos anos 60. O arranjo fenomenal de Miss You,
que transformou uma música simples de 78 numa peça complexa e moderna. E a
agressividade de Paint It Black, que possui mais fúria que poderia se esperar
de uma música que está completando cinquenta anos.
E, claro, Gimme Shelter, um daqueles casos em que o rock exigiu
ser chamado de arte e que, ao vivo, se torna quase uma força da natureza. Ela é
maior que a versão de estúdio, mas, mesmo se tivesse metade da duração, ela
ainda seria gigante, combinando sensualidade e a sensação de que o mundo irá
acabar a qualquer momento. Ao assistir (I Can’t Get No) Satisfaction ao vivo,
você lembra que está diante de uma das maiores bandas da história do rock; mas,
Gimme Shelter vai além e mostra que você está diante de alguns dos maiores
músicos do século 20.
Mas essas partes, mesmo grandiosas, eu compreendi com
facilidade. Afinal, são músicas que ouço há pelo menos vinte anos. Mas somente
hoje pela manhã, enxergando o show com mais calma, entendi que foi um daqueles raros
casos do “show certo na hora certa”, pois cada vez mais eu tenho a certeza que
não teria apreciado tanto o que vi ontem no Morumbi se isso tivesse acontecido,
por exemplo, dez anos atrás.
Afinal, eu nunca vasculhei o catálogo da banda com afinco.
Como qualquer pessoa que gosta de rock, conheço as essenciais – o que no caso
dos Stones são pelo menos vinte – e tenho as minhas preferidas entre aquelas
que não precisam estar em todos os shows. Mother’s Little Helper. She’s a
Rainbow. Ruby Tuesday. Dandelion. Assim, dez anos atrás talvez eu prestasse
muito mais atenção nas grandes canções. Ainda assistiria ao show inteiro, com a
mesma paixão, mas sempre esperando pelo terreno confortável das músicas obrigatórias,
tentando decorar cada momento delas desde o primeiro acorde.
Ontem foi diferente. Prestei atenção em cada acorde, cada
solo. Out of Control já entrou na minha lista de músicas preferidas dos Stones.
You Got the Silver, ao vivo, me passou a impressão de ser um dos maiores – e mais
doloridos – blues feitos dos anos 60 para cá. E finalmente entendi porque Keith
Richards diz que Mick Jagger é um dos maiores gaitistas da história do blues.
Ele não toca gaita como um “vocalista que toca gaita”, mas sim como alguém que
parece não ter feito outra coisa na vida.
Aliás, ter escutado blues durante os últimos dez anos parece
ter me preparado melhor para entender esse show, identificando passagens e arranjos
que não estão nas versões originais e mostram que a paixão dos ingleses pelo
blues parece ter crescido ainda mais nos últimos anos. Mas é um show dos
Stones. E mesmo com o blues chovendo sobre o estádio desde horas antes que a
banda surgisse no palco, com as músicas que tocavam no sistema de som do estádio,
o que estamos vendo é um show de rock.
E aí fica claro o único engano que Mick Jagger cometeu durante
a apresentação, ao tentar nos convencer mais uma vez que “é apenas rock ‘n roll”.
Por mais que ele entoe essa frase desde
1974, Jagger e sua banda fazem questão de desmentir essa ideia durante cada
segundo do show. A cada acorde de guitarra, a cada refrão cantado por um estádio
inteiro, fica claro que “não é apenas rock ‘n roll”. É algo muito maior. É uma
vida inteira.
Eu ouço rock há quase trinta anos. Vou de heavy metal para hard
rock, do hard rock para o rock clássico, volto para o heavy metal. Mudo a
forma, mas jamais o conteúdo. Expandi meu gosto musical, claro. Ouço blues,
jazz, música clássica... Mas nunca deixei o rock para trás. Porque não é “apenas
rock ‘n roll”.
É o que eu sou.
Sempre que eu coloco um dos meus discos preferidos para
tocar, lembro que sempre fui assim. Sempre que apanho um dos meus discos
preferidos, percebo que sempre serei assim. É o meu refúgio. Basta eu colocar
um dos meus discos preferidos para tocar que eu venço o tempo. Deixo de viver
numa época em que meus heróis estão morrendo com uma frequência cada vez mais
assustadora e volto aos meus catorze anos.
“If I don’t get some shelter
Oh yeah, I’m gonna fade away.”
Oh yeah, I’m gonna fade away.”
E de repente, o mundo parou para que uns garotos de setenta
e poucos anos viessem me lembrar disso mais uma vez. Quatro garotos que
chegaram logo depois da chuva e fizeram o mundo parar para explicarem minha
vida inteira, em cada acorde, cada verso, cada solo. E, quando um dos garotos disse
que “é apenas rock ‘n roll”, eu entendi mais uma vez que, na verdade, ele
estava falando que “é apenas quem você é”.
Sorri, enxergando mais uma vez toda minha história e tudo em
que acredito. E isso é algo que todos nós precisamos de vez em quando. E, como esses mesmo garotos já haviam me
ensinado antes, você nem sempre consegue aquilo que quer. Mas às vezes você
consegue aquilo que precisa.
Mick, Keith, Ron e Charlie,
Obrigado por ontem. Obrigado por tudo.
2 comentários:
Gimme Shelter, pra mim, está entre as 5 melhores músicas de Rock (meu estilo preferido, então...) de todos os tempos. É absurda. PQP. Invejo sua ida ao show, sua escrita, seu talento - faz tempo que não passo aqui. Essa cidade que não para nos engole.
Puta que pariu!!! Que show de texto!e deve ter sido um puta show! Afinal, eram os Stones! Abs
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