Assim que eu entrei no mercado vi que a coisa não iria
acabar bem.
Na verdade, o mercadinho aqui ao lado de casa normalmente
está tranquilo. Na maior parte das vezes eu entro, compro o que preciso e volto
para casa sem grandes transtornos – e olhe que em alguns dias eu chego a ir
duas vezes nele. Mas ele tem dois horários de pico: sábado e domingo pouco
antes da hora do almoço.
São filas descomunais que me fazem pensar se os caixas estão
vendendo ingressos para algum show ou se o mercado resolveu dar comida de
graça. Pessoas e mais pessoas com carrinhos lotados ou cestas transbordando de
mercadorias, todas elas se amontoando e esperando para serem atendidas.
Como eu disse, assim que entrei no mercado vi que a coisa
não iria acabar bem. Porque eu nunca vi o mercado tão cheio como hoje. Mas respirei
fundo, peguei as três ou quatro coisas que eu precisava e entrei na fila que
parecia ser a menor – já certo de que eu estava me iludindo, já que não existia
fila menor.
E aí começou o rolo. A mulher que estava passando suas
compras no caixa decidiu levar justamente uma garrafa de algo que não tinha
preço, e a menina do caixa teve que ir atrás do preço e o caixa ficou parado
enquanto isso acontecia e as pessoas começaram com aquelas brasileirices de
trocar de fila e os velhos começaram a reclamar e uma criança começou a chorar
e um nevoeiro cercou o mercado trazendo criaturas de outra dimensão e os mais
religiosos começaram a gritar trechos da bíblia dizendo que era o apocalipse.
E eu no meio disso tudo, querendo pagar dois pimentões.
Foi quando começou a tocar Elba Ramalho.
Esse mercado, na verdade, tem uma obsessão por música
brasileira. É como se o programador da rádio fosse o Policarpo Quaresma, então tudo
o que toca é brasileiro – e tem dias que toca apenas Legião Urbana. Ou melhor,
tem dias que toca só Pais e Filhos. Pais e Filhos acústico. Pais e Filhos
single edit. Pais e Filhos ao vivo. Pais e Filhos em tupi-guarani. Pais e
Filhos de trás para a frente com mensagens satânicas.
Hoje foi Elba Ramalho. E eu fechei os olhos e tentei fugir daquele
inferno do mercado, me concentrando na letra. E assim eu me concentrei na voz da
Elba – que nessa época ainda não saía por aí falando que havia sido abduzida por
alienígenas que implantaram um chip nela, história que só seria melhor se ela
tivesse mudado seu nome oficialmente para Elba Chips – dizendo que tu és a
estrela mais linda, seus olhos me prendem fascinam, a paz que...
Um apito.
Abri os olhos assustado. Por favor, não.
Outro apito.
Sim, era a Mulher do Apito.
A Mulher do Apito é uma das criaturas mais estranhas que eu
já vi – e olhe que morei anos e anos em Pinheiros, que é onde Deus guarda seus
projetos que não deram certo. Trata-se de uma mulher baixinha e com uns setenta
anos, que anda pelo bairro assoprando uma porra de um apito. E veja bem, não estou falando de uma apitada a
cada cinco minutos, como se ela fosse uma espécie de guarda-noturno wannabe. Não.
É um passo, uma apitada. Outro passo. Duas apitadas. Novo passo, nova apitada.
“Ah, Rob, é porque ela ainda está no clima do carnaval, que
fofa.”
“Não, ela não é fofa, ela é demente e faz isso o dia inteiro
durante o ano todo.”
Às vezes eu me pergunto como será a vida de uma pessoa assim
e consigo ver ela parada na porta de casa, antes de ir até a padaria, pensando
que “bom, já peguei minha lista de compras, minha carteira, meu apito e a chave”.
Dá uma apitada e sai feliz pela rua.
E o apito dela é alto. Alto e estridente. O apito dela é
tipo a Tetê Espíndola dos apitos.
E foi com esse apito – e com um fôlego inacreditável – que ela
parou na frente do mercado e começou seu Concerto para Velha Louca e Apito.
E eu preso ali dentro, no meio da confusão. A Elba cantando e
a mulher apitando e as pessoas trocando de fila e a mulher apitando. A mulher
apitou e eu levei uma cotovelada nas costas, a mulher apitou e alguém bateu na
minha perna com o carrinho. A mulher apitou. A mulher apitou. E eu apenas olhei
para o alto e perguntei “o que eu fiz desta vez para merecer tamanho castigo?”
na esperança de que Deus ou qualquer força superior – porque num momento como
esse eu normalmente estou disposto a acreditar em qualquer coisa – me respondesse.
Como resposta, uma nova apitada.
Olhei para trás, pensando em perguntar para a mulher atrás
de mim se ela podia segurar o meu lugar só por um minuto enquanto eu ia até a
rua chutar a boca daquela infeliz com seu apito, mas as pessoas na rua foram
mais rápidas que eu. Antes que eu abrisse a boca, comecei a ouvir gritos na
rua. Aparentemente, alguém havia mandado a mulher parar com aquilo (ou sugerido
que ela inserisse o apito em algum orifício do próprio corpo) e começou a
briga.
Alguém gritava, ela gritava de volta. O sujeito respondia e
ela apitava. A pessoa se irritava e ela apitava ainda mais alto. O cara xingava
e ela xingava apitando. E a Elba continuava cantando, porque aparentemente o
Policarpo tinha colocado a música no repeat e saiu para almoçar.
A cada apitada, eu me aproximava perigosamente de um colapso
nervoso. A esta altura, eu já estava esfregando a mão bruscamente no rosto, o
primeiro indício de que estou precisando ir para casa, colocar um maiô e
mergulhar em uma piscina de Rivotril.
Vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Parece que falta um pedaço de mim
Foi quando a fila começou a andar. A mulher ainda apitava lá
fora, as pessoas continuavam trocando de fila e a mulher ainda apitava lá fora
e tudo o que eu consegui fazer foi abraçar meus pimentões desconsolado e ficar
quieto num canto e a mulher ainda apitava lá fora.
Sete minutos – e 3.082 apitadas – depois foi minha vez de
ser atendido. Cheguei ao caixa tremendo, com lágrimas nos olhos. Qualquer
movimento brusco eu jogaria os pimentões na cara da mulher e me deitaria em
posição fetal no mercado, chorando.
– Qué CPF na nota?
– Oi?
– CPF.
– Por favor, eu quero apenas ir embora.
– O CPF você num qué?
– Não. Eu quero só um sorriso sincero e um abraço, pra
aliviar meu cansaço.
– O CPF não?
– Por favor, quando eu devo?
Paguei e saí do mercado. Olhei ao redor e vi a Mulher do
Apito indo embora pela Lins de Vasconcelos, com seu apito. Apertei os olhos. E,
com ela na mira, fechei os olhos. Agora eu era um arqueiro na Guerra dos Cem
Anos, um sniper na batalha de Stalingrado, o Capitão Kirk gritando “FIRE!”. Minha intenção não era fazer ela parar com apito. Naquele momento, eu queria erradicá-la do planeta.
Abri os olhos e ela estava ali. Continuou andando e apitou mais uma
vez.
Desta vez o apito foi para mim. Tenho certeza. Foi um desafio.
E tudo o que eu fiz foi começar a tremer.
E tudo o que eu fiz foi começar a tremer.
E foi ainda tremendo que eu entrei em casa, joguei os pimentões na
mesa e me sentei num cantinho. Acendi um cigarro e fechei os olhos, um pouco, esperando
tudo aquilo passar. E prometi para mim mesmo que nunca mais vou ao mercado aos
sábados e domingos. Não. Melhor. Nunca mais colocarei os pés na rua.
11 comentários:
Rapaz,olha que essa história se passa sempre comigo,com outros personagens mas eu entendo perfeitamente sua dor...
Já pensou que loucura se a velha do apito fosse sua mosca do Breaking Bad?
Um abraço e obrigado pelo texto descontraído de domíngo!
Vontade de fazer a mulher apitar com os pimentões na boca.
"O apito dela é tipo a Tetê Espíndola dos apitos." Hahaha! Gênio!
Eu seria a mulher xingando a doida do apito... Certeza!
Precisamos de mais pessoas como você!
Eu sempre fico na mesma posição que o Mr Rob e reclamo comigo, esperando heróis aparecerem.
Pimentão tá caro de mais... Hahaha
... Me alegro na hora de regressar
Parece que vou mergulhar na felicidade sem fim...
Sintam a raiva que emana do texto! Hahaha
Demais, me vejo em tais situações principalmente no metrô, onde não tem pra onde fugir, e a cada estação em cada ponto da cidade entra alguma criatura bizarra no vagão que te faz pensar se você não entrou no planeta errado por engano.
E o CPF na nota é trauma de infância.
Obrigado por compartilhar hahaha
Cara não da para julgar uma senhora que passou por algo tão forte assim. O Titanic foi barra para todo mundo.
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