Faz alguns anos que eu comecei a
usar chinelos. Na verdade, por “alguns” entenda-se “poucos”. Coisa de uns
quatro anos. Talvez cinco. O importante não é o número exato, e sim o fato de que
hoje eu uso chinelo o dia inteiro.
Antes disso, minha vida era
diferente. Eu usava apenas tênis. Sempre detestei usar sapatos – uma das coisas
que eu me mais me orgulho na vida é trabalhar usando o que eu chamo de roupa de
criança, que é jeans, camiseta e tênis – então eu passava o dia inteiro de
tênis. Sim, mesmo dentro de casa eu usava tênis. Ou estava com tênis, ou
descalço, esperando o momento de colocar o tênis.
Hoje não. Hoje eu acordo e calço
os chinelos. E, se não tenho algum compromisso, é bem provável que eu fique de
chinelos até a hora de deitar. A não ser, claro, quando o frio me obriga a
colocar um par de meias e um tênis. Fora isso, chinelos. O dia todo.
Na verdade, eu reluto em colocar
o tênis, mas às vezes... Vou explicar aqui: eu odeio andar de chinelos na rua.
E isso não é culpa do chinelo, e sim das calçadas arrebentadas de São Paulo.
Mas, se eu preciso ir até algum lugar mais próximo, como a padaria ou o
mercado, que ficam na quadra ao lado, vou de chinelos. Para ir até a banca, que
fica a uns três quarteirões de casa, tênis. Porque eu uso chinelos o dia
inteiro, mas como faço isso há alguns anos, sei que não sou profissional na
nobre arte de usar chinelos.
Mas eu gosto cada vez mais de
usar chinelos. Porque o chinelo se tornou um símbolo do que eu sou hoje – e isso
vai muito além das duas linhas brancas, do formato das tiras do chinelo, que
mostram onde meus pés não tomam Sol.
Não, é o contrário. O chinelo não
é um símbolo do que sou. É o tênis que é um símbolo do que eu não quero mais ser.
Passei a vida de tênis. Em outras palavras, passei a vida pronto para sair de
casa. Aguardando o início da próxima batalha, da nova coisa a ser conquistada.
Sempre pronto, sempre alerta. Bastava colocar a carteira no bolso e sair de
casa, para ganhar o mundo. Para provar algo para mim e muitas vezes – hoje eu
sei disso – para os outros.
Vivi anos com a certeza de que estar
pronto para sair de casa a qualquer horário do dia era meio caminho para a
vitória.
Hoje?
Hoje eu fico de chinelos. O dia
inteiro.
Isso não quer dizer que eu não me
enfio em batalhas ou vou atrás de conquistas, mas sim que prefiro que as coisas
aconteçam no meu tempo. Vinte anos atrás, eu achava que isso era algo
impossível, mas hoje eu sei que não. Hoje eu sei que eu escolho quando cada
batalha começa. E, quando isso acontece, eu vou até o quarto, coloco o tênis e
vou para a rua. Porque hoje eu descobri que esperar pela batalha antes dela
começar não é sinal de vitória. A vitória vem quando você está em paz com você
mesmo assim que a batalha começa.
E eu fico em paz comigo mesmo o
dia inteiro. De chinelos.
Talvez seja sinal de maturidade.
Afinal, com quarenta anos nas costas, é muito difícil não ter aprendido uma
coisa ou outra aqui. Talvez seja algo que descobri quando enfrentei uma depressão
alguns anos atrás, justamente por passar anos enfrentando batalhas que não eram
minhas. Ou, pior, que não eram importantes.
Sim, acho que é isso. Acho que
usar chinelos é apenas um símbolo de que agora eu escolho quais batalhas entrar
e sei que, na maior parte do tempo, elas não começam até que eu vá até o quarto
e coloque meus tênis. Porque a questão talvez seja ter consciência disso, mas
também de quais batalhas valem a pena.
Dia desses estava conversando com
meu enteado. Ele tem vinte anos e como qualquer pessoa de vinte anos é
briguento. Quer ter razão em tudo, quer ter a última palavra em tudo e todas
aquelas coisas que, com vinte anos, parecem importantes.
“Eu era exatamente como você
quando tinha sua idade”, eu disse a ele. “Toda briga precisava ser vencida. Até
mesmo aquelas que não eram importantes. Se eu tinha razão, precisava convencer
as pessoas disso. Se eu não tinha, precisava dar um jeito de mostrar que mesmo
assim eu ainda estava certo. Eu não podia perder a briga. Mas aí o tempo passou
e eu fiz trinta anos”.
“E aí?”, ele perguntou com aquele
ar típico de quem tem vinte anos, com a certeza de que ter trinta anos é algo
que vai acontecer apenas com os outros, e não com ele.
“Aí eu me tornei um pouco mais
seletivo. Só entrava em brigas com duas condições. Primeiro, a briga precisava
ser importante. Segundo, eu precisava estar certo de que a razão era minha.
Quando isso acontecia, eu me metia na briga e colocava na cabeça que a vitória
era a coisa mais importante da minha vida. Mas aí o tempo passou de novo e...
Bem, agora estou com quarenta anos.”
“E como você é agora?”
“Agora eu quero apenas ir para
casa e ver Jornada nas Estrelas com minha Esposa.”
“Mas e se a briga for importante?”
“Eu não fujo dela. Mas eu
continuo querendo ir para casa assistir Jornada nas Estrelas com a minha Esposa.”
“Mesmo quando você tem razão?”
“Especialmente quando eu tenho
razão. Porque quando eu não tenho razão, eu não entro na briga. E se a briga
não é minha, a razão também nunca será minha.”
Ele ficou em silêncio e eu
concluí, mais para mim que para ele.
“Quando eu não tenho razão, eu
fico de chinelos.”
É assim que eu funciono hoje.
Isso não quer dizer que minha vida é perfeita, sem problemas ou batalhas, e que
eu vou ser alvo de matérias com títulos como “Veja como esse sujeito começou a
usar chinelos e mudou sua vida” ou “O Rob Gordon descobriu que a felicidade
mora nos pés”. Nada disso. Eu ainda tenho problemas e preocupações. Grana.
Contas que às vezes não fecham. O texto que não sai. Defeitos que ainda preciso
aprender a lidar e inseguranças que gostaria de aprender a controlar. Às vezes,
ainda coloco a cabeça no travesseiro e penso “será que estou fazendo o certo?”.
Como a maioria das pessoas, ainda tenho tudo isso.
A diferença é que eu não preciso
mais mostrar para as batalhas que estou sempre pronto para elas. Tudo o que
elas querem é que eu as vença. Seja uma discussão, um trabalho, uma conta para
pagar. Mas a batalha precisa ser minha.
E a batalha precisa valer a pena.
Ainda preciso aprender a dizer
não para algumas delas, mas quando eu penso que alguns anos atrás eu não dizia
não para nenhuma, acho que fiz um progresso. E sempre que eu olho para os meus
pés e vejo que estou de chinelos, me lembro disso. E me lembro do quanto isso é
importante.
Talvez um dia meu enteado aprenda
isso. Mas essa batalha é dele e não minha. As minhas eu estou enfrentando.
Ganho algumas e perco outras, como qualquer pessoa. A diferença é que, mesmo na
derrota, eu aprendi que nada me impede de voltar para casa e colocar meus chinelos.
Ficar de tênis, andando de um lado para o outro esperando por uma revanche não
diminuiu a derrota nem aumenta minhas chances de vitória na batalha seguinte.
Sim, talvez essa seja a
diferença.
Eu não perco mais a cabeça nas
derrotas. Perder uma batalha aqui ou outra ali não é o fim do mundo – e essa
talvez seja a coisa mais adulta que eu aprendi, ou estou aprendendo na vida.
E talvez eu tenha aprendido que,
ao menos para mim, o “não perder a cabeça” começa, justamente, pelos pés.
Ao
menos, no meu caso.
10 comentários:
Perfeito! Talvez eu esteja precisando usar mais chinelos! Mesmo tendo razão, compro algumas brigas em que deveria recuar, pois a maioria alienada não acha que tenho razão! Acho que vou pra casa ver um filme ou seriado! Hehehe! Abs
Bom....nem chinelos eu tenho....sintomático ne?
Incrível como alguns dos seus textos Rob encaixam perfeitamente em alguns pensamentos tortos que tenho...e acabam endireitando eles.
Ontem não tinha luz em casa...e após uma reflexão...percebi que - agora fazendo um paralelo ao usar chinelos - algumas coisas (pessoas e situações) não dependem e nem precisam de mim. Por si só, acabam resolvidas.
Obrigado por me ajudar a perceber isso...e que preciso começar de fato a usar mais chinelos.
Abs!
Ainda não fiz 40, mas faz um tempo que escolho minhas batalhas. Algumas delas não valem nem o desgaste de colocar um chinelo, quanto mais um tênis.
(Acho lindo como você chama a Ana, de Esposa, com E maiúsculo. <3)
Abraço, Rob.
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