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11 de agosto de 2015

Comanda para Matar

Faz um tempo que a padaria aqui ao lado de casa entrou na Era Moderna.

Até alguns meses atrás, a padaria era horrível. E isso por vários motivos. Primeiro, as fornadas de pães eram absurdamente irregulares, misturando pães que pareciam vítimas de incêndio com cadáveres de albinos. Segundo, a filosofia de trabalho “elemento surpresa”. Era assim: você pedia um pão de calabresa e, ao voltar para casa, descobria que havia comprado uma rosca de coco.

Isso, claro, sem falar na genialidade do dono, que parece acreditar que a melhor forma de mostrar que seus produtos são bons é não ter o produto. Depois das nove da noite já não tinha mais pão. Cigarro? Meses sem ter (e o dono sempre me explicava que “o caminhão atrasou”, o que me fazia pensar que o carregamento estava vindo da Coreia do Norte). Refrigerante? Às vezes tem, às vezes não.

Mas, de uns meses para cá, tudo mudou. Eles colocaram umas catracas com comandas eletrônicas, para dar um ar de modernidade ao negócio. E aí tudo mudou. Porque antes era uma padaria horrível.

Agora ela se transformou em uma padaria horrível com catracas eletrônicas. E que funcionam do modo mais burro do mundo. Nas demais padarias da cidade, você paga suas compras, pega a comanda, deposita na catraca e ela abre. Aqui não. Aqui você deixa a comanda com a mulher do caixa e ela precisa liberar a catraca para você, provavelmente apertando um botão ou alguma tarefa extremamente difícil, já que de cada dez vezes que vou lá, em pelo menos metade a catraca está travada quando vou sair.

Ah sim, e vale dizer que eles colocaram as catracas eletrônicas para a porta ficar fechada, e assim o ar condicionado fazer mais efeito. O problema é que três dias depois de colocarem as catracas o ar condicionado quebrou e ninguém mais arrumou. Dez minutos lá dentro e suas roupas estão coladas de suor.

Toda vez que vou lá tenho a impressão que morri e cheguei numa espécie de inferno, onde as almas dos pecadores estão ardendo na fila do caixa ou esperando o atendente ajustar a máquina de fatiar frios e sempre ao lado daquelas coisas dantescas que ficam borbulhando no balcão de selfie-service. E como você é pecador, não pode sair dali. E nem adianta tentar sair, a catraca está fechada, mesmo se você já pagou os pecados que estavam na sua comanda.

Aliás, normalmente você paga por pecados que não são seus.

Dias desses fui até ali comprar cigarro.

Peguei minha comanda e a menina do caixa me olhou. Girei a catraca e a menina do caixa me olhou. Encontrei no balcão e a menina do caixa me olhou. Dei a comanda e pedi dois maços de cigarro. A menina passou a comanda e imediatamente apareceu a lista de compras do mês de um pequeno país.

– Oitenteoito e vinte.

– Oi?

– Deu oitenteoito e vinte.

– Olha, eu só quero comprar dois maços de Marlboro e ir embora.

– Essa comanda não é sua?

– É, mas eu peguei agora, você não viu?

– Não.

– Eu acabei de entrar na padaria e você estava olhando para mim. Eu entrei, andei um metro e vim até aqui.

– Você não comeu catarina?

– Minha senhora, eu não conheço nenhuma Catarina. E mesmo se conhecesse, eu sou casado, então, eu queria...

– Aqui diz que você comeu quatro catarinas.

– Não. Não comi.

– Ah, não. Está errado.

– Sim, é o que estou tentando dizer.

– Não são quatro catarinas, são cinco.

– Olha, o erro não é esse.

– Você não comeu catarina?

– Não.

– Mas aqui na sua comanda diz que você comeu. Tem também três ressiverantos.

– Refrigerantes?

– Isso. Três ressiverantos. E um bolo.

Perfeito. Eu não apenas estou no inferno pagando meus pecados, como ainda fiquei com a comanda do Átila ou do Hitler e vou ter que pagar os pecados dos outros.

– Olha, nada disso é meu.

– VALDECI! Ô VALDECI!

Entra em cena, Valdecir, o demônio encarregado daquele pedaço do inferno. Mulato, Valdeci não é um gordo comum, mas sim aquele tipo de gordo que não consegue ficar com a bunda inteira para dentro das calças. Ele normalmente está no caixa comendo. Uma semana eu fui à padaria três dias seguidos e no mesmo horário, então peguei praticamente toda a refeição dele. No primeiro dia ele estava comendo um bife; no segundo, ele estava chupando uvas; no terceiro, estava passando fio dental. Sim, no caixa. Não voltei no quarto dia, mas tenho certeza que, pela progressão aritmética da coisa, ele estaria dormindo.

Claro que o Valdecir demorou até chegar, porque agora ele não fica mais na padaria, e sim enchendo a cara de espetinho na barraca ao lado do mercado (você leu o post anterior?). Veio arrastando os pés e limpando a gordura do rosto, e entrou no balcão atrás do caixa.

– Fala.

– Aqui a comanda tá cheia de coisa, mas nada é dele.

Com ar de especialista, Valdeci passou a comanda novamente.

– As catarinas não são suas?

– Não. Antes que você pergunte, o bolo também não. Nem os ressiverantos.

– Ah tá.

– Eu quero só dois maços de Marlboro.

Mas Valdecir não estava mais preocupado com isso, e sim com o enigma das comandas. Afinal, seu inferno não podia ser desorganizado a ponto dos próprios demônios sofrerem com isso. Somente as almas dos clientes poderiam ser penalizadas.

O suor estava começando a descer pelas minhas costas quando Valdecir falou:

– Toda vez essas comandas estão cheias.

A menina do caixa concordou. E acrescentou que cada dia está pior. Valdecir olhou ao redor, provavelmente pensando que deveria resolver aquilo de uma vez por todas para pegar mais um espetinho de linguiça.

– Sabe o que a gente deveria fazer?

Quem respondeu fui eu.

– Sei. Me dar os dois maços de Marlboro, pegar meu dinheiro e deixar eu ir embora.

Ele olhou para mim. Talvez estivesse considerando a minha sugestão. Mas pareceu ter uma ideia melhor.

– A gente devia limpar todas as comandas de meia em meia hora.

Eu e a menina protestamos imediatamente.

– Vai dar muito trabalho, Valdeci!, ela disse.

– Eu não trabalho aqui, eu falei.

Valdecir respirou fundo.

– É porque é o Malaquias sempre se esquece de desmarcar as comandas.

Novo protesto.

– Aí você fala com ele, Valdeci! Eu não vou limpar nada, ela continuou.

– Eu nem sei quem é Malaquias. Mas eu acho que é melhor falar com ele mesmo.

Nesse momento, Valdecir olhou para mim.

– Você vai querer o quê?

Se eu fosse mais novo – e mais paciente – provavelmente começaria um discurso apontando que eu queria começar a aumentar a eficiência do local. O primeiro passo seria demitir o Malaquias. O segundo seria tornar os pães em uma comida mais uniforme. Depois uma campanha de marketing que, misturada a atentados terroristas às outras padarias, resultaria num processo de expansão violento. “Precisamos de espaço vital!”, eu gritaria em algum momento.

Mas estou mais velho. E mais experiente, a ponto de saber que as chances de eu mesmo ter que demitir o Malaquias seriam enormes. Então resolvi ser sincero.

– Eu quero dois maços de Marlboro.

Valdecir virou as costas e encarou os cigarros.

– Quantos?

– Dois.

– Qual cigarro mesmo?

– Marlboro.

– Vermelho?

– Isso.

– Dois, né?

– Puta que pariu. Sim.

Me deu os cigarros, eu paguei e fui embora. Ou melhor, tentei ir embora. Fui sair e a catraca estava travada. Dei um grito com a menina que demorou a me ouvir porque estava reclamando com o Valdecir que as comandas estão sempre cheias de coisas e não dá para trabalhar assim. Mas ela liberou a catraca e fui embora.

Bastou eu atravessar a rua. Olhei para trás e lá estava o Valdecir na calçada, com meia bunda para fora da calça e se digladiando com um espetinho.


Eu tenho certeza que a pessoa que inventou a expressão “o pão que o diabo amassou” frequentava a padaria aqui ao lado de casa.  

4 comentários:

  1. Você se fuder tornou meu dia melhor. Obrigado, Valdecir, Malaquias e amigos.
    Nada pessoal, Rob.

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  2. Eu acho que, pela progressão aritmética da coisa, o Valdecir estaria no banheiro no quarto dia.

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  3. Obrigado por me deixar com uma imagem mental de meia bunda do Valdecir, Rob! Hahahaha

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  4. Rob será que as "catarinas" que você não comeu eram as carolinas que voçe vive procurando e não encontra? Acho que agora você chegou a um novo nível de sofisticação: querem que você pague por carolinas que você não consumiu e não encontrou ao longo da vida. Esse é o novo círculo do inferno da padaria

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