Faz um tempo que a padaria aqui ao lado de casa entrou na
Era Moderna.
Até alguns meses atrás, a padaria era horrível. E isso por
vários motivos. Primeiro, as fornadas de pães eram absurdamente irregulares, misturando
pães que pareciam vítimas de incêndio com cadáveres de albinos. Segundo, a filosofia
de trabalho “elemento surpresa”. Era assim: você pedia um pão de calabresa e,
ao voltar para casa, descobria que havia comprado uma rosca de coco.
Isso, claro, sem falar na genialidade do dono, que parece
acreditar que a melhor forma de mostrar que seus produtos são bons é não ter o
produto. Depois das nove da noite já não tinha mais pão. Cigarro? Meses sem ter
(e o dono sempre me explicava que “o caminhão atrasou”, o que me fazia pensar
que o carregamento estava vindo da Coreia do Norte). Refrigerante? Às vezes
tem, às vezes não.
Mas, de uns meses para cá, tudo mudou. Eles colocaram umas catracas
com comandas eletrônicas, para dar um ar de modernidade ao negócio. E aí tudo
mudou. Porque antes era uma padaria horrível.
Agora ela se transformou em uma padaria horrível com
catracas eletrônicas. E que funcionam do modo mais burro do mundo. Nas demais
padarias da cidade, você paga suas compras, pega a comanda, deposita na catraca
e ela abre. Aqui não. Aqui você deixa a comanda com a mulher do caixa e ela
precisa liberar a catraca para você, provavelmente apertando um botão ou alguma
tarefa extremamente difícil, já que de cada dez vezes que vou lá, em pelo menos
metade a catraca está travada quando vou sair.
Ah sim, e vale dizer que eles colocaram as catracas
eletrônicas para a porta ficar fechada, e assim o ar condicionado fazer mais efeito.
O problema é que três dias depois de colocarem as catracas o ar condicionado
quebrou e ninguém mais arrumou. Dez minutos lá dentro e suas roupas estão
coladas de suor.
Toda vez que vou lá tenho a impressão que morri e cheguei
numa espécie de inferno, onde as almas dos pecadores estão ardendo na fila do
caixa ou esperando o atendente ajustar a máquina de fatiar frios e sempre ao
lado daquelas coisas dantescas que ficam borbulhando no balcão de
selfie-service. E como você é pecador, não pode sair dali. E nem adianta tentar
sair, a catraca está fechada, mesmo se você já pagou os pecados que estavam na
sua comanda.
Aliás, normalmente você paga por pecados que não são seus.
Dias desses fui até ali comprar cigarro.
Peguei minha comanda e a menina do caixa me olhou. Girei a
catraca e a menina do caixa me olhou. Encontrei no balcão e a menina do caixa
me olhou. Dei a comanda e pedi dois maços de cigarro. A menina passou a comanda
e imediatamente apareceu a lista de compras do mês de um pequeno país.
– Oitenteoito e vinte.
– Oi?
– Deu oitenteoito e vinte.
– Olha, eu só quero comprar dois maços de Marlboro e ir
embora.
– Essa comanda não é sua?
– É, mas eu peguei agora, você não viu?
– Não.
– Eu acabei de entrar na padaria e você estava olhando para
mim. Eu entrei, andei um metro e vim até aqui.
– Você não comeu catarina?
– Minha senhora, eu não conheço nenhuma Catarina. E mesmo se
conhecesse, eu sou casado, então, eu queria...
– Aqui diz que você comeu quatro catarinas.
– Não. Não comi.
– Ah, não. Está errado.
– Sim, é o que estou tentando dizer.
– Não são quatro catarinas, são cinco.
– Olha, o erro não é esse.
– Você não comeu catarina?
– Não.
– Mas aqui na sua comanda diz que você comeu. Tem também
três ressiverantos.
– Refrigerantes?
– Isso. Três ressiverantos. E um bolo.
Perfeito. Eu não apenas estou no inferno pagando meus
pecados, como ainda fiquei com a comanda do Átila ou do Hitler e vou ter que
pagar os pecados dos outros.
– Olha, nada disso é meu.
– VALDECI! Ô VALDECI!
Entra em cena, Valdecir, o demônio encarregado daquele
pedaço do inferno. Mulato, Valdeci não é um gordo comum, mas sim aquele tipo de
gordo que não consegue ficar com a bunda inteira para dentro das calças. Ele
normalmente está no caixa comendo. Uma semana eu fui à padaria três dias
seguidos e no mesmo horário, então peguei praticamente toda a refeição dele. No
primeiro dia ele estava comendo um bife; no segundo, ele estava chupando uvas;
no terceiro, estava passando fio dental. Sim, no caixa. Não voltei no quarto
dia, mas tenho certeza que, pela progressão aritmética da coisa, ele estaria
dormindo.
Claro que o Valdecir demorou até chegar, porque agora ele não
fica mais na padaria, e sim enchendo a cara de espetinho na barraca ao lado do
mercado (você leu o post anterior?). Veio arrastando os pés e limpando a
gordura do rosto, e entrou no balcão atrás do caixa.
– Fala.
– Aqui a comanda tá cheia de coisa, mas nada é dele.
Com ar de especialista, Valdeci passou a comanda novamente.
– As catarinas não são suas?
– Não. Antes que você pergunte, o bolo também não. Nem os
ressiverantos.
– Ah tá.
– Eu quero só dois maços de Marlboro.
Mas Valdecir não estava mais preocupado com isso, e sim com
o enigma das comandas. Afinal, seu inferno não podia ser desorganizado a ponto
dos próprios demônios sofrerem com isso. Somente as almas dos clientes poderiam
ser penalizadas.
O suor estava começando a descer pelas minhas costas quando
Valdecir falou:
– Toda vez essas comandas estão cheias.
A menina do caixa concordou. E acrescentou que cada dia está
pior. Valdecir olhou ao redor, provavelmente pensando que deveria resolver
aquilo de uma vez por todas para pegar mais um espetinho de linguiça.
– Sabe o que a gente deveria fazer?
Quem respondeu fui eu.
– Sei. Me dar os dois maços de Marlboro, pegar meu dinheiro e
deixar eu ir embora.
Ele olhou para mim. Talvez estivesse considerando a minha sugestão.
Mas pareceu ter uma ideia melhor.
– A gente devia limpar todas as comandas de meia em meia
hora.
Eu e a menina protestamos imediatamente.
– Vai dar muito trabalho, Valdeci!, ela disse.
– Eu não trabalho aqui, eu falei.
Valdecir respirou fundo.
– É porque é o Malaquias sempre se esquece de desmarcar as
comandas.
Novo protesto.
– Aí você fala com ele, Valdeci! Eu não vou limpar nada, ela
continuou.
– Eu nem sei quem é Malaquias. Mas eu acho que é melhor
falar com ele mesmo.
Nesse momento, Valdecir olhou para mim.
– Você vai querer o quê?
Se eu fosse mais novo – e mais paciente – provavelmente começaria
um discurso apontando que eu queria começar a aumentar a eficiência do local. O
primeiro passo seria demitir o Malaquias. O segundo seria tornar os pães em uma
comida mais uniforme. Depois uma campanha de marketing que, misturada a
atentados terroristas às outras padarias, resultaria num processo de expansão
violento. “Precisamos de espaço vital!”, eu gritaria em algum momento.
Mas estou mais velho. E mais experiente, a ponto de saber
que as chances de eu mesmo ter que demitir o Malaquias seriam enormes. Então
resolvi ser sincero.
– Eu quero dois maços de Marlboro.
Valdecir virou as costas e encarou os cigarros.
– Quantos?
– Dois.
– Qual cigarro mesmo?
– Marlboro.
– Vermelho?
– Isso.
– Dois, né?
– Puta que pariu. Sim.
Me deu os cigarros, eu paguei e fui embora. Ou melhor,
tentei ir embora. Fui sair e a catraca estava travada. Dei um grito com a
menina que demorou a me ouvir porque estava reclamando com o Valdecir que as
comandas estão sempre cheias de coisas e não dá para trabalhar assim. Mas ela
liberou a catraca e fui embora.
Bastou eu atravessar a rua. Olhei para trás e lá estava o
Valdecir na calçada, com meia bunda para fora da calça e se digladiando com um
espetinho.
Eu tenho certeza que a pessoa que inventou a expressão “o
pão que o diabo amassou” frequentava a padaria aqui ao lado de casa.
Você se fuder tornou meu dia melhor. Obrigado, Valdecir, Malaquias e amigos.
ResponderExcluirNada pessoal, Rob.
Eu acho que, pela progressão aritmética da coisa, o Valdecir estaria no banheiro no quarto dia.
ResponderExcluirObrigado por me deixar com uma imagem mental de meia bunda do Valdecir, Rob! Hahahaha
ResponderExcluirRob será que as "catarinas" que você não comeu eram as carolinas que voçe vive procurando e não encontra? Acho que agora você chegou a um novo nível de sofisticação: querem que você pague por carolinas que você não consumiu e não encontrou ao longo da vida. Esse é o novo círculo do inferno da padaria
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