Leitores mais antigos sabem que um dos pontos fortes deste
blog sempre foram as histórias de supermercado.
Isso porque basta eu colocar o pé dentro de qualquer
supermercado para os loucos que vagam pelos corredores detectarem minha
presença e começarem a me perseguir incansavelmente com o objetivo de me
arrastar para a insanidade deles - que pode ser tanto me envolver numa briga
por causa de uma fatia de presunto quanto tentar me obrigar a beber água
sanitária.
Ou seja, enquanto as pessoas normais vão fazer compras sem
saber se irão encontrar tudo o que precisam, eu normalmente saio de casa para
ir até o mercado sem fazer a mínima ideia se vou conseguir voltar vivo para
casa.
E isso tem piorado nas últimas semanas, por causa de uma
menina que trabalha como caixa no mercado aqui ao lado de casa. Eu falei dela
rapidamente neste post aqui (corra os olhos até o sétimo parágrafo e
procure pela menina alienígena que dança) e sempre imaginei que ela entraria no
blog. Mas eu realmente estou ficando assustado, pois eu estou cada dia mais
convencido que ela é realmente um extraterrestre.
Aliás, eu estou cada dia mais convencido que ela não apenas é
um extraterrestre, mas sim um extraterrestre com sérios distúrbios psicológicos.
Não. Podemos ir além. Na verdade, ela não é um extraterrestre
com sérios distúrbios psicológicos, mas sim um extraterrestre com sérios
distúrbios psicológicos e cuja missão, seja lá qual for, diz respeito a mim.
Na verdade, às vezes eu acredito que ela é uma espécie de
mercenária espacial. Eu devo ter feito alguma coisa que ofendeu algum
milionário de um planeta distante, que contratou o alienígena para me
enlouquecer. Assim, ela pesquisou toda a minha vida e, ao ver que vou ao
mercado quase todo dia, se infiltrou ali.
À primeira vista, ela se parece humana. Cabeça, tronco e
membros. Mas basta bater o olho nela para perceber que algo está errado. Quanto
mais você olha para ela, mais você chega à conclusão que algo ali está errado. Num
dia parece que é a proporção entre os braços e o tronco; no dia seguinte, você
tem a sensação de que talvez as pernas sejam grandes demais; aí você vê que
esqueceu o sabão em pó, volta ao mercado e percebe que ela tem a cabeça larga
demais. Você nunca sabe o que está errado, mas tem algo ali que está errado.
E os problemas só aumentam quando ela começa a se mover. Os
movimentos dela não são naturais, é como se ela estivesse sendo manipulada por
controle remoto (eu já pensei em cordas penduradas no teto, como uma marionete,
mas não são, porque eu chequei um dia). Imagine um boneco de Olinda andando
pelas ruas enquanto tenta não ser notado pelas outras pessoas e você tem uma
amostra dos movimentos dela.
Bem, isso prova que ela não é deste planeta. Certo. Não é a
primeira vez que sou abordado por alienígenas na rua, mas o problema é que ela
parece sofrer algum surto psicótico toda vez que eu me aproximo. Eu não sei se
emito algum tipo de radiação, mas eu sou uma das únicas duas coisas que parecem
ativá-la (mais tarde eu falo sobrea outra coisa). Então, basta eu me aproximar
do caixa para ela sofrer uma espécie de sobrecarga, como se os sensores dela
indicassem que sua presa está por perto.
E ela começa a dançar. A se mover. E a falar
incontrolavelmente, sobre qualquer assunto. Sem lógica, sem contexto. E sem
piedade. É mais ou menos assim.
– Você vai querer CPF na nota?
– Sim.
– É bom esse negócio de CPF né?
– Oi?
– Esse negócio de CPF.
– É. Acho que é.
– Porque você paga aqui e recebe ali. Esse xampu é bom?
– Não sei, foi minha esp...
– Olha! Tem cebola! Você vai comer esta cebola?
– Você não precisa do meu CPF?
– Minha tia adora cebola. A gente chama ela de Cebola em
casa. A Tia Cebola. Mas só nos natais.
– O Meu CPF é...
– Porque ela só gosta de cebolas nos natais. Na festa
junina, ela odeia cebola. Você acredita em Deus?
– Oi?
– Deus. Você acredita?
– Bem...
– Eu não sei se acredito. Mas estamos na frente de uma
igreja, melhor mudar o assunto. Você vai querer CPF? No liquidificador?
– O CPF onde o quê?
– No liquidificador. Você tem liquidificador em casa?
– Olhe, eu esqueci meu cartão. Depois eu pego as compras. Eu
vou embora.
– Mas não vamos falar sobre isso, porque liquidificadores não
gostam que falem deles. Você já descobriu quantos milímetros choveu hoje?
E sim, é sempre assim. Toda vez que eu me aproximo, ela
sofre um surto psicótico. É como se o cérebro dela fosse invadido por centenas,
milhares, milhões de janelas popup que ela precisa ler em voz alta e falar para
mim. E tudo isso fazendo dancinhas e se movendo de forma estranha. Quando não
consegue ligar um assunto no outro, dá gargalhadas histéricas e tenta novos passinhos
de dança.
Isso acontece na maioria das vezes. Mas, em algumas outras, eu
vou esperando pelo pior e acontece exatamente o oposto. Ela está prostrada na
cadeira – quando ela está na cadeira, você tem certeza de que tem algo errado
com o corpo dela, pois ela consegue ficar sentada e deitada ao mesmo tempo –
olhando fixamente para o nada, com cara de assassina.
Eu coloco minhas compras, e ela não olha para mim. Sem
exageros, ela não move os olhos. Não pergunta nem se eu quero CPF na nota.
Apenas pega as compras, passa no leitor do código de barras e arremessa todas
elas em direção às sacolas. Quando termina de jogar as compras ali, permanece
imóvel, esperando eu tomar alguma atitude. Aí eu olho o valor na tela, estico o
cartão e digo.
– Débito.
Ela arranca o cartão da minha mão, enfia na máquina e
continua olhando para o nada. Eu digito a senha, a notinha é impressa. Eu pego
o cartão e vou embora. A notinha continua ali, na máquina, e a alienígena
permanece olhando para o nada. Eu não sei se ela está recebendo mensagens do
planeta natal, ou se está em uma espécie de transe, ou se pelo fato de estar em
um planeta bipolar ela também se transforme em uma criatura bipolar e tome litros
de lítio no gargalo todas as manhãs... Mas é como se eu não existisse.
Sim, eu já pensei na hipótese de serem dois alienígenas
diferentes, um feliz e outro raivoso, como se fossem a extraterrestre Ruth e a extraterrestre
Raquel. Mas não gosto desta ideia porque isso me aproxima perigosamente de ser uma
espécie de Tonho da Lua. E por mais que eu adoraria ser um personagem de uma saga
de ficção científica, eu não quero ser o Tonho da Lua das Galáxias.
Então, parto do princípio que é um alienígena só, mesmo
porque na maior parte do tempo ela está surtada dentro daquilo que é o normal para
ela: dançando de forma estranha, falando de forma estranha, vivendo de forma
estranha.
Aliás, seja qual for o problema que ela tem comigo, também
envolve minha família. Dia desses, a Esposa foi ao mercado e a alienígena
estava olhando fixamente para umas oitocentas moedas de um real espalhadas no
balcão. Parecia ser um dia daqueles em que ela perde o contato com a realidade –
ou com a nossa dimensão – pois ela apenas olhava as moedas, ignorando os
clientes que queriam passar a compra. De repente, ela agarrou uma moeda que
estava no meio, gritando “uma moeda da Copa!” e começou a fazer suas dancinhas
e falar sobre pneus e depois sobre pelicanos.
Por isso que eu tento evitar ir ao mercado agora. Porque
basta eu me aproximar dela que o surto psicótico-espacial começa. Afinal, como
eu disse, eu sou uma das duas coisas que desperta isso nela. A outra é Alceu
Valença.
Aliás, não é Alceu Valença. É especificamente a música Anunciação.
Ela simplesmente não sabe lidar com a existência da música. Não
sei se faz a lembrar do seu planeta natal, não sei se se a música é um portal
galáctico que ela usou para viajar até nosso planeta, não sei se algum som ali
faz com que seu cérebro produza algum tipo de enzima alienígena que causa um surto. Sei que apenas
que a música Anunciação parece ser algo grande demais para ela suportar.
E acontece que, às vezes, neste mercado, toca música. Nem
sempre toca, mas às vezes o sistema de som está ligado e está tocando música.
E é sempre Anunciação. Sempre.
Às vezes é a versão original, mas às vezes é algum cover. Eu
nem sabia que Anunciação tinha tantas versões, mas todas que foram gravadas até
hoje estão registradas num CD que toca constantemente no mercado. Acaba a
versão do Alceu Valença e começa a versão do Coral das Crianças de Campinas.
Acaba a versão do Coral das Crianças de Campinas e começa o tributo das bandas
de heavy metal japonesas à música Anunciação.
E a alienígena do caixa enlouquecendo e dançando. E
enlouquecendo enquanto dança. Eu me aproximo e tento acabar logo com aquilo.
– Bom dia.
– Adoro essa música.
– Sim, eu gosto também. Eu vou quer CP...
– Ela gruda na cabeça. Gruda e não sai. Gruda e não sai.
– Sim, você me disse isso ontem. Olhe, eu estou com um pouco
de p...
– TU VEEEENS! TU VEEEENS!
– Meu Deus do céu.
– EU JÁ ESCUTO OS TEUS SINAIS!
– Olhe, eu sei que talvez o pessoal do seu planeta esteja
mandando sinais, mas é que está todo mundo olhando, e eu preciso...
– TU VEEEENS! TU VEEEENS!
– Deixa. Depois eu pego as compras. Eu vou embora.
– Você vai querer CPF?
– Oi?
– CPF. Vai querer CPF?
– Sim.
– Pode falar.
– Um dois três. Quatro cinco...
– QUE TU VIRIAS NUMA MANHÃ DE DOMINGO!
– Falta o resto do CPF.
– EU TE ANUNCIO NO SINO DAS CATEDRAIS!
– Esquece. Depois eu pego as compras.
– TU VEEEENS! TU VEEEENS! EU JÁ ESCUTO OS SINAIS!
– Tchau.
– TU VEEEENS! TU VEEEENS!
3 comentários:
Lembrei daquela bounty hunter que persegue o Anakin e o Obi Wan em um daqueles prequels de Star Wars - acho que no Episódio II. Talvez você seja uma versão masculina da Padmé e o Palpatine esteja querendo acabar com a sua vida, mas como é você, a transmorfa tinha que estar no supermercado...
Essa com certeza toma remédios bem terrestres!
Esses textos (sinto muito, esses que vc se fode) são os que mais me divirto. Valeu! :)
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