tag:blogger.com,1999:blog-319674512024-03-23T09:50:33.588-03:00Championship VinylRob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.comBlogger1152125tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-28438910972584456792023-01-20T17:20:00.000-03:002023-01-20T17:20:15.526-03:00Golpe... De Mestre?<p> Foi ontem, lá pela uma da manhã. Estava lendo um livro na
sala e, de repente, tocou meu WhatsApp. Dois toques. Fiz questão de atravessar a casa até o PC praguejando. Eu tinha
certeza que era alguém me pedindo um texto.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E, sabe... O problema das pessoas que pedem texto no meio da
madrugada não é fato de que elas estão pedindo texto de madrugada. O problema é
que uma pessoa que faz isso certamente vai perguntar se você consegue entregar
ainda hoje, de preferência antes das padarias abrirem.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sentei no PC. Lá estava as duas mensagens, de um número que
eu não conhecia. E a foto do perfil era da Mulher Elástica, dos Incríveis.
Acendi um cigarro, respirei fundo e olhei para o alto.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Deus, aqui é o Rob. Se eu rezar hoje à noite, será que você
consegue levar isso em conta e dar um desconto amanhã? Tipo, não quero ganhar
na Mesa Sena, eu queria apenas um dia tranquilo. Mais nada. Isso não quer dizer
que eu não quero ganhar na MegaSena. Se for possível, isso muito me interessa,
mas só de ...”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Miau”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Não tô falando com você, #GatoRidículo. Você tem ração aí
que eu estou vendo, vai encher o saco de outro”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Deus não respondeu e o gato foi embora. Sobrou apenas eu e as
mensagens novas no WhatsApp . Dei mais um tragada e abri a janela. Lá estava a
mensagem:<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“PAGA ESSE PIX OU VOU VAZAR TODOS SEUS DADOS”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aí, embaixo, tinha uma imagem. Curioso que sou, claro que mandei
fazer o download. Mas eu já imagina do que se tratava. Era o QR Code para eu
fazer o Pix.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sabe, achei meio preguiçoso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu sempre ouço falar daqueles golpes mais elaborados, do
tipo “oi, sou eu, seu irmão, e estou numa masmorra no Iraque. Faz esse pix que
o pessoal do Estado Islâmico está ameaçando cortar minha cabeça, depois eu
acerto contigo.” Até mesmo aqueles mais antigos eram mais bem trabalhados.
Manja o Príncipe da Nigéria, que pedia sua ajuda para recuperar o trono e você
pode fazer contribuir com a causa colocando dinheiro nessa conta, e ele paga
quando reassumir o governo”?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Então, as coisas eram mais bem trabalhadas. Sabe, não eram
textos complexos, nem nada que justificasse um Nobel de Literatura, mas tinha
uma espécie de roteiro ali. A ideia era fazer você se relacionar com a história,
criando um personagem, uma situação de risco e passando a mensagem que “você
pode fazer a diferença e salvar a Nigéria!”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas a mensagem que eu recebi foi muito feita de qualquer
jeito. Eu imagino os golpistas conversando.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Já to com QR Code aqui. O que eu falo?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Fala que para ele pagar.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sim, isso eu já sei. Quero saber qual o motivo dele pagar”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Ué, o motivo é que a gente quer a grana.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Não é isso! Eu quero saber qual motivo que a gente vai usar
para fazer ele querer pagar”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Ah. Entendi. Não sei, não pensei nisso.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Preciso dar um motivo.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sei lá. Fala que vai vazar os dados dele.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas vazar para quem?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Como eu vou saber? Inventa algo aí”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Você sabe se ele é casado? A gente pode falar que vai vazar
os dados para mulher dele”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Eu nem sei se ele é homem. Coloca que a gente vai vazar os
dados e vê se ele responde”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem, eu não respondi. Fiquei fumando e apenas olhando a tela,
esperando algo acontecer. E algo aconteceu. Instantes depois apareceu a palavra
“digitando...” do lado da foto da Mulher Elástica.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Achei meio amador, sabe? <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Hitchcock disse certa vez que ao invés de mostrar algo assustador
na tela, é melhor sempre apenas insinuar. Ao fazer isso, ele deixa a plateia imaginar
o que pode acontecer – e a plateia sempre vai imaginar horrores muito maiores
do que aquele que ele iria colocar na tela.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu, no lugar do cara, teria dado alguns minutos de silêncio,
deixando minha imaginação adivinhar quais dados seriam vazados.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">No começo, eu provavelmente pensaria que não tenho dado
nenhum para vazar. Mas claro que ia continuar pensando nisso. Aí, por segurança,
ia abrir minha pasta de fotos e dar uma olhada. Vai que, né? Depois, ia achar
que talvez fosse melhor mudar a senha do banco.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E, cinco minutos depois, ia concluir que talvez seja mais fácil
pagar o Pix do cara do que ficar abrindo todas minhas pastas para ter certeza
se aquelas fotos do Réveillon de 2019, que eu estou bêbado e correndo com a
bunda de fora na praia, foram realmente apagadas.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas, não. O cara não leu o livro do Hitchcock. Ao invés
disso, ele usou a estratégia de mandar o goleiro para a área, para tentar
cabecear o escanteio. E logo em seguida o goleiro chegou, com a mensagem<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“VOU VAZAR SEUS CARTÕES, SUA LOCALIZAÇÃO, TUDO. PAGA O PIX.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Me senti até um pouco ofendido, sabe? É como se na primeira
mensagem ele tivesse mandando um “oi, sumido, como você está” e, 2 minutos
depois – e antes que eu respondesse – já tivesse mandado uma foto pelado no
meio da cozinha. Bicho, eu não sou fácil assim.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas, enfim... Agora temos dados mais concretos para saber
com o que estamos lidando.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Minha localização? Isso pode vazar. Olha, eu moro na Vila
Mariana, perto do Hospital São Paulo. Como referência, você pode procurar um
delivery de bebidas 24 horas. Na frente desse delivery, vão estar quatro
motoboys ouvindo funk no máximo e dando gargalhadas.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Vá até os motoboys e olhe para o prédio ao lado deles. É um
prédio branco, de esquina. Se você olhar pela janela do primeiro andar, vai ver
uma pessoa careca andando de um lado para o outro e socando a parede,
implorando para que os motoboys calem a boca por um minuto.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Esse careca sou eu. Essa é minha localização. Então isso não
é<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>exatamente um segredo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Meus cartões?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem, como acontece com boa parte dos brasileiros hoje, meus
cartões são pedaços de plástico que valem exatamente isso: pedaços de plástico.
Inclusive, eu estou sempre com a cabeça raspada porque uso um deles como navalha,
como já diria Cazuza. Cara, quer vazar meus cartões? Vaza aí.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aliás, tive uma ideia e pensei em ligar para o golpista.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Oi, cara. Sou eu, a vítima. Tudo bem? Seguinte... Você quer
o número dos meus cartões? Então vamos fazer assim. Eu te passo o número e a
senha. Mas antes disso eu vou ligar lá para atualizar meu cadastro e passar o
seu telefone como contato. Pode ser? Porque, na boa? Eles me ligam 45 vezes por
dia querendo saber quando eu vou pagar. Então, se você quiser, eu te passo o
número dos cartões, mas aí você assume essas ligações. Combinado?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Não. Não ia rolar. Provavelmente o cara ia desligar na minha
cara com medo de eu fazer isso. Eu, no lugar dele, desligaria na mesma hora. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem... Localização. Cartões. O que falta vazar? Meus textos?
Minha pasta de textos é tão bagunçada que ele iria gastar mais dinheiro com o
golpe contratando alguém para arrumar aquilo do que com a grana que ele
ganharia.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Nudes? Bem, aí a coisa também é complicada. Pensa comigo: o que a pessoa vai
fazer com um nude meu? Ligar para a prefeitura e fazer ameaças, exigindo 5
milhões de dólares em 48 horas, caso contrário vai projetar uma foto minha pelado num prédio
da Paulista? Nem vilão de quadrinhos faria isso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Meu cigarro estava acabando e pensei em mandar uma resposta
para ele.</p><p class="MsoNormal">Queria perguntar que dados exatamente ele iria vazar, e onde ele
faria isso. E não por medo, mas sim para ver se conseguia ajudar o cara. Tipo, “não
joga no Twitter agora, tenta jogar amanhã depois do almoço. É sexta, e esse
horário tem mais engajamento”. Ou “se jogar no Instagram, tem como me marcar na
foto, para eu conseguir uns seguidores?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas não deu tempo de novo. Lá estava novamente:</p><p class="MsoNormal">“DIGITANDO...”</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Pensei: ah, agora ele vai dar o cheque mate. Vai colocar meu
extrato do banco pra mostrar que não está brincando, ou uma foto minha falando
com ele no computador. Imagina que demais? O cara ter uma foto minha tirada enquanto
falo com ele? Putz, aí seria demais! Respeito total!</p><p class="MsoNormal">Mas não. A mensagem que pipocou na tela foi apenas</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“NÚMERO ERRADO. DESCULPE.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E apagou todas as mensagens. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Número errado, cara?! Sério?!</p><p class="MsoNormal">Que brochante. Fiz toda uma fantasia sobre meus dados
serem vazados e pronto. Tomei um ghosting. Lá se foi o golpista, depois de fazer
ameaças e prometer que vazaria meus dados, em busca de outra pessoa. Me
descartou, assim, do nada.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Hoje conversei com algumas pessoas, que disseram para eu eu
não esquentar a cabeça. Falaram que golpista é tudo igual, eles não prestam
mesmo. Falaram até que o que é meu está guardado, e ainda vou achar um
contraventor que me dê valor e me mereça. Mesmo assim... Não sei... Não consigo parar de pensar que o
problema é comigo.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Acho que é hora de eu me tornar uma pessoa com dados mais
interessantes. E parar de criar expectativas com todo golpista que aparece no meu celular.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">Epílogo: meia hora depois meu telefone tocou. Corri para atender, torcendo para que fosse o golpista, dizendo que se arrependeu, implorando meu perdão, que nunca encontrou alguém com dados tão interessantes como eu, e que eu preciso fazer o Pix dele. Mas não. Era o filho da puta do cartão de crédito me cobrando. Bloqueei o número e fui dormir agarrado ao travesseiro e ouvindo All by Myself.</p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-29254975873568186282022-12-29T16:49:00.001-03:002022-12-30T01:00:53.804-03:00O Dia em que Eu Almocei com um Rei<p> “O Pelé está atrasado”.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Éramos uma seis pessoas naquela sala luxuosa e todos se
remexeram um pouco por causa da ansiedade. Afinal, não estávamos ali para almoçar.
Estávamos ali para ver um rei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Corta para algumas semanas antes.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Muito tempo atrás, quando trabalhava com cinema e vídeo,
participei da cabine de imprensa e da coletiva de lançamento de Pelé Eterno. No
meio da multidão de jornalistas que queria ver Pelé, eu puxei a assessora de
imprensa do filme de canto.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Você me deve uma meia dúzia de favores”, eu disse a ela. “Todos
eles estão pagos se você me arrumar dois minutos com ele”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ela disse que iria ver o que conseguia, mas que não era
exatamente fácil. Eu disse que ia esperar e fui embora certo que a conversa tinha
morrido ali. Mas não morreu. Alguns dias depois, ela me liga.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Você tem compromisso amanhã?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Não sei. Preciso ver”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Se tiver desmarca. Você vai almoçar com o Pelé”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Acho que passei a noite em claro. Afinal, eu não ia apenas
conhecer o maior jogador de futebol de todos os tempos. Eu ia conhecer o
sujeito que havia sido o herói de infância do meu pai. Passei horas da minha
vida ouvindo meu pai descrever gols e lances do Pelé como se eles estivessem
acontecendo na minha sempre. O passe para o Carlos Alberto. A puxeta contra
País de Gales. O chapeu no sueco. Para mim, tudo parecia meio mágico na voz do
meu pai.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E era mágico.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Porque não era um jogador. Era um rei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E eu ainda estava na casa de Aníbal Massaini, o diretor de
Pelé Eterno, tentando entender que ia encontrar esse Rei quando ouvi que ele
estava atrasado. Éramos um grupo de jornalistas – eu não conhecia nenhum – e Massaini.
Conversamos mais um pouco até que finalmente ouvimos uma movimentação na porta
da frente.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E de repente ele aparece na sala. Estava com um ou dois
assessores, sorrindo e pedindo desculpas pelo atraso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O problema é que eu não conseguia enxergá-lo direito.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Acho que nunca disse aqui, mas eu colecionava selos quando
era moleque. Minha coleção era enorme e quase toda de selos comemorativos do
Brasil. E três desses selos, eram sobre a conquista das Copas de 68, 62 e 70. E
tudo o que eu conseguia ver na minha frente era o selo de 1970.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu olhava para ele e enxergava apenas essa imagem aqui.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgskdH-vaTytEeuqoEZ1xkUIcXcQ0OK-ySay4oXknwfqXH_uScdGBC7OCwhznAmuFE3CmWo_ifXr-DnnYKmgIjSgWPA5T-UtNeR3I13VQhXXhvoITSTNUQvjeDqKpHK_Faot8nC8V4n6TitUalcI3PN-y_4CqtZVJpr-5vOuDi3cVD6xiUHbg/s4000/selo.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2714" data-original-width="4000" height="217" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgskdH-vaTytEeuqoEZ1xkUIcXcQ0OK-ySay4oXknwfqXH_uScdGBC7OCwhznAmuFE3CmWo_ifXr-DnnYKmgIjSgWPA5T-UtNeR3I13VQhXXhvoITSTNUQvjeDqKpHK_Faot8nC8V4n6TitUalcI3PN-y_4CqtZVJpr-5vOuDi3cVD6xiUHbg/s320/selo.jpg" width="320" /></a></div><p class="MsoNormal">Só consegui enxergá-lo de verdade quando se aproximou de mim e me
cumprimentou. E me lembro claramente de, enquanto apertava a mão dele, tocar de
leve seu braço. Menos para ter certeza de que ele estava ali, e mais para ter
certeza de que ele existia. Porque a pessoa que fez aqueles lances que meu pai
contou não podia ser real.</p><o:p></o:p><p></p>
<p class="MsoNormal">Ele era real.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Real e humano, pelas histórias que contou.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Almoçamos e ficamos batendo papo, ouvindo histórias de todos
os tipos. A Copa de 66 foi tão violenta que até os argentinos reclamaram. O
Cosmos colocou tanto dinheiro na mesa que era impossível falar não. Se você dominasse
a bola de costas para o ataque no meio de campo, o Waldemar de Brito parava o
jogo e mandava repetir o lance, falando que você tinha que virar sem tocar na
bola, porque o gol era do outro lado. E se vocês acham que eu jogava bem, vocês
precisam ver o que eu sei fazer com um pião. Aliás, eu tenho um pião no carro,
posso ir buscar para mostrar para vocês.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Não, não precisa, Rei”. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sim, todos ali se dirigiam a ele como Rei. Não foi
combinado, não foi pensado. Era apenas natural.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E, até hoje, carrego alguns momentos do dia comigo. O
primeiro foi logo depois do almoço, quando fui usar o banheiro. Abri a porta
indicada e... Lá estava o Rei, fazendo seu xixi.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Rei, me desculpa! Eu não sabia que você estava aí!”, e
fechei a porta.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Instantes depois, ele sai do banheiro. Eu peço desculpas de
novo, mas ele pede diz que a culpa foi dele epor distração não trancou a porta
do banheiro. E aí diz que isso fez ele lembrar uma história de quando estava
fazendo uma excursão com o Santos. Estavam na Itália, jantando no hotel, e
antes de subirem para o quarto, ele foi usar o banheiro do lobby.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Senhores, o almoço está servido”, interrompeu um dos
funcionários.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Me dá dois minutos que eu quero contar essa história para
ele”, disse o Rei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sim, ele pediu para as pessoas esperarem porque estava
contando uma história para mim. E a essa altura eu não era mais jornalista. Eu
era um garoto ouvindo o astro das histórias do meu pai. A história terminava
com ele no banheiro e um italiano entrando em choque por ver o Pelé ao lado
dele e, com o susto, mijando nas pernas do Pelé.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ele gargalhou, colocou a mão no meu ombro e disse “vamos
almoçar”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O outro momento foi no final da tarde. Eu entreguei para ele
o release do filme e pedi que autografasse para o meu pai. Enquanto ele fazia
isso, eu arrisquei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Meu pai odeia você”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ele parou de assinar e olhou para mim, curioso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Meu pai é palmeirense”, expliquei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ele riu e terminou o autógrafo. Me entregou o release.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Fale para o seu pai que eu peço desculpas para ele. Não era
nada pessoal com ele. Eu só fazia aquilo que eu tinha que fazer”.<o:p></o:p></p>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEglzfKf9igN3E2361_AD8C44eQdAMr5acYSa6TfH093Iwm30CFngyayYCVCgb5J1K8PjEWrrniPryLJm6_B9-wZIw4SE-FKhdGxLB2OlXIsRU7rbPG5fShKCKhckEtTfhMCT31vKDk9xwxXE21XVYgMztzVgtQxhK5ZrwS5qtoG9lf73E0W7g/s640/O%20Retorno%20do%20Rei.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="425" data-original-width="640" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEglzfKf9igN3E2361_AD8C44eQdAMr5acYSa6TfH093Iwm30CFngyayYCVCgb5J1K8PjEWrrniPryLJm6_B9-wZIw4SE-FKhdGxLB2OlXIsRU7rbPG5fShKCKhckEtTfhMCT31vKDk9xwxXE21XVYgMztzVgtQxhK5ZrwS5qtoG9lf73E0W7g/w400-h266/O%20Retorno%20do%20Rei.jpg" width="400" /></a></div><br /><p class="MsoNormal">E é isso, né? Reis fazem o que reis precisa ser feito. Talvez seja por isso que sejam reis.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">E agora o Rei está morto. Longa vida aos dribles e fintas. Longa vida aos passes e lançamentos. Longa vida às cobranças de falta e pênaltis. Longa vida aos gols - de placa ou de bico, como meu pai sempre diz. Longa vida ao choro em 58 e a foto com sombreiro em 70. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">Longa vida ao Rei.</p><br />Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-43058345696881825012022-09-12T16:49:00.003-03:002022-09-12T16:49:22.529-03:00O Estranho Mundo da Máquina de Lavar Louças<p>Quando eu era moleque, meu pai trouxe um Tangram para casa. Acho
que ele tinha ganhado numa gráfica e me deu de presente. Para quem não sabe, Tangram
é um quebra-cabeça chinês com sete peças de tamanhos diferentes, que você pode
usar para montar quais figuras quiser.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Exatamente igual à máquina de lavar louças aqui em casa, com duas
diferenças. A primeira é que as peças da máquina de lavar louças não são sete,
mas sim cerca de 400. E elas mudam de formato cada vez que eu preciso colocar a
louça para lavar.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Veja bem, eu sou totalmente a favor da modernidade. Acho
fantástico poder comer em pratos limpos e saber que existe um aparelho por trás
disso. O problema é que eu preciso que inventem outro aparelho que seja
encarregado de colocar a louça na máquina, porque eu não tenho a menor
capacidade de fazer isso sozinho.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A parte dos talheres eu confesso que é fácil. É tipo o level
easy. Você tem um monte de espaços iguais e vai simplesmente colocando facas,
colheres e garfos. E as colheres menores você coloca na lateral, em espaços
parecidos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A segunda gaveta, dos copos, também me parece ser de boa.
Você coloca os copos ou canecas um do lado do outro, sempre virados para baixo.
E tem até um espaço pequeno no meio para você encaixar xícaras pequenas e copos
delicados.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Só que a zona já começa aí, porque coisas como faca de pão
ou colher de pau – que, até onde imagino, são talheres – não vão junto com os
talheres. Eles vão junto com os copos. E calma que as coisas pioram. Elas vão
junto com os talheres sem ter um lugar para isso. Sim, é isso mesmo. Você
coloca a colher de pau no meio dos copos e ela que lute lá dentro.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Para deixar mais claro, os talheres grandes formam um grupo
étnico que não é protegido por lei nenhuma. É uma minoria vítima de preconceito
que que está ansiosamente aguardando por uma reforma na Constituição. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Agora, o problema mesmo está na terceira gaveta.
Teoricamente, é onde ficam os pratos. Mas, na verdade, o nome dessa gaveta é “Tudo
aquilo que não é talher ou copo”. Então, estamos falando de pratos, mas também
de travessas, panelas, potes, assadeiras e por aí vai (se quiser colocar
talheres grandes aqui, pode colocar também, porque ninguém se importa com eles).
E tudo isso num espaço, evidentemente, limitado.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Então às vezes eu tenho 8 pratos, 3 panelas e uma assadeira.
Os oito pratos são fáceis, eles têm lugar marcado. Aí, com sorte, eu consigo
colocar uma das panelas, meio por cima de tudo. Ela fica meio bamba, como se
fosse o Bêbado e a Equilibrista ao mesmo tempo, mas consigo empurrar a gaveta e
fechar a máquina (e depois que a máquina fecha, fica bem fácil ignorar que as
coisas estão bagunçadas lá dentro e ir jogar videogame).<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O problema é que eu ainda tenho um problema. Ou melhor, eu
ainda tenho três problemas, na forma de duas outras panelas e uma assadeira.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">É aí que entra o Tangram. Tira a panela e coloca a assadeira.
Coloca uma das panelas por cima da assadeira. Grita que “não foi nada, não ouvi
barulho nenhum, deve ter sido na rua” e pega a panela que caiu no chão. Tira a
assadeira e coloca as três panelas empilhadas em cima dos pratos, para ver se
elas têm alguma ideia. Tira as panelas e os pratos e coloca a assadeira. Tira a
assadeira porque desse jeito cabem só dois pratos. Tira todos os pratos, a
assadeira, as panelas e começa colocando as panelas. Descobre que assim não
cabe prato nenhum. Tira as panelas e coloca os pratos. Pega a panela que caiu
no chão de novo e grita que “esse barulho não foi na cozinha, deve ter sido o
gato!”. Pensa se alguém iria sentir falta da assadeira se ela acidentalmente
caísse pela janela. Tira os pratos para pensar com calma e coloca tudo de volta
na pia. Descobre que tem uma vasilha na pia que você tinha esquecido na pia.
Senta no chão e chora por dez minutos. Levanta, enfia os pratos na máquina e coloca
a assadeira por cima deles. Sobe na máquina e fica pulando em cima da assadeira
para abrir espaço para as panelas. Desiste de tudo e vai pedir ajuda para um
adulto.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Ana, você pode me ajudar aqui?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– O que foi?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Essas coisas não cabem na máquina.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">–<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Claro que cabe. Já
coloquei mais coisas antes.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Não cabe. Olha só. Os pratos vão aqui. Agora eu tenho um
espaço de mais dois pratos, e três panelas e essa merda de assadeira.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– E essa vasilha.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Sim! A vasilha também. Não cabe! Olha aqui como assadeira
não entra.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Aperta que entra.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– NÃO ENTRA! É APERTADO DEMAIS! OLHA SÓ!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– É só fazer com calma. Já tentou colocar por trás?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– POR TRÁS É AINDA MAIS APERTADO! NÃO DÁ!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">De repente, eu paro e penso no que os vizinhos podem estar
pensando sobre aquele diálogo. Aliás, podem não. Eles estão pensando. Eu sei
porque eu pensaria o mesmo. Tudo que eu queria era lavar a assadeira, e
consegui apenas me tornar algo alvo de fofocas no prédio.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Pera aí, Ana. Deixa eu resolver isso antes.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Vou até a janela, coloco a cabeça para fora e grito.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Oi! Sou eu aqui do primeiro andar! Não é nada disso que
você estão pensando. É que a gente está usando uma máquina aqui. Beleza?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Durante dois segundos, tudo o que existe é um silêncio
ensurdecedor vindo da rua... Até que ele cortado por uma gargalhada abafada
vindo do segundo ou do terceiro andar. É quando eu percebo o que fiz.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Eu não devia ter falado da máquina. Piorou toda a
situação. Merda.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– <a href="http://champ-vinyl.blogspot.com/2022/08/pequeno-dialogo-filipino.html" target="_blank">Papai, não fala merda.</a><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Tá bom, Felipe! Ana, me mostra como coloca isso aí.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Cara, é impressionante. Ela arregaça as mangas e olha para a
máquina de lavar. Aí olha para a louça. De repente ela pega a assadeira e coloca
ao lado dos pratos. Distribui as panelas de forma equitativa por cima dos
pratos, com uma presa na outra, de forma que nenhuma caiba. E aproveita um
pequeno espaço que sobrou para colocar a vasilha, que fica presa e dá mais
firmeza para os pratos. Tudo isso em três segundos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Não vale. Você fez arquitetura. Aí fica fácil.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Mas antes de você ligar, deixa eu ver como você colocou os
talheres.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Os talheres? Por que você quer isso? Os talheres eu sei
fazer.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Deixa ver.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aí ela abre a gaveta dos talheres e descobre que metade das
colheres está caída por cima da outra metade. Ou seja, tudo vai ficar meio
sujo. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Tá vendo? <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Mas, pera aí. Essa colher é grande.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Sim. Ela é de sopa. E daí?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– E daí que ela tem tamanho suficiente para saber como se
comportar dentro da máquina. Aliás, talvez essas duas colheres estejam
abraçadas porque elas decidiram isso. Já pensou nisso? Elas são adultas e donas
da própria vida. Eu acho que a gente tem que respeitar.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Então...<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Se fosse essa pequenininha aqui, eu entendo. E concordo.
Essa colher de café aqui é pequena demais e precisa de um cuidado especial.
Tanto é que ela fica separada. Tá vendo?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Essa colher não é de café. É de chá.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Então, isso é elitismo da sua parte, Ana. Eu não fico
rotulando as coisas desse jeito. Não acho isso correto. Existe colher pequena,
colher média e colher grande. O ponto é que as colheres grandes podem fazer o
que quiserem da vida delas.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Concordo. E você pode depois colocar todas elas de volta
para lavar mais uma vez.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Como rebater um argumento desses? Aí vou eu recolocar as
colheres com calma, para evitar que a putaria comece assim que eu fechar a
máquina. Faço isso já imaginando que a lava louças é um misto de sala escura com
hidromassagem dos talheres, onde ninguém é de ninguém, os limites não existem e os prazeres são infinitos... E eu que tenho que
limpar tudo depois.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Então, coloco tudo com calma e, antes de fechar, escorrego
dois envelopes de camisinha lá para dentro, sem a Ana ver. Certeza que quando
eu abrir a máquina, eles vão estar vazios. Aí fecho a máquina, aperto os botões
na ordem certa...<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E acende uma luz vermelha e dispara um alarme.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">- CORRE ANA! PEGA O FELIPE E CORRE!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">- Que foi?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– A MÁQUINA ACIONOU A AUTODESTRUIÇÃO! JÁ É TARDE PRA LOUÇA
MAS VOCÊ AINDA PODE SE SALVAR! CORRE!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aí eu corro pela sala – pisando nas malditas peças de Lego
que vivem espalhadas pela casa – e me atiro atrás do sofá. Fecho os olhos e...<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E nada. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Coloco os olhos para fora do sofá. A casa está inteira, a
máquina está funcionando. E a Ana está parada olhando para mim.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Essa luz vermelha é porque acabou o líquido secante.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– O o quê?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– O líquido secante. Como está sem, a louça vai estar
molhada depois. É só isso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Espera. Líquido secante?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Sim.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– LÍQUIDO. SECANTE. É isso mesmo?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Sim.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Isso não faz sentido. Como pode existir um líquido secante?
Você molha a louça com um líquido para ela ficar seca? Isso é um erro de
conceito.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Talvez no começo do casamento ela pacientemente me
explicaria como isso funciona. Mas agora ela sabe que não vale mais a pena.
Simplesmente vai continuar o que estava fazendo e me deixa ali.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Vou até a cozinha e olho para a máquina de lavar louças.
Tirando a luz vermelha do maldito líquido secante, parece que está tudo bem lá
dentro. Até coloco a orelha encostada nela, para ver se ouço alguma colher
gemendo, mas escuto apenas o motor e a água mexendo. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E de repente percebo que me tornei um homem das cavernas que
vê sua primeira tempestade. Eu não entendo direito como aquilo funciona, mas tenho
certeza que os deuses estão envolvidos naquele processo de colheres que copulam,
assadeiras que mudam de tamanho e líquidos mágicos que secam as coisas.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Essa merda deve ser bruxaria.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Papai, não fala merda.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Tá bom, Felipe. Tá bom.<o:p></o:p></p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-35984511103667814512022-08-29T14:48:00.005-03:002022-08-29T14:48:58.930-03:00Pequeno Diálogo Filipino<p> – Pô, isso aqui não tá dando certo. Que caralho.</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Papai, não fala caralho.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Tá. Desculpa.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Falar caralho é muito feio.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Eu sei. Desculpa.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– E você estava falando caralho.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Sim, mas agora quem está falando é você.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Espera, papai. Espera. Posso falar uma coisa?</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Fala, Felipe.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Você falou caralho.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Eu sei.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– E falar caralho é muito feio.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Eu já entendi seu truque, Felipe. Já deu.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Falar caralho é feio.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Felipe, chega.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– ESPERA! Eu só estou falando que falar caralho é feio.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Para de falar isso, Felipe!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– E você falou caralho!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Tá, Felipe! Deixa o papai arrumar essa porra aqui.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Papai, não fala porra.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Ô, puta que pariu! Ana! Dá um pulo aqui!<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Papai, não fala puta que pariu.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">– Ô ANA! VEM ME AJUDAR!<o:p></o:p></p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-27026335675080058222022-08-26T00:55:00.002-03:002022-08-26T00:55:45.861-03:00Pimenta & Capu<p> <b><span style="font-size: large;">- PIMENTA! PIMENTA!</span></b></p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu estava em casa e me assustei com os gritos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sim, você pode achar que eu não devia ter me assustado. E,
quer saber? Eu concordo com você. Afinal, eu moro em São Paulo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E São Paulo é uma cidade onde qualquer coisa, de pano de
prato a Playstation 5, de som de carro a bico de mangueira, é vendida na rua. Sabe
aqueles anúncios que aparecem do nada no Instagram? São Paulo é assim. Você
está ali sem fazer nada e de repente aparece um sujeito no seu portão vendendo lustres.
São Paulo é um Instagram analógico.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Então, se você mora São Paulo e escuta alguém gritando “Pimenta”
na rua, o que você imagina? Que tem alguém vendendo pimenta na rua, certo? Sim,
esse pensamento faria sentido, se não fosse por um detalhe importante: <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eram mais ou menos quatro horas da manhã.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu estava dormindo e literalmente acordei com alguém
gritando “Pimenta” embaixo da minha janela. E, apenas para referência, eu moro
no primeiro andar. Então, se alguém grita Pimenta embaixo da minha janela, é
como se essa pessoa estivesse em pé e parada ao lado da minha cama, tipo numa
cena de Atividade Paranormal.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem, quando alguém grita a palavra “Pimenta” na sua janela
às quatro da manhã, você tem duas alternativas. A primeira (e mais indicada) é tentar
se convencer imediatamente de que aquilo foi um sonho, se esforçar para dormir e
torcer para não lembrar disso no dia seguinte. A segunda, que não é exatamente aconselhável,
é levantar e ir espiar pela janela.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Adivinhem qual eu fiz?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sim, essa mesma. Eu me sentei na cama e pensei “puta que
pariu, por que é sempre comigo?”...<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>E<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>talvez eu até tivesse me convencido a tentar
dormir novamente, se não fosse pelo novo grito.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><b><span style="font-size: large;">- PIMENTA! VEM AQUI!</span></b><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aí eu tive que levantar, porque o “vem aqui” mudou tudo. O “vem
aqui” mostrou que não a pessoa embaixo da minha janela não estava simplesmente
gritando “Pimenta”. Ele estava CHAMANDO uma pimenta. E atiçou minha
curiosidade.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Afinal, quem chama uma pimenta?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ou melhor: quem chama uma pimenta às quatro da manhã?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E, não podemos deixar de lado: por que é sempre comigo?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Então claro que Levantei e claro que abri a janela.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas não vi ninguém, a não ser um pequeno cachorro salsicha
parado na calçada. Sim, o nome é dachshund, mas eu vou usar “cachorro salsicha”
porque não quero ter que olhar no Google toda vez para ver como se escreve
isso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O salsicha olhou para mim. Eu olhei para o salsicha. Sim,
tudo isso à quatro da manhã. Ficamos nos olhando por alguns instantes, até que
reuni coragem e perguntei para o cachorro:<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">- Desculpa perguntar, mas... É você que está chamando uma
pimenta?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O cachorro fez que não era com ele. Apenas virou a cara (como
se eu não fosse sequer digno de uma resposta) mijou no portão do meu prédio (pensando
bem, talvez essa seja a forma que ele encontrou de deixar clara sua opinião
sobre minha pergunta) e saiu correndo pela calçada. Eu me esforcei para
entender tudo de forma consciente e mais ou menos ordenada (eram quatro da
manhã, lembra?), quando...<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: large;"><b><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>- PIMENTA! VEM AQUI!</b></span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ah. Aparentemente, Pimenta era o cachorro. Aparentemente, o
dono dele está vindo. Aparentemente, o dono dele tem o hábito de passear com os
cachorros de madrugada. E, aparentemente, gritando feito um anormal debaixo da
minha janela.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Fiquei esperando para ver o autor dos gritos, mas tudo o que
vi foi outro salsicha, que se aproximou do portão. Cheirou o mijo do Pimenta,
mijou por cima e foi embora.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: large;"><b>- CAPU!</b></span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Espera. Como assim, Capu?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sabe, Pimenta eu (até) entendo. Mas... Capu?! Será que é de
Capuleto? É tipo uma versão de Romeu e Julieta, feita com cachorros salsicha, mas
a garota dos Capuleto se chama Pimenta para escapar dos direitos autorais?
Será que a esta altura o Pimenta está na outra esquina, refletindo sobre a
infelicidade do amor e declamando que “sou um joguete do destino”?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: large;"><b>- CAPUCCINO! VOLTA AQUI!</b></span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ah. É Capuccino.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Pimenta e Capuccino. Que dupla. Pimenta e Capuccino, às
quatro da manhã. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas o mistério não estava resolvido. Eu já conhecia dois
cachorros e sabia o nome deles, mas faltava descobrir<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: large;"><b>- CAPUCCINO!</b></span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Sim. Ele mesmo. O autor dos gritos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E eis que ele aparece, virando a esquina. Mais ou menos 70
anos de idade. Bermuda, camiseta regata e uma sandália de couro que tinha uma
idade parecida com a dele.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E outros dezenove cachorros salsicha andando ao seu redor. Lembra
do Chiqueirinho, do Snoopy? Lembra que ele levantava uma nuvem de pó quando andava?
O velho levantava uma pequena nuvem de cachorros salsicha. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Antes que o velho olhasse para mim e decidisse puxar papo
(convenhamos que uma pessoa que andava pela rua gritando de madrugada é tipo um
banner expansivo: ela só está esperando alguém passar o mouse para cima para começara
falar com você, cobrindo a tela inteira sem fechar nunca mais) ou mandasse o
seu exército de salsichas organizar um mijaço no portão do meu prédio, voltei
para a cama.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E adormeci ouvindo os gritos de “PIMENTA, NÃO CORRE!” “CAPU,
VOLTA AQUI!!”, “NOME DE OUTRO CACHORRO SALSICHA QUE REMETE À ALIMENTO E NÃO
ENTENDI DIREITO! JUNTO!” cada vez mais longe.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Fim da história.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ou não, porque, dia seguinte, quatro e pouco da manhã...<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><b><span style="font-size: large;">- CAPU!</span></b><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ô fase.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Abri a janela e lá estava o Flautista de Hamelin. Quer
dizer, uma versão atualizada que decidiu que ratos não têm graça, então resolveu
andar pelas ruas atraindo os cachorros salsicha da cidade inteira. Lá estava
ele, o Pimenta, o Capuccino e a nuvem de cachorros salsicha. A turma toda. E eu
ali na janela, tentando entender porque tem que ser sempre comigo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E sabe o que é pior? É toda noite isso. Bate quatro da manhã
e começa Pimenta pra cá, Capuccino pra lá... E eu ali, tentando dormir. Quer
dizer, nem tento mais dormir. Agora eu não consigo pregar os olhos antes do
Pimenta passar. Se não, não durmo. É como se estivesse faltando algo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas... Por outro lado... Se olharmos para a história
inteira, talvez seja justamente o oposto. Talvez não falte mais nada. Porque
não demorou muito para eu descobrir que o velho e seu exército de salsichas
mora na minha rua.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">(Certo, aqui estou roubando um pouco, porque meu prédio e de
esquina e tem dois portões: então, eu tenho duas ruas. O Velho mora em uma
delas).<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E eu sou da opinião que toda rua tem o direito inalienável
de ter um velho ou uma velha. Veja bem, não estou falando de “pessoas idosas”,
estou falando do velho. Ou melhor, Velho, com maiúscula mesmo, porque estamos
falando quase de uma entidade. Manja, o Velho da Casa Monstro? É disso que estou
falando.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E eu já tive alguns Velhos. Quer dizer, a rua onde eu cresci
nunca teve um Velho mas, em compensação tivemos duas Velhas.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A primeira, que morava lá quando eu era do tamanho do Felipe
e conheço apenas por histórias, era a Dona Iolanda, que chamava a polícia
quando a molecada jogava bola na rua. A segunda – essa sim do meu tempo – era a
Velha Louca. Aliás, a Velha Louca era tão Velha Louca que era conhecida como
Velha Louca no bairro inteiro, o que ia desde os meus pais e os pais dos meus
amigos até os funcionários do supermercado.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E não posso negar que, às vezes, eu sentia falta de ter um
Velho na rua. Sabe? Aquele que você finge que não vê, mas olha com o canto dos
olhos? Aquele que você sabe que a qualquer momento pode sair correndo atrás de
você com uma barra de ferro na mão? (A Velha Louca fez isso com a gente, mas
não foi em qualquer momento, e sim no momento seguinte a termos xingado ela
pelo muro).<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E agora eu tenho um Velho. Beleza, ele é acompanhado de gritos
e vinte e cinco cachorros salsichas. Sim, se você somar o Pimenta, o Capu e a
nuvem, dava 21. Mas como parece que ele tem um cachorro salsicha a cada noite
que passa gritando, creio que já estamos nos 25. Talvez mais. Mas o ponto é que
eu tenho um Velho.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">E, claro, eu tenho 46 anos. Sou pai. Tudo o que quero, às quatro da manhã, é estar dormindo. Por outro lado, aquele moleque de 14 anos que ainda mora dentro de mim e não faz ideia de que o tempo passou fica o tempo cochichando na minha orelha que a coisa mais fácil do mundo é ir tocar a campainha do Velho e correr para dentro do meu prédio. Mas aí, claro, eu mando ele calar a boca.</p><p class="MsoNormal">Vamos ver no que isso vai dar.</p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-28684502306000747262022-08-18T16:29:00.004-03:002022-08-18T16:46:42.468-03:00POU! TUM! CRÁS!<p> <span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Já faz bastante tempo que eu tenho pensado em voltar a escrever
para mim.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Se isso aqui fosse uma coletiva de imprensa, eu teria vários
motivos bonitos para dar sobre isso. “Quando escrevo para mim, não preciso usar
regras”. Quer dizer, eu uso regras para a construção de texto, mas todas elas
são minhas. Outro motivo? “Quando escrevo para mim, não tenho prazos”. Mesmo
porque quando eu faço textos como esse, eu escrevo mais rápido que consigo
acompanhar. Sim, eu poderia listar motivos e mais motivos aqui.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas o motivo mesmo é que sinto falta.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Aliás, eu não sei se sinto falta de escrever para mim, ou se sinto
falta de algo que fazia antes, que era ir até a padaria e voltar com três
histórias na cabeça. Acho que sinto falta dos dois. Mas sinto falta,
principalmente, da sensação de “dia preenchido” quando postava em algum dos
dois blogs.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Enfim. Faz semanas que tenho pensado nisso com mais frequência. E
o que mais me incomoda é que pareci que perdi a prática em descobrir histórias
onde elas não existem. Era sobre isso que eu estava pensando ontem quando
entrei na cozinha e coloquei um prato na pia.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Eu ainda estava pensando nisso quando minha pia virou uma espécie
de apresentação do programa Ra-Tim-Bum. Coloquei o prato de um modo que ele empurrou
uma vasilha; a vasilha bateu numa garfo que explodiu um balão; o som da
explosão assustou um rato que saiu correndo e pulou numa colher; a colher bateu num
pote que ligou um ventilador que empurrou as folhas de um coqueiro que bateram
num copo.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">E o copo rodou, rodou e rodou até a beira da pia. Aí ele parou,
olhou para mim, deu uma piscadinha... E se atirou da pia rumo ao chão.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Aí testemunhei aquele fenômeno físico que acontece somente depois
que um copo, depois de pensar bastante a respeito do assunto, conclui que a Lei
da Gravidade não existe – ou, que pelo menos, ela não é tudo isso – e decide
que irá provar isso na frente de todo o resto da louça, se atirando de um
penhasco:</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">O tempo congelou.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Talvez bastasse eu esticar o braço para tentar apanhar o copo. Mas
meu corpo não se movia. Ou, ao menos, não se movia na velocidade normal. Minha
mente, porém, funcionava a todo vapor. Antes mesmo do copo percorrer metade do
trajeto rumo ao chão, eu já havia decidido que, na pior das hipóteses, iria
colocar a culpa no gato.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Com isso definido, comecei a pensar no que fazer. Eu tinha duas
alternativas: a primeira continuava a ser “tentar apanhar o copo”. Mas meu
corpo ainda não estava na velocidade normal. Era como se eu e o corpo estivéssemos
em planos diferentes. Ou como se eu fosse o Vigia da Marvel.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><i><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">“Estou desde o começo vendo
copos caírem, mas não posso interferir”.</span></i></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;">O ponto é que tudo o que consegui fazer foi assistir ao copo cair
no chão.<o:p></o:p></span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, "sans-serif""><b><span style="font-size: medium;">POU!</span></b></span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">“POU?” Como assim, “POU?”</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face=""Calibri","sans-serif"" style="color: black; font-size: 11pt;"><o:p> </o:p></span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Não devia ter sido CRÁS Ou talvez CRASH? Sim, CRÁS ou CRASH,
qualquer um dos dois, desde que milhares de cacos de vidro se espalhassem pela
cozinha depois do barulho. Porque, veja bem, eu não sou exatamente especialista
no assunto, mas tenho minha parcela de copos quebrados. E a maioria deles aconteceu
em completo estado de sobriedade, e tenho certeza que o som fica sempre entre CRÁS
ou CRASH.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas não. O copo fez POU, pelo simples motivo de que ele achou que
seria uma boa ideia, ao invés de se espatifar no chão, quicar de volta para o
alto.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Tem copo que faz isso, né? Ele cai e quica de volta, que nem uma
bola. Eu não sei se é alguma aposta que ele fez com os outros copos, se é
simplesmente vontade de aparecer, ou se faz isso para impressionar alguma xícara
que ele ficou sabendo que está solteira. O ponto é que ele faz.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">E o tempo continuou parado. Porque o tempo não congela quando o
copo cai, mas sim durante todo o intervalo que ele permanece no ar.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Só que o problema não é que o copo simplesmente voltou para o
alto. Ele fez isso dando piruetas, seguidas de um mortal duplo, e voltou a cair.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">E eu ali, olhando. Sem poder fazer nada. Tudo o que eu conseguia
fazer era pensar a respeito do copo. Será que naquele momento a vida inteira do
copo estava passando na frente dos seus olhos? Será que ele estava se lembrando
de todas as vezes que coloquei Coca lá dentro? Estaria ele se lembrando das
noites que ele passou esquecido ao lado do computador?</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">O copo continuava girando no ar e começou a cair. E meu pensamento
também deu uma volta.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Comecei a questionar a relação entre copos e mortes. Será que eles
acreditam que existe alguma espécie de vida após a morte? Ou depois que eles se
arrebentam é realmente o fim de tudo – com exceção daquele caco que escorregou
para baixo do fogão e só vai ser descoberto meses depois? Existe algum tipo de
luto, de cerimônia? Onde será que a Santa Marina entra nessa história?</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span style="font-size: medium;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="color: black;"><o:p> </o:p></span><b><span face="Calibri, "sans-serif"">TUM!</span></b></span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">TUM? Não devia ser TUM. É um copo. Ele é de vidro. Vidros não fazem
TUM. Sei lá, estacas de madeira podem fazer TUM. </span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;"> </span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas copos de vidro? Cadê o CRÁS? Ou o CRASH,
que seja?</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Não. O copo realmente fez TUM. Lembra que eu disse que ele estava
dando mortais e piruetas no ar? Ele encerrou a série literalmente caindo de pé
e agradecendo à plateia. Ergui os olhos em direção à pia e vi três talheres
levantando as placas com as notas. 10. 9. 9.5. Quase uma ginasta russa.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">E a ginasta russa estava no ar novamente, dando novas piruetas.
Desta vez, girando ao redor de si mesma na diagonal, como se fosse um elétron.
E rindo da minha cara, vendo que eu não conseguia me mexer.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas aí comecei a achar que era abuso. Sabe, quer cair fazendo POU
e não quebrar? Ok, eu consigo eu aceitar. Quer bater no chão fazendo TUM e
voltar para o ar. Vá lá, que seja. Você é um copo adulto, não vou me meter na
sua vida. Agora um POU e um TUM na mesma queda já é demais. Já é abuso.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Foi quando lembrei do Matrix. Talvez seja tudo uma simulação, e se
eu aceitar isso, posso tentar fazer a mesma coisa. Sim. Eu não devia tentar
apanhar o copo, e sim me convencer de que o copo não existe. E foi o que fiz.
Mergulhei naquela realidade onde o tempo e o espaço não fazem sentido algum – e
são maleáveis – e estiquei o braço na direção do copo.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Ele ria. Acho que ele fez um gesto obsceno para mim, mas não tenho
certeza. E também não dei muita atenção. Apenas estiquei o braço, guiado
totalmente pelos meus instintos, e apanhei o copo com segurança.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– EU SOU O ESCOLHIDO!, gritei na cozinha.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">O problema é que eu estava no “lhi” de “Escolhido” quando o copo
escapou dos meus dedos, deu mais uma volta, bateu no meu pulso e mergulhou –
veja bem, ele não caiu; ele mergulhou – em direção ao chão.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif""><b><span style="font-size: large;">CRÁS!</span></b></span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Ah. Agora sim. Finalmente.</span></p><p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">O tempo voltou à velocidade normal enquanto os cacos ainda deslizavam
pelo chão da cozinha (um deles foi para baixo do fogão, e vai ficar lá até o
fim do ano para aprender a não fazer mais isso). Desta vez, eu conseguia me
mover naturalmente, mas não fiz nada. Não havia mais nada a ser feito.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Não. Minto. Tinha algo que eu podia fazer. Tinha algo que eu devia
fazer.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Foi quando Filipino colocou o rosto na porta da cozinha.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– Papai! Que barulho foi esse?</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">E respondi a única coisa que podia ter respondido. A coisa que esperei anos para voltar a falar.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– O papai teve uma ideia para um texto. O papai ainda sabe fazer
isso.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas ele não estava ouvindo. Sua atenção estava toda voltada para
os cacos no chão.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– Você quebrou o copo?</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– Eu? Não. Claro que não. Foi o gato.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas ele já tinha saído correndo pela casa.</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– O PAPAI QUEBROU UM COPO!</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">– FOI O GATO, FELIPE! FOI O GATO!</span></p>
<p style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 5.0pt; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; margin: 12pt 0cm 12pt 5pt;"><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Mas, na boa? Foda-se o copo e foda-se o gato. Limpei os cacos e vim
para o computador escrever. </span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">Porque eu </span><b style="font-family: Calibri, "sans-serif"; font-size: 11pt;">PRECISAVA </b><span face="Calibri, "sans-serif"" style="font-size: 11pt;">escrever.</span></p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-55466603993550552332020-09-22T17:44:00.007-03:002020-09-22T18:49:43.199-03:00A Esfinge e o Espaço-Tempo<p> </p><p class="MsoNormal"></p><p class="MsoNormal">Aconteceu um dia desses, quando fomos buscar a chave do
apartamento novo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O quê? Você não sabia que nós mudamos para um apartamento?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem, claro que você não sabia, já que minha rotina deixou de
aparecer aqui nesse blog há alguns anos. Mas, enfim, ao invés de explicar as
dezenas de motivos que me fizeram desaparecer daqui, creio que o melhor a fazer
é simplesmente voltar a escrever, certo? E isso nos leva de volta para a frase
que abre esse texto:<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aconteceu um dia desses, quando fomos buscar a chave do
apartamento novo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Para isso, tivemos que ir até a imobiliária, paramentados
com máscara, álcool em gel... Oi? Não, eu realmente não quero explicar porque
parei de escrever aqui. Desculpa, como? Não, o blog é meu, eu não quero ter que
ficar dando explicação. Combinado? Vamos continuar?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Chegamos na imobiliária por volta das 17 horas. É uma
imobiliária pequena, apenas uma casa com um plaquinha na frente, sem
estacionamento ou aquele entra-e-sai de clientes, motoboys e corretores. Toquei
a campainha e encharquei a mão com álcool em gel.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Certo. É a última vez que vou tocar nesse assunto. Tem
vários motivos para eu ter parado de escrever aqui, e um deles é falta de
tempo, porque eu tenho escrito muitas coisas para trabalho, então quando consigo
um momento de folga, prefiro descansar fazendo outras coisas. Mas agora eu
tenho uma história legal para contar e estou tentando colocar ela aqui. Então, pela
última vez: alguém tem algo mais para falar?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Não?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ninguém?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Posso contar a história?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ótimo. Então vamos lá.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aconteceu um dia desses, quando fomos buscar a chave do
apartamento novo. Chegamos na imobiliária por volta das 17 horas. É uma
imobiliária pequena, então é apenas uma casa com um plaquinha na frente, sem
estacionamento ou aquele entra-e-sai de clientes, motoboys e corretores. Toquei
a campainha e encharquei a mão com álcool em gel.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A recepcionista abriu a porta e eu entrei. Avisei que estava
ali para pegar uma chave e dei o endereço do apartamento. Ela começou a
procurar dentro das gavetas. Tudo parecia normal até ela erguer os olhos na
minha direção e decidir que seria bacana estraçalhar com as leis da Física.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Se você tivesse chegado cinco minutos atrás, não
encontraria ninguém aqui.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Certo. O que essa informação faz você pensar? Que cinco
minutos antes não havia ninguém na imobiliária, certo? Bem, foi isso mesmo que
eu pensei. Aliás, eu não só pensei como falei em voz alta.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Ah, então, você acabou de chegar aqui?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Não. Eu quis dizer que já estava indo embora”, ela
respondeu, ainda procurando pela chave.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Fiquei em silêncio pensando no que ela havia dito. Repassei
a frase inteira na minha cabeça, palavra por palavra, tentando encontrar o sentido
daquilo e falhei miseravelmente.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Olha”, eu disse, “mas eu só não encontraria ninguém aqui se
você não estivesse aqui cinco minutos atrás”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sim, você deu sorte”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas meu ponto é que você estava aqui cinco minutos atrás,
certo?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sim.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Então você concorda”, eu disse, tentando parecer o mais
claro possível, “que se eu tivesse chegado cinco minutos atrás, eu teria
encontrado você aqui?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas eu já estava me preparando para ir embora.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Tentei respirar fundo, mas a máscara me atrapalhou um pouco.
Paciência, faz parte. Apoiei as mãos no balcão, fazendo uma nota mental de
passar álcool em gel depois, e tentei me fazer claro.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Olha, o que importa para a gente é que você estava aqui
cinco minutos atrás. Você estava neste espaço neste tempo determinado. Se eu
aparecesse neste mesmo espaço ao mesmo tempo, eu teria encontrado você”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas eu iria embora daqui a cinco minutos. Você deu sorte”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“ISSO NÃO É SORTE! Desculpe, às vezes eu grito mas é porque
a máscara me atrapalha. Juro. Então, isso não é sorte. É Física. O tempo é uma
seta. Você não consegue mexer o passado. O fato de você decidir que vai embora
daqui a cinco minutos não significa que você não estava mais aqui cinco minutos
atrás.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“É que tem dias que a gente fecha mais cedo”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Foi quando eu comecei a perceber que o tempo naquela imobiliária
não funciona direito. Todo o espaço-tempo ali é distorcido por causa das
atração gravitacional de um buraco negro, cuja singularidade é a vontade
infinita da recepcionista de ir embora mais cedo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aparentemente, sua vontade de ir embora do trabalho causa um
rombo no espaço-tempo: a sua vontade de ir embora do trabalho é tão grande que
faz com que ela nunca esteja realmente no trabalho. É quase a Teoria da Relatividade
aplicada a funcionários públicos. Ou isso, ou eu estava em alguma espécie de
spin-off de Dark e vai saber se aquela recepcionista não é minha filha que
ainda não foi concebida.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu tomei fôlego e me preparei para pedir a ela um papel e
uma caneta para traçar uma seta e explicar como o tempo funciona, mas ela me
interrompeu.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Olha, a chave não está aqui. Está com o porteiro do prédio.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E isso era verdade. Quer dizer, eu sabia que o porteiro tinha
uma chave, mas não fazia ideia se a imobiliária estava com outra cópia. Além
disso, eu precisava assinar o recibo de entrega das chaves, então eu teria que
ir para a imobiliária de qualquer maneira. Mas mesmo se eu tivesse perdido a
viagem, sem pegar chave nem ter nada para assinar, a mudança de assunto foi mais
que bem vinda.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Certo. Então eu pego com ele”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Você pode assinar o recibo? Que diz que a chave foi
entregue?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Claro”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ela colocou dois papeis na minha frente. Na verdade, eram duas
cópias do mesmo papel. Tudo o que eu precisava fazer era assinar e deixar aquela
falha no espaço-tempo para trás.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Eu preciso que você assine todas as vias. Uma é nossa,
outra é sua e outra precisa ser entregue para a síndica.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Como?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Uma é nossa, outra é sua e outra da síndica.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Eu olhei para as folhas, para a recepcionista e de volta
para as folhas. Comecei a me sentir como se participasse de alguma dinâmica
de grupo para poder visitar um universo paralelo. Primeiro, eu havia tomado pau
em Física porque o tempo não funciona como imaginei; agora, era hora de tomar
pau em História, tentando decifrar o enigma de uma pequena Esfinge Imobiliária.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas tem só dois papeis aqui”, respondi.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sim. Uma via fica aqui, outra vai para a síndica e a
terceira é sua.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Exato. Eu, você e a síndica. Somos três. Mas tem só dois
papeis aqui”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“É que é uma cópia para cada um”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Respirei fundo de novo e quase engasguei com a máscara.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Olha, eu juro que estou tentando jogar de acordo com as
suas regras. O problema é que parece que a situação aqui não tem regras e elas,
mesmo não existindo, mudam o tempo inteiro”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Quer uma caneta?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Sinceramente? Não sei.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Mas você precisa assinar.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Eu não estou discutindo isso. O meu problema é que o que
você falou não faz o menor sentido. Aliás, nada do que você disse desde que eu
cheguei aqui faz qualquer tipo de sentido”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Uma via fica aqui, outra vai para a síndica e a terceira é
sua.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“EU SEI DISSO! Desculpe, é a máscara de novo. Olha, faz o seguinte,
me dá a caneta. Pronto. Onde eu assino?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Aqui”, ela apontou um papel, e “aqui”, disse, apontando a folha
de baixo.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Certo”, respondi assinando. “Isso é uma via”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Isso”, ela falou. “A outra você leva”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“E a da síndica?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“É a sua.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Você sabe que eu e a síndica não somos a mesma pessoa,
certo? Que neste universo, onde o tempo funciona como uma seta, duas pessoas
não podem ser a mesma pessoa. Você consegue enxergar isso?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Como assim?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Nada. Esquece. Eu... Eu estava pensando em outra coisa.
Olha, eu estou com um pouco de pressa, só preciso levar esses papeis, certo?”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“Isso.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Agradeci e fui embora. Só quando olhei papéis na calçada eu descobri
o que havia acontecido. Eu assinei a folha A e a folha B; a segunda via tinha
uma cópia da folha A (para mim), e uma da folha B (para a síndica). Ou seja,
não era exatamente o que ela falou. Aliás, era bem diferente do que ela falou.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Olhei para trás e pensei em entrar na imobiliária novamente
para explicar isso. Mas mudei de ideia, afinal, haviam se passado trinta
segundos e a recepcionista já poderia ter ido embora. Ou talvez ela tivesse
acabado de chegar. Ou talvez ela nunca tenha estado ali e, ao mesmo tempo,
esteja sempre ali. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Bem, eu é que não ia ficar mais ali, esperando alguma
criatura de outra dimensão aparecer no portão perguntando se eu vim pegar as
chaves e que está há horas me esperando.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Encharquei minhas mãos com álcool em gel e fui embora. <o:p></o:p></p><br /><p></p>Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com17tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-59759837092441536242020-02-11T17:59:00.001-03:002020-02-11T17:59:56.542-03:00Invocação do Mal<div style="text-align: right;">
<i>The devil went down to Georgia</i></div>
<div style="text-align: right;">
<i>He was lookin' for a soul to steal</i><br />(Charlie Daniels Band)</div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Outro dia fomos até o Mercadão do Ipiranga.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aliás, quando eu era moleque, sempre que ouvia a expressão “Mercadão” acreditava que se tratava de algo meio medieval. Imaginava centenas de barracas, com vendedores depenando galinhas vivas, rancheiros transportando pequenos rebanhos de gado, pessoas trocando mulas por barris de cerveja, gente espirrando por causa do coronavírus, artesãos sentados na lama almoçando cebolas cruas, coisas assim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por isso, a primeira vez que fui em um Mercadão fiquei surpreso ao ver lojas com produtos refrigerados, algumas até mesmo com vitrines... No geral, o Mercadão era uma mistura de feira com supermercado. Era uma espécie de shopping center de comida, até mesmo com praça de alimentação repleta de pessoas comendo sanduíches, pizzas e comidas típicas. Tudo muito moderno, sem lama ou pessoas abrindo caminho para os soldados do rei.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas o Mercadão do Ipiranga é um pouco diferente. Ele segue o modelo dos outros mercadões, mas está preso em uma espécie de limbo onde o tempo não funciona de forma como estamos acostumados.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Algumas de suas barracas, por exemplo, estão no futuro, vendendo coisas como uva em pó, melancia desidratada e kiwi pulverizado. É quase uma barraca de comidas típicas da NASA. Outros, porém, ainda estão no passado, e tem como principal clientela bruxas que precisam repor seus estoques de pelos de tarântula, extrato de morcego, penas de pássaros tropicais ou osso de serpente em pó.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
É uma espécie de encruzilhada temporal, onde não existe futuro e passado. Tudo é agora. Tudo nunca aconteceu. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo eternamente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas essa não é uma história de ficção científica, e sim de terror. Porque no meio disso estávamos eu, a Esposa e Filipino.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A Esposa queria comprar ingredientes para fazer pães e eu fui como companhia. O problema é que, enquanto fazia compras, Filipino no meu colo, queria olhar tudo de perto – e, quando digo “olhar de perto”, quero dizer “olhar com as mãos”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Assim, ele apertava embalagens de asas de libélula, derrubava ossos abençoados dos dedos de São Raimundo, espremia frutas cristalizadas refinadas no planeta Satabe III... A hora que ele começou a se debater no meu colo querendo tocar numa bola branca que eu não consegui identificar se era animal, vegetal ou mineral, desisti.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu vou dar uma volta com ele”, disse para a Esposa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Tá bom, eu já estou pagando aqui”, ela devolveu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Assim, saí andando com Filipino no colo, olhando outras barracas, tomando cuidado para nenhuma mercadoria – fosse ela terrestre ou não – ficasse ao seu alcance. O problema é que havia mercadorias por todo lado, então a caminhada foi difícil. Porém, tive um golpe de sorte quando descobri que, em meio a todas aquelas mercadorias estranhas que fazem passado e futuro se fundir, existia uma área infantil.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Tratava-se de uma casa azul de brinquedo, grande o suficiente para Filipino andar dentro dela. Na porta, brinquedos como cavalinhos, centopeias e larvas de Ceti Alpha V. Pela aparência dos brinquedos, alguns deles deviam ter ouvido em primeira mão o brado retumbante de um povo heroico nas margens plácidas do Ipiranga. Aliás, quando o Sol da liberdade brilhou em raios fúlgidos no céu da pátria, alguns já deviam ser velhos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Filipino, porém, foi direto para a casinha e eu fui atrás dele. Quando chegamos perto da porta, percebi que, dentro da casa, havia uma pequena mesa e alguns banquinhos para crianças.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E ele estava ali.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estava sentado de costas para a porta, observando atentamente a parede à frente, sem dar a menor atenção ao movimento do mercado. Pelo seu tamanho, parecia ser uma criança, mas... Havia algo de errado em sua postura. Ele se sentava de forma rígida, mas ao mesmo tempo, parecia escorrer pela cadeira. Filipino parou e eu também. Estreitei os olhos para entender melhor como ele conseguia se sentar daquele modo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi nessa hora que ele virou a cabeça e olhou diretamente para mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Seu rosto era quase igual ao <a href="https://youtu.be/gsC4kf6x_Q0?t=154" target="_blank">menino do duelo de banjos</a>, mas com toques de<a href="https://brewminate.com/wp-content/uploads/2018/11/111418-24-History-Poverty-Victorian-England-London.jpg" target="_blank"> trombadinha da Londres vitoriana</a>.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="EN-US">Em algum lugar do meu cérebro, meus neurônios começaram a entoar a frase “for the devil sends the Beast with wrath, because ke knows the time is short”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aqui vale a pena explicar que meu cérebro funciona em quatro áreas diferentes: os neurônios de uma parte estão constantemente em um show de rock, outros ficam assistindo a Star Trek repetidamente, um terceiro grupo está sempre escrevendo, enquanto a última parte fica encarregada de me manter vivo e responder alguma coisa quando falam comigo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Então, numa situação normal, a frase teria vindo dos meus neurônios que vivem num show de rock. Mas não. O som vinha da área responsável por me manter vivo. Não era um show do Iron Maiden, mas sim meu instinto de sobrevivência.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E o aviso não era exagero. A criatura olhou diretamente para Filipino e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, seus olhos se tornaram completamente brancos. Suas pupilas desapareceram como se nunca tivessem existido, enquanto ele continuava encarando meu filho com aqueles olhos vazios e sem vida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As luzes do mercado se tornaram vermelhas e começaram a piscar. Senti um vento quente, como se alguém tivesse aberto a porta de uma caldeira. As paredes do mercado começaram a derreter, e, ao redor de toda a área infantil, um fosso se abriu revelando almas queimando em agonia por toda a eternidade.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Filipino, vamos brincar em outro lugar?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Filipino, porém, parecia hipnotizado, como se sua mente estivesse sendo controlada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“O papai acha que esse menino não é um menino”, eu insisti.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Filipino continuou estático. Assim, tive que me abaixar ao seu lado e forçá-lo a olhar para mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ele está aqui para se alimentar da sua alma! Escuta o papai! Vamos embora!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu tom de voz fez Filipino acordar do transe. Olhei ao redor estudando as saídas do mercado, me preparando para correr por uma delas explicando que “já é muito tarde para a mamãe, mas nós podemos escapar”. Mas não havia por onde sair.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Em uma das portas, Al Pacino gargalhava fazendo água benta ferver com o dedo. Em outra, Robert De Niro comia um ovo olhando diretamente para nós. Perto da terceira saída, uma mulher com roupa de babá gritava “It’s all for you, Damien”, enquanto se preparava para se atirar do teto da barraca de peixes com uma corda no pescoço”. E na porta à nossa direita, a mais perto de onde estávamos, estava bloqueada pelos vizinhos de Rosemary que, com um carrinho de bebê todo negro, me prometiam sucesso em troca do meu filho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E a criatura continuava com seus olhos brancos, tentando arrancar a essência vital de Filipino. Eu não tinha como escapar, mas precisava proteger meu filho. Assim, ainda agachado, olhei diretamente para ele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Filipino, está vendo aquela barraca de peixes ali?”, eu apontei para a barraca. “Do lado direito, tem uma bandeja cheia de bacalhau salgado. Corre até ali, apanha todo o sal que você conseguir e faz um círculo no chão ao seu redor. Espera a mamãe ali, mas não sai do círculo de sal. Entendeu?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu ainda estava olhando para Filipino quando ouvi uma atrás de mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“É impressão minha ou esse menino é um demônio?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Era a Esposa. Pelo menos, eu não estava mais sozinho. Isso facilitava tudo. Peguei Filipino e o coloquei no colo da Esposa. Me virei para a criatura, que ainda me olhava para nós com raiva, e me preparei para me atirar dentro da casa, gritando que “o sangue de Cristo tem poder” e ganhar tempo para minha família fugir. Mas não foi preciso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“LEGIÃO! PARA COM ISSO!”, alguém gritou atrás de nós.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Era a mãe do demônio, que de repente percebeu o que estava acontecendo. Os olhos da criatura voltaram ao normal. Ainda estavam com raiva, mas pelo menos estavam com pupilas. O fosso se fechou, as paredes pararam de derreter e as luzes do mercado voltarem ao normal.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“EU JÁ FALEI PARA VOCÊ NÃO FAZER ISSO COM O OLHO”, ela insistiu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu não sei se Legão não podia capturar nenhuma alma naquele dia porque estava de castigo, ou se não podia comer alma nenhuma porque já havia almoçado um pastel na barraca ao lado. Mas não me importei. Fomos andando para trás, lentamente, tentando ganhar distância.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando conseguimos nos afastar, demos meia volta e fomos embora, ainda ouvindo a mãe reclamar alguma coisa sobre Legião ter que conversar com o pai dele sobre isso. imaginei como seria o pai de Legião e senti um arrepio. E o arrepio só passou quando estávamos longe do mercado, sentados num restaurante para almoçar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por via das dúvidas, numa mesa abaixo de um crucifixo.<o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-62644194484862276942020-02-04T00:34:00.000-03:002020-02-04T00:36:20.896-03:00A Roda de Tear<br />
<div class="MsoNormal">
Faz algumas semanas que eu sonhei com um texto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na verdade, não era um texto. Era um texto que eu precisava
fazer. Não lembro o motivo, não lembro o prazo, não lembro nada direito. Lembro
apenas que o texto não era para mim, então eu presumo que seja algum freela.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
(O que me leva a pensar que, como o sonho era meu, ao menos espero
que <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>o freela fosse render uma grana
preta).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enfim, eu lembro que o texto era sobre um garoto oriental.
Na verdade, eu precisava contar a vida dele. Ou melhor, imaginar sua vida,
porque ele não existia. Sim, era um freela para escrever ficção.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Lembro que eu fiquei preocupado porque não fazia ideia de
que história eu iria contar. Tudo o que eu sabia era que precisava sair do zero
inventar toda a vida desse garoto, sem fazer ideia do que ele queria ou de onde
essa história chegaria.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
No meu sonho, eu andava pela rua – acho que era pela rua – pensando
o que eu poderia fazer, porque a pior coisa do mundo para quem escreve é ter
que escrever uma história que você não conhece. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aí comecei a roubar e pensei na namorada dele. Eu faço isso
muito isso. Quando eu preciso escrever um texto e não encontro o texto em lugr
algum, eu escrevo algo relacionado ao texto. É uma maneira de olhar o texto sem
deixar o texto perceber isso. Lembra quando você era adolescente e olhava para
a garota por quem era apaixonado, torcendo para ela não virar a cabeça e
perceber que você estava olhando para ela como um psicopata que tem uma foto
dela num altar repleto de velas escondido no porão escuro da sua casa? Bem, eu
faço isso o tempo todo com textos que não consigo escrever.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E foi o que fiz com o texto do garoto oriental. Como eu não
conseguia imaginar o garoto, disfarcei minha incompetência pensando na namorada
dele. Afinal, eu queria que meu garoto oriental tivesse uma namorada. E eu
sabia que ela não podia apenas ser sua namorada, mas sim um personagem que
tivesse vida própria e quisesse... Quisesse...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não. Não deu certo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pensar na namorada do garoto não me ajudou em nada, porque
eu também não sabia o que ela queria. Aliás, isso apenas piorou a situação.
Antes eu tinha que lidar com o fato de que não sabia nada com o garoto, mas agora
eu também precisava fazer o mesmo a respeito da imbecil da sua namorada.
Basicamente, eu não sabia qual era a meta e resolvi dobrar a meta por causa
disso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas de repente uma roda de tear apareceu na minha cabeça.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sabe? Roda de tear? Ou roda de fiar, dependendo de onde você
nasceu? Aquele negócio que as pessoas usam para transformar tecidos em fios? Bem,
a imagem disso surgiu na minha cabeça sem nenhum aviso. Ela estava funcionando
e sua roda girava, com o tecido sendo trabalhado ali.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E de repente eu percebi que aquela era a roda de tear do avô
do garoto, que havia imigrado para o Brasil décadas atrás. E até hoje ele havia
se sustentado trabalhando<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>com isso,
sempre fiando, de manhã até à noite, durante anos. Foi assim que ele conseguiu
comprar uma casinha de dois quartos num bairro afastado, foi assim que ele
conseguiu sustentar a esposa e o filho, foi assim que ele superou a dor da
morte da esposa, e é assim que ele sustentou o neto, que foi criado por ele
após seu filho e a nora partirem para outro país para tentar uma vida melhor
antes de buscar o menino, coisa que nunca aconteceu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu não vi uma roda de tear. Eu vi o texto inteiro. Ou
melhor, eu vi a vida inteira do menino. Toda a forma que ele foi criado pelo
seu avô, a forma que ele começou a entender o tamanho do esforço que o avô
fazia para que ele tivesse uma boa educação e fosse feliz, e como ele passou a
vida inteira sonhando em casar e criar uma família para ensinar ao seu filho
tudo o que havia aprendido com o avô.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, claro, para ser feliz. Não apenas porque todo mundo quer
ser feliz, mas sim porque ele saberia que nada deixaria seu avô mais feliz que
sua própria felicidade.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Lembra quando você era adolescente e olhava para a garota
por quem era apaixonado, torcendo para ela não virar a cabeça? Bem, nesse caso,
a garota olhou para mim e sorriu. E eu me senti a melhor pessoa do mundo,
porque tive uma sensação que não experimentava há anos: o prazer de ver um
texto se escrever sozinho na minha frente, como por um passe de mágica.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Desde o minuto que acordei, desde o dia em que tive esse
sonho, essa sensação me persegue. Talvez seja a maneira que minha mente
encontrou de me mostrar o quanto essa sensação é boa. Ou, melhor ainda, talvez
seja a forma que ela encontrou de me mostrar que eu não preciso sonhar para
isso acontecer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sim. É isso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mensagem recebida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Hora de voltar a escrever (também) para mim. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sim. Acho que voltei.<o:p></o:p></div>
<br />Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com13tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-76967012021714495822019-07-31T00:49:00.002-03:002019-07-31T00:49:46.787-03:00Proteção<br />
<div class="MsoNormal">
De uns tempos para cá, venho sentindo vontade de voltar a
ser criança. Normalmente acontece quando estou fazendo algo que me deixa confortável.
E é uma sensação que sempre chega sem avisar. Estou lendo está um momento
interessante do livro ou um diálogo num filme qualquer e de repente sinto uma
espécie de coceira, mais gostosa que incômoda, que parece não ter lugar
específico.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas, para ser sincero, não é algo que experimento o tempo
inteiro. Na verdade, acontece com pouca frequência. Porém, sempre preciso para
o que estou fazendo e dar atenção para ela.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Já descobri que não adianta procurar de qual lugar do meu
corpo vem essa sensação. Uma vez tive certeza que era no lado esquerdo, pouco
acima da cintura, mas assim que prestei atenção nesse local ela se assustou e
partiu como uma folha levada rua abaixo pelo vento.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por isso, comecei a prestar atenção nessa pequena coceira
com o canto dos olhos, sem que ela perceba que está sendo estudada. Finjo que
continuo concentrado no livro ou que presto atenção na conversa na televisão, enquanto
tento entender o que essa sensação quer comigo. Na primeira vez que fiz isso,
não enxerguei muita coisa, mas na segunda consegui identificar que, junto com a
coceira, alguns sentimentos haviam escapado de algum lugar da minha memória e
surgiram em forma de palavras, dançando como insetos ao redor de uma lâmpada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu não sou bom com palavras como gostaria de ser, então agarrei
num gesto rápido a primeira palavra que passou na minha frente. Abri a mão com
cuidado para que ela não escapasse e lá estava ela.<o:p></o:p></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
Proteção.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não era uma proteção qualquer, mas uma proteção de criança.
Uma proteção de quem está brincando no tapete da sala sem horário ou
compromissos, sabendo que é vigiado pela mãe, que observa atenta da porta da
cozinha. Ou de quem passa o dia com a certeza que o pai atravessará a porta em
algum momento antes do jantar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pode ser também uma proteção ainda mais elaborada, experimentada
por uma criança que descobriu que os dias seguem uma espécie de padrão no qual nada
de errado acontece – deixando de lado um eventual tombo na cozinha. Quando
ficamos mais velhos, uma sensação como essa pode causar tédio, mas isso não
acontece em uma criança que, mesmo sem fazer ideia disso, tem todo o tempo do
mundo pela frente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Fechei a mão com cuidado e senti a proteção se debatendo
dentro dela. O til, o risco do t e até mesmo a cedilha se moviam
freneticamente, raspando minha pele mas sem machucar. Me senti um pouco cruel
por fazer com que justamente a palavra proteção pudesse se sentir tão
desprotegida e cheguei a pensar em aproximar minha mão dos lábios e sussurrar
uma palavra de conforto. Palavras de conforto sempre trazem segurança.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas mudei de ideia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Me levantei do sofá com cuidado para não assustá-la ainda
mais e caminhei em direção à escada. Subi contando mentalmente os degraus – eu sei
que são quinze, mas conto todos assim mesmo, talvez em busca de um pouco de
proteção ao ver que todos estão ali – e no andar de cima, caminhei calmamente
até o berço.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu filho dormia. Enrolado em um cobertor com apenas um dos
pés descoberto, sua cabeça estava virada para o lado. Tive a certeza de que ele
estava sonhando, apesar de nada me mostrar isso, e tentei adivinhar sobre o que
seria o sonho. Estava imaginando algo que parecia ele correndo desajeitado em
um enorme gramado com muitas árvores ao fundo. Tudo acontecia numa manhã ensolarada
– na minha cabeça, não era uma manhã comum, mas sim uma manhã de sábado – e ele
ria a cada metro percorrido. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O sonho do meu filho desapareceu da minha cabeça quando a
palavra voltou a se debater dentro da minha mão, descobrindo que, com certo
esforço e um pouco de sorte, poderia escapar por entre meus dedos. Assim, me
debrucei e aproximei a mão do rosto do meu filho, abrindo os dedos lentamente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A palavra não saiu voando. Ela olhou ao redor, girando suas
letras para todos os lados. Devia estar pensando sobre como havia chegado até
ali. E, quando observou meu filho, deslizou rapidamente por entre meus dedos,
encostando com cuidado no travesseiro. Primeiro a letra “o”, depois o “ã” até
finalmente o P. E, como um cachorrinho, a proteção deu três voltas ao redor de
si mesma antes de deitar virada de frente para meu filho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Observei os dois por mais alguns instantes, até dar meia
volta e sair do quarto com cuidado para não acordá-lo ou não assustar a
palavra. E, quando estava no meio da escada, pude ouvir ele rindo. Ele faz isso
às vezes. Gargalha enquanto dorme, talvez para mostrar ao mundo que está
sonhando. Correr naquele gramado ensolarado deve ser uma experiência fascinante.
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Voltei para sala descobrindo que a coceira havia dado lugar à
certeza de que a palavra proteção ficaria com meu filho pelo resto da noite.
Talvez, no dia seguinte, quando ele acordar ela ainda esteja lá. E ele passará
o dia com ela, explicando para sua nova amiga qual a sensação de correr no
gramado e brincando com a palavra em seus dedinhos, enquanto investiga a forma
de cada letra. Completamente protegido.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, ao saber que a palavra estava lá, me senti seguro, quase como se fosse uma criança.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Me senti protegido.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E voltei a ler mais um pouco do meu livro.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<br />Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-29765913714758129202019-07-27T22:21:00.001-03:002019-07-27T22:23:53.451-03:00O Monólogo que se Tornou Diálogo<br />
<div class="MsoNormal">
– Olha, Felipe! Um ônibus!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ali! Ele é todo amarelo!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Viu? Que grande! Dá tchau para o ônibus!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tchau, ônibus!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hunf.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Quer ir para o chão?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Anda do lado do papai.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Vamos, Felipe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe? Vamos?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Larga esse pauzinho. Vamos passear.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tá bom. Vamos levar o pauzinho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Agora, vamos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe? O que você está fazendo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O pauzinho não é uma colher, Felipe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Isso. É só um pauzinho. Não dá para comer com ele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tá bom. Vamos passear? Vem com o papai.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não, Felipe. Para o outro lado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Isso. Junto com o papai.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Devagar, Felipe. Você vai tropeçar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe, ou corre ou usa o pauzinho como colher. Os dois
não dá.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Aliás, você podia escolher nenhum dos dois. Nem correr, nem
se alimentar com o pauzinho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– AH! AH!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olha! Outro ônibus! Esse é verde!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tchau, ônibus verde! <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe, pra esse lado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– É só um portão.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim, está cheio de carros lá dentro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olha, aquele carro! Que grande!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tchau, carro grande.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Vamos?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tchau, carro grande. Tchau! Pronto, Felipe. Vamos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Dadá!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Agora o carro vai nanar, Felipe. Vamos?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah-ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Para esse lado, Felipe. Junto com o papai.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Felipe, onde você arrumou essa folha?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olha, Felipe! É a mamãe!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Adê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ali! A mamãe chegou!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– AH! AH!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Oi, mamãe!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Larga a folha, Felipe, e dá oi pra mamãe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hmmmmmmmmm...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O que vocês estavam fazendo?</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Conversando.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<br />Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-15509335914983781612019-07-02T15:57:00.001-03:002019-07-02T16:04:04.535-03:00Roupa Nova<br />
<div class="MsoNormal">
Eis o homem do século 21.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eis o homem do século 21 saindo de casa para o trabalho. Ele
ganha o mundo a cada passo. Enquanto espera o ônibus, está acompanhando
notícias, confirmando a reunião da tarde, esboçando um projeto e fazendo sinal
para o ônibus.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eis o homem do século 21 afundando o pé em um monte de merda na
calçada enquanto caminhava rumo ao ônibus.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eis-me aqui de volta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu poderia escrever parágrafos e parágrafos sobre minha ausência
aqui. Também poderia escrever muito sobre meu retorno.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Talvez eu faça isso depois, porque neste momento eu estou um
pouco ocupado a) tentando esconder das outras pessoas que estou com o tênis
coberto de merda; b) constatando que até a barra da calça ficou suja de merda;
c) fazendo cara de paisagem para tentar convencer as pessoas do ônibus fedendo a esterco é
a coisa mais normal do mundo e que isso não tem nada a ver comigo e sim com a
situação do transporte público de São Paulo; d) pensando em talvez subverter as
regras do jogo e reclamar em alto e bom som de que o ônibus está cheirando à
merda e torcer para que, no tumulto, ninguém olhe para meu pé, mas 3) mudando
de ideia e decidindo que é melhor ficar em silêncio e contar com a sorte.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, claro, f) dando graças a Deus que não estou carregando um
pacote de fraldas do meu filho para as pessoas não somarem A + B e chegarem à conclusão
que eu tenho problemas mentais.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi assim, com cara de paisagem, que procurei um lugar vazio
no ônibus para me sentar. No caminho, fui arrastando o pé e fingindo que estou
com a perna machucada, para tentar tirar o excesso de coliformes do tênis. Modéstia
à parte, fiz isso com um profissionalismo invejável, sem transparecer por um
momento o medo de deixar um rastro marrom no chão do ônibus ao fazer isso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
(Mas claro que na minha cabeça o ônibus inteiro estava
olhando para mim e eu já estava cercado de moscas).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Finalmente consegui me sentar num banco vazio, sem ninguém
ao lado. Hora de tentar limpar o estrago um pouco. E não seria uma tarefa
difícil. Tudo o que eu precisava era um tanque com uma torneira funcionando, um
esponja e um pouco de sabão. Ah sim, luvas. Luvas seriam essenciais.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Bem, abri a mochila e encontrei meu tablet, duas canetas –
uma que eu havia perdido há dois meses e outra que nunca vi na vida – uma caixa
vazia de remédios para enxaqueca e meia dúzia de moedas. Bem, minhas opções não
eram muitas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Talvez eu pudesse acessar a internet pelo tablet e descobrir
como tirar merda da calça com canetas? Ou eu podia levantar, pedir desculpas por
atrapalhar a viagem de todos e dizer que não estou aqui vendendo nada, mas comprando,
porque tenho 85 centavos e preciso de uma esponja com água e sabão, será que alguém
pode me ajudar e podia ser pior porque eu podia estar roubando?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não. Nada ia dar certo. Se eu fosse o personagem principal
de MacGyver, a série teria sido cancelada no primeiro episódio. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas foi quando a sorte resolveu me mostrar algo que eu não
havia visto. Revirando a mochila, a caixa de remédios tombou e, de dentro dela,
caiu sua bula.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Oito pequenas páginas de papel. Era tudo o que eu tinha. Era
com isso que eu teria que me virar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Cruzei a perna tomando cuidado para não raspar o tênis na
outra perna – quem me conhece sabe que esse é o tipo de situação que eu poderia
raspar o tênis na testa – e comecei a operação limpeza. Rasga um papel, esfrega
aqui, rasga outro papel, limpa aqui, rasga mais um papel...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E a calça não limpa de jeito nenhum. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Joguei os papeis fora no cesto de lixo do ônibus – o ônibus
devia ser novo, porque ele ainda não estava quebrado – e comecei a executar o
plano B, que consistia em arrumar desculpas para usar pelo resto do dia sobre
eu ter uma mancha de merda na barra da calça.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Para matar a saudade, vamos resumir todas elas no <b>Top 5
Motivos para a Barra da Minha Calça Estar Suja de Merda:</b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="text-indent: -18pt;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 0px;">
<span style="text-indent: -18pt;"><b>1. </b>“Na verdade, não é merda, é lama. Cheiro? Cheiro
de quê? Não, não estou sentindo nada.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 0px;">
<b style="text-indent: -18pt;">2.</b><span style="text-indent: -18pt;">“Olha, eu estou fazendo um curso de ioga e
acabei perdendo uma aposta com meus colegas, então...”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 0px;">
<b style="text-indent: -18pt;">3.</b><span style="text-indent: -18pt;"> “Não conta para ninguém, mas eu estou com um
saco de cocaína amarrado na perna, então esfrego merda na calça para confundir
os cachorros da polícia.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 0px;">
<b style="text-indent: -18pt;">4. </b><span style="text-indent: -18pt;">“Não, não a calça é assim mesmo. É um modelo novo que brinca
com cores e tendências.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-indent: 0px;">
<span style="text-indent: -18pt;"><span style="font-stretch: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; line-height: normal;"><b>5. </b></span><span style="font-size: 7pt; font-stretch: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal; line-height: normal;"> </span></span><span style="text-indent: -18pt;">“I’m sorry, I don’t speak portuguese”.</span></div>
<div class="MsoListParagraphCxSpLast" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Certo, era um mais ridículo que o outro. Nenhum ia colar.
Olhei para o tênis com merda, o tênis com merda olhou para mim, deu uma
cotovelada na calça com merda e ambos começaram a rir de mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Hora de ir para o Plano C.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Peguei o celular e mandei uma mensagem para a Esposa,
dizendo que ia passar no shopping e comprar uma calça. Claro, contei também toda
a história antes porque avisar a esposa que você precisa comprar uma calça meia
hora depois de sair de casa é o tipo de coisa que pode arruinar um casamento.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas mandar a mensagem era essencial porque eu não entendo
muito de calças. Sim, eu sei o que elas são, para o que servem e como eu coloco
no corpo, mas nada muito além disso. Ah, eu também sei a diferença entre uma calça
jeans e uma de moletom, e que devia existir uma lei proibindo a fabricação de
calças sem bolso. Mas, fora isso, nada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Assim, peguei umas coordenadas com a esposa. Aliás, vocês
sabiam que eu uso calça 40? Eu não sabia também, descobri isso hoje. Peguei
dicas de loja (sempre lembrando ela de que “eu estou com a perna cheia de
merda, precisa ser uma loja em que eu não precise falar com ninguém). Mas eis
que chega a seguinte mensagem.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Pega calça reta”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não são todas retas?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Com a perna reta”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Sim, eu já estava pensando na perna. A bunda eu sei que é
redonda, mas pra mim todas as calças são retas. O conceito da calça é esse”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não pega skinny porque é aquela que afina na perna”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ah, a calça de hipster. Então aquilo tem nome.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Essa informação é importante, porque calças skinny... Bem,
eu não sou exatamente magro e minhas pernas são finas, então uma calça
dessas... Bem, digamos que basta eu pintar uma calça skinny de laranja e
pronto: minha fantasia de coxinha está pronta para o carnaval.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Assim, entrei na primeira Riachuelo que apareceu na minha
frente, tendo apenas duas informações: “reta” e “40”. Só que assim que entrei
na loja descobri que eu tinha um problema um pouco mais imediato: como achar a
calça de homem?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Lembram que eu disse que não entendo muito de calças. Para
mim, a melhor maneira de descobrir se uma calça jeans é masculina ou feminina é
observando a placa na parede de loja. Se está escrito “seção masculina”, eu
consigo concluir que aquelas roupas são as que eu preciso. Assim, entrei na loja
e comecei a rodar pelos corredores, tomando o cuidado para não me aproximar das
outras pessoas porque, na minha cabeça, até mesmo os seguranças do shopping já
estavam procurando descobrir quem é o cliente do shopping que está fedendo a
merda e precisamos expulsar essa pessoa daqui.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Depois de bancar o Pac-Man desviando dos fantasmas pela loja
inteira, achei a seção masculina e fui atrás da tal calça reta e encontrei... Uma.
Busquei meu tamanho e pronto. Calça 40. Tudo resolvido. The shit days are over.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ou não.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Até eu que não entendo nada de calça podia enxergar que o
negócio era horrível – a calça praticamente pedia para ser usada com um
barbante no lugar do cinto, tudo combinando com um furo logo embaixo da inscrição
“Maluf 86”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Bom, entre comprar um calça dessas e uma skinny, minha única
saída era ir em outra loja. E era isso que eu estava quase fazendo quando vi outro
modelo de calças chamado slim. Lembrei do cantor de blues Magic Slim e fui
olhar a calça, constatando que ela estava entre reta e a de hipster. Apanhei
uma e fui para o provador.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não deu outra. Cinco minutos depois, estava pagando a calça.
Ou melhor, tentando pagar.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Qual a forma de pagamento?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Débito.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- O senhor não quer fazer o cartão da loja?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Eu já tenho o cartão da loja, mas quero fazer no débito.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- No cartão da loja o senhor pode parcelar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Olha, eu realmente estou com pressa. É débito.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- E jogar o primeiro pagamento para a Copa do Mundo de 2022.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Você não está sentindo um cheiro estranho?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Não senhor.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Tem certeza? Está um cheiro de... Não sei. Está um cheiro
ruim aqui.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Agora que o senhor falou... Parece cheiro de...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Enfim, é débito.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Minutos depois, eu estava no banheiro do shopping, usando o
isqueiro para arrancar as etiquetas da calça nova antes de vesti-la. E como não
achei um incinerador nem um depósito de lixo radioativo para jogar a calça antiga,
fui obrigado a jogá-la dentro da sacola, amarrar bem e enfiar na mochila, antes
de sair do shopping e procurar um gramado para limpar o resto do tênis.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, enquanto pensava se seria melhor jogar a sacola com a
calça cagada no Rio Tietê ou se valia a pena cortar as pernas do joelho para
baixo e transformá-la numa bermuda, percebi que aquela manhã tinha rendido uma
história boa.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Respirei fundo. Será que eu ainda sei escrever coisas assim?</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<br />Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-24114075599002428082018-11-20T23:02:00.004-02:002018-11-20T23:02:34.528-02:00Enquanto Você Dorme...<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgESYi7uVNJyfOMK-ffvVFp0WI5HwqRA8loy2DE_6rQbOnAKL90A7uZ2K_PQdbrJZHBLO59uVMd7T8D0lqXPAQy2NqauLxsO72Muh1rQQhdAAaHc5v4NSaVG8aJsfUYDQ62twbk/s1600/felipe+sono.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1032" data-original-width="774" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgESYi7uVNJyfOMK-ffvVFp0WI5HwqRA8loy2DE_6rQbOnAKL90A7uZ2K_PQdbrJZHBLO59uVMd7T8D0lqXPAQy2NqauLxsO72Muh1rQQhdAAaHc5v4NSaVG8aJsfUYDQ62twbk/s320/felipe+sono.jpg" width="240" /></a></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E quando você fecha os olhos e dorme...<br />
Brincamos de adivinhar qual seu sonho,<br />
se é brincadeira, correria ou aventura.<br />
Se você escapa de um bicho medonho,<br />
Ou se o enfeitiça com sua risada pura?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E quando você fecha os olhos e dorme...<br />
Brincamos de adivinhar seu dia seguinte,<br />
Imaginando tudo aquilo que irá descobrir.<br />
Ficará no colo do vovô como bom ouvinte?<br />
Ou se erguerá de pé na sala, rindo até cair?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E quando você fecha os olhos e dorme...<br />
Brincamos de adivinhar qual seu futuro.<br />
Mas sem deixar de lado a próxima hora.<br />
Pois este mundo será muito menos duro <br />
Se você se lembrar do amor que tem agora.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E quando você fecha os olhos e dorme...<br />
Brincamos de cobrir o relógio com uma capa<br />
Como se isso fizesse o ponteiro não se mover.<br />
Mas o tempo, teimoso que só, ainda escapa,<br />
E nós sorrimos, vendo você sonhar e crescer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E quando você fecha os olhos e dorme..<br />Papai apaga a luz, mamãe está te cobrindo.<br />E quando você fecha os olhos e dorme,<br />Sabemos que você estará sempre sorrindo,<br />Pois de todos nossos sonhos, você é enorme.<br /></div>
<div style="text-align: right;">
A foto não é de hoje. O texto é para sempre.</div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-60720007825031312872018-03-23T19:25:00.000-03:002018-03-23T19:57:31.046-03:00Sobre Meninos e Lobos<br />
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Se tem uma coisa que eu descobri com a paternidade
é que eu me torno uma pessoa melhor quando canto para meu filho. Claro que eu
não fico parado na frente do carrinho fazendo apresentações de música e dança
para ele... Bom... Ok. Já fiz isso algumas vezes. Mas eu quero falar mesmo
sobre eu cantar para ele dormir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Meu filho é daquelas crianças que luta contra o
sono. O quebra-pau é visível: ele está morrendo de sono, mas não quer dormir,
então começa a ficar bravo. Aí que ele não dorme mesmo, independente do sono
aumentar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Encontramos algumas maneiras de lidar com isso, e
uma delas envolve em eu cantar para ele. A parte operacional é fácil: eu o pego
no colo, deixo ele bem aninhado e começo a andar pela casa. No começo foi tranquilo.
Eu normalmente usava Beatles. Ia cantando baixinho, e ele ia sossegando até
começar a fechar os olhos – aí eu usava minha arma secreta (Something) e dava o
golpe de misericórdia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Mas, de repente, meu repertório de Beatles começou
a perder o efeito. Something ainda é bem eficaz, mas as outras não estavam
ajudando. Aí experimentei Chico Buarque – e descobri uma nova arma secreta:
Acalanto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">E Chico Buarque também funcionou durante um tempo.
O problema é que todas as músicas que sei de cor do Chico são da fase
Construção, e comecei a me sentir meio mal em colocar meu filho para dormir ao
lado de pessoas que morreram na contramão atrapalhando o tráfego ou que tiveram
mães que o ninaram com cantigas de cabaré.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Aí abri o leque. Fui para rock nacional, para
blues, para outras coisas de rock clássico... Só deixei heavy metal de fora. Eu
consigo transformar She Loves You em algo com uma sonoridade delicada, mas é
impossível fazer isso com músicas como Orgasmatron ou Symphony of Destruction.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Todas essas músicas tiveram efeito, mas não tanto
quanto o Beatles que usei no começo. Então, decidi seguir o caminho óbvio e fui
para canções infantis.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">O problema é que eu não lembro quase nada de
músicas infantis. A única coisa que eu recordava era que a maior delas era
sempre estrelada por animais – e, bem, eu tenho 42 anos, então é provável que
todos esses bichos dessas cantigas já morreram de velhice. Se bobear, até mesmo
suas espécies foram extintas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Mas, enfim, comecei a puxar algumas pela memória.
Comecei com Escravos de Jó, que jogavam o tal caxangá – eu nunca soube o que
era caxangá, mas aquele lance do tira, põe, deixa ficar, sempre me pareceu meio
pornográfico. Mas ignorei isso e cantei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Depois fui para O Cravo e a Rosa e comecei a
reparar em detalhes que nunca tinha percebido. Você já reparou na violência dessa
música? Eles brigam, e o Cravo sai ferido, mas a Rosa aparentemente leva a pior,
porque saiu despedaçada. Veja bem, ela não sai com o caule arranhado, com uma pétala
amassada... Não. Ela sai despedaçada!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Assim que eu percebi isso, comecei a imaginar uma
versão do Cravo e a Rosa dirigida pelo Tarantino, com um final onde o Cravo
perde completamente o controle, arranca a Rosa da terra e começa a rasgar suas
pétalas gritando histericamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Mas fiquei curioso e fui pesquisar o resto da
letra. Descobri que depois disso o Cravo fica doente, a Rosa vai visitá-lo, e
aí um dos dois chora e parece que eles se entendem e acabam se casando.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Olha, eu não tenho nada a ver com a vida da Rosa,
mas alguém podia avisar a ela que não é inteligente casar com alguém que
despedaçou você na última briga? Isso com certeza deve valer também para
flores. Terminei de ler com a certeza que a música acaba no casamento só para
não se tornar uma história de violência doméstica, daqueles que a gente vê no
Datena quando já é tarde demais. Eu não iria me surpreender se um dia
descobrissem a letra inteira da música, e ela continuasse assim:<o:p></o:p></span></div>
<div style="text-align: center;">
<i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">O Cravo
começou a beber</span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">A Rosa tomava calmante</span></i></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>O Cravo perdeu o emprego</i></span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>A Rosa arrumou um amante</i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
<o:p></o:p></span></i>
<br />
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">O Cravo
puxou uma faca</span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">A Rosa desafiou: “venha”</span></i></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>O Cravo foi enquadrado</i></span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Na Lei Maria da Penha</i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
<o:p></o:p></span></i>
<br />
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">O Cravo
teve sua foto</span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Publicada nos jornais</span></i></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>A Rosa foi justiçada</i></span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Em todas redes sociais</i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
</span></i>
<br />
<div style="text-align: center;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i><br /></i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
<o:p></o:p></span></i>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Agora, o problema mesmo começou quando lembrei
daquela história do “eu vou passear no bosque”. Na boa? Essa música é uma
espécie de lavagem cerebral. Eu comecei a andar com meu filho no colo e a
cantarolar isso pela sala. Mas eu me lembrava só dos primeiros versos, “vou passear no
bosque, enquanto o Seu Lobo não vem”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Comecei a cantar isso. Vou passear no bosque,
enquanto o Seu Lobo não vem. O tempo passou e meu filho não dormiu. Vou passear
no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem. Meu filho olha para mim. Vou passear no
bosque, enquanto o Seu Lobo não vem. Vou até a cozinha. Vou passear no bosque,
enquanto o Seu Lobo não vem. Meu Deus, estou fazendo isso faz vinte minutos.
Vou passear no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem. Merda de lobo. Vou passear
no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Chegou um determinado momento que eu já não cantava
mais. Eu apenas carregava meu filho no colo recitando esse negócio do bosque e
do lobo como se fosse um mantra. Meu cérebro estava derretendo e nada da merda
do lobo aparecer. Completamente hipnotizado, olhei para meu filho e vi que ele
estava com os olhos vidrados.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">E eu não conseguia parar de cantar! A letra da música
me puxava cada vez mais dentro de um bosque imaginário, onde eu esperaria um lobo
que não aparece nunca. Para tentar quebrar o encanto, tentei comecei a cantar a
música em outro ritmo e finalmente consegui fazer isso usando Beatles.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Se você quiser tentar, é fácil. Sabe Can’t Buy Me Love?
Aquele trecho que diz “Can't buy me love... <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Everybody tells me so!”? Ele funciona certinho
se você colocar “Passear no shopping... Enquanto o Seu Lobo não vem” como
letra. Tenta aí.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Mas isso também não adiantou muito, porque eu
comecei a cantar esse lance do Lobo na versão Beatles, e logo estava começando
a ficar hipnotizado também. Eu não precisava de outros ritmos, e sim de mais
frases.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Foi quando comecei a tentar a puxar o resto da
música pela memória. Eu conheci essa canção </span><span style="background: white; color: #222222;">vendo minha avó cantando isso para o meu primo mais novo.
Como meu primo é padrinho do meu filho, deduzi que isso seria um bom sinal. Assim,
me baseei por essa letra, que puxei de memória. E a letra era:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Vou passear
no bosque,</span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Enquanto o Seu Lobo não vem.</span></i></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Está pronto Seu Lobo?</i></span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Estou sim, senhor.</i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
</span></i>
<br />
<div style="text-align: center;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i><br /></i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
<o:p></o:p></span></i>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Certo. Agora eu tinha quatro frases. Só que, assim
que eu comecei a cantar, percebi que essa canção não é uma cantiga de ninar,
mas sim uma armadilha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Porque vamos pensar: eu estou andando com meu filho
no colo, falando “vamos passear no bosque, enquanto o Seu Lobo não vem.” O que
isso quer dizer? Que o lobo não está no bosque. A letra diz que aquele bosque é seguro porque é
desprovido de lobos. É um bosque lobo-free.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Mas, logo em seguida, rola um plot twist. Eu
pergunto: “está pronto, Seu Lobo?” É claramente uma traição! Eu era um agente
duplo, levando meu filho para o bosque com a promessa de passear em segurança e,
ao mesmo tempo, perguntando se o Lobo está pronto para ir até o bosque. Na
minha cabeça, o significado da música era: “Lobo, estou entrando com meu filho no
bosque como combinamos! Você está pronto? Não demore e não esqueça de levar a
mala com os dólares!”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">E o pior é que o Lobo está pronto! É tudo um golpe!
Eu e o Lobo, aliados contra meu filho! Eu comecei a me sentir um monstro com
isso tudo: Rob Gordon, o cara que vendeu o filho para o Seu Lobo. </span><span style="color: #222222;">Depois eu pesquisei a letra da música e parece que
tem toda uma odisseia que o Lobo nunca está pronto porque está colocando a
roupa, penteando o cabelo, passando desodorante, procurando as chaves de
casa... Enfim, isso não muda o fato de que eu não canto mais essa letra. Agora
eu canto que:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Vou passear
no bosque,</span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><i><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">Enquanto o Seu Lobo não vem.</span></i></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Está pronto, Seu Lobo?</i></span></i><br />
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i>Porque se você estiver e simplesmente pensar em pisar nesse bosque e ousar chegar perto do meu filho, saiba que eu tenho uma arma
e não tenho medo de usá-la, seu lobo maloqueiro filho da puta.</i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
</span></i>
<br />
<div style="text-align: center;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;"><i><br /></i></span></i></div>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">
</span></i>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-hansi-font-family: Calibri;">E não me importa que o ritmo não encaixou com essa letra, porque tem certas músicas que a mensagem é mais importante que a melodia. </span><span style="color: #222222;">Enfim... Desencanei desse papo do Lobo, de Bosque.
Sinto muito, mas não rola. Nem de bosque eu gosto, deve ter mosquito, deve ter
plantas venenosas, se bobear tem até o Cravo chifrando a Rosa e eu não quero me
envolver no problema dos outros.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; line-height: 12.65pt; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="color: #222222;">Vou continuar com Beatles. É meu filho. Vai
funcionar.</span></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com21tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-19076309973409698532018-03-05T11:54:00.001-03:002018-03-05T11:55:09.710-03:00(I Can't Get No) Vaccination<div class="MsoNormal">
Faz mais ou menos duas semanas que estamos nos preparando,
aqui em casa, para um evento razoavelmente importante: o dia do meu filho tomar
as primeiras vacinas. Quer dizer, as segundas vacinas, porque as primeiras ele
tomou na maternidade.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na verdade, eu só percebi que essa ocasião seria algo
marcante na minha vida quando comentava isso com as pessoas. Quem não tinha
filhos, encarava como algo normal. Mas, aqueles que são pais, ao ouvirem que “no
próximo sábado ele vai tomar vacinas”, apenas colocavam a mão no meu ombro e
assumiam uma expressão que ficava no meio do caminho entre pena e preocupação.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Boa sorte”, todos me diziam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Quem precisa de sorte é meu filho, né?”, eu respondia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Mas é ele quem vai tomar as vacinas. Eu só vou estar ali ao
lado”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Assim que eu respondia isso, eles suspiravam e me olhavam
como se eu fosse uma criança dando palpites em conversas de adultos. Na
terceira ou quarta vez que ganhei esse olhar, decidi simplesmente agradecer o
boa sorte e mais nada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Finalmente, no dia marcado, eu, a Esposa e meu filho
entramos, debaixo de um calor infernal, na clínica que aplica as vacinas. A
mulher da recepção nos recebeu com um sorriso de orelha a orelha e nos indicou
para a sala de um médico. E aí começou o problema.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Veja bem, meu filho estava ali para tomar vacinas, e muitas
delas poderiam ter reações adversas. E eu queria ouvir o médico, porque me
recuso a olhar esse tipo de coisa na internet. Vocês já repararam como qualquer
coisa relacionada à saúde é mais grave na internet? É só olhar o fórum de
maternidade que a Esposa participa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Meu filho tomou a vacina X e o pinto dele caiu. Devo ir no
pediatra?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ontem minha filha tomou a vacina Y e agora ela está
brilhando como uma lâmpada. Isso é
normal, meninas? Minha conta de luz vai aumentar?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não. Olhar na internet nunca funciona. Eu queria mesmo era
falar com o médico. E essa conversa não seria complicada. Como já havíamos
falado com o pediatra, achei que o médico fosse apenas confirmar tudo o que o
pediatra disse.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu estava enganado. Quer dizer, talvez o médico tenha apenas
repetido o que o pediatra disse. Mas eu não posso dizer isso com certeza,
porque o médico da clínica tinha um problema de fala – parecia uma língua presa
multiplicada à décima potência – que tornava algumas de suas palavras
incompreensíveis. E o engraçado é que isso acontecia sempre nos momentos mais
importantes de cada frase.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Essa vacina aqui é extremamente importante, porque
laqvaipedseufilplodi. E temos que tomar cuidado porque, às vezes,
ançameçatardenejo e aí podemos ter castrementegravearo”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Oi?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Castrementegravearo. Entendeu?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Bem...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Mas, claro, senhor Rob, o seu filho pode semunetodpécidença
e isso faria com que ele assecinasetassenolho. Mas isso somente em casos
raros.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Espera, o que mesmo somente em casos raros?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Seu filho assecinasetassenolhar.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“O que é isso mesmo?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Uma consequência da semunetodpécidença.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ah.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Vamos tomar as vacinas?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você pode falar um pouco mais sobre aquele
castrementegravearo?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Está aqui no papel”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ah. Ok. O papel está em português, né?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enfim, fomos até o caixa e pagamos as vacinas. Só achei meio
engraçado o fato de que uma vacina para impedir uma doença provavelmente custa
mais que o tratamento da doença; mas, acredite, quando você é pai, isso ainda é
bom negócio. E, de repente, estávamos na sala de espera.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E foi aí que o pesadelo começou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aqueles dez minutos na sala de espera foram uma das
experiências mais traumáticas da minha vida. Havia três portas fechadas a nossa
frente. Atrás de cada porta, havia uma sala. Em cada sala, havia apenas (pelo
menos) uma criança. Todas elas choravam desesperadamente. Ouvi também barulho
de correntes vindo de uma sala – e tenho quase certeza que escutei um tiro
sendo disparado atrás da porta do meio (coincidentemente, o som de choro
daquele sala parou logo após o tiro).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E eu ali, com meu filho no colo, me sentindo como se
estivesse na sala de espera do consultório do Mengele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na minha cabeça, todas as salas atrás daquelas portas eram sujas
e escuras, parecidas com o porão de uma casa abandonada. Eu depositaria meu
filho em uma cama suja, onde ele seria amarrado e, horas depois, abriria os
olhos e encontraria ao seu lado algumas seringas de vacina e um pequeno
gravador. Ao dar play, ele ouviria a frase:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Hello, Filho do Rob. <span lang="EN-US">I want to play a game.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aos poucos, as crianças iam saindo da sala. Todas saíam
chorando. Todas, menos uma, que saiu mancando, com os olhos arregalados e uma
expressão de quem nunca mais iria sorrir na vida. Quando os pais dela se
distraíram, eu me abaixei e perguntei baixinho:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Cara, o que aconteceu lá dentro? Você tem alguma dica?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O menino olhou para mim e vi que tentar qualquer tipo de
comunicação seria inútil. Seu olhar era vazio, como alguém que havia visto a
morte de perto – mas, ao invés de uma foice, a morte carregava uma seringa
enorme. Aquela criança nunca mais iria falar coisas coerentes. Creio que foi
nesse momento que eu decidi que se o Zé Gotinha se candidatar a qualquer cargo
público, ele terá meu voto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A fila foi andando e respirei fundo. Eu olhava as três
portas, tentando imaginar onde entraríamos. Era como se fosse um programa de
auditório roteirizado pelo Freddy Krueger. Demônios aplaudindo na plateia, cenário
decorado com crianças sendo torturadas e o apresentador sorrindo e anunciando os
próximos competidores – que, no caso, éramos nós.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Rob! É hora de você e sua família escolherem uma porta! Uma
delas leva a uma sala com centenas de cobras! Outra leva ao quinto círculo do
inferno! E a terceira fará você experimentar uma chuva de navalhas! Onde você e
sua família vão entrar?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu queria só ir embora daqui.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não. Essa porta nós não temos.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“A gente não pode ficar na sala de espera sem escolher porta
nenhuma? Eu prometo que não vamos atrapalhar nem ficar no caminho de ninguém”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
“FILHO DO ROB GORDON!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Ao ouvir meu nome, abri os olhos – eu nem havia percebido
que eles estavam fechados – e dei de cara com a porta do meio aberta e uma
enfermeira esperando por nós. Pelo que entendi, como demorei para escolher uma
das portas, escolheram por mim. Assim, eu, a Esposa e nosso filho entramos na
sala.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Era pequena, com uma maca no meio. Procurei por sinais de
sangue no chão e nas paredes, mas não vi nada. Bom sinal. Na verdade, era uma
sala normal, parecida com a de qualquer consultório médico. A única diferença
era a enfermeira. Seu olhar era vidrado e o fato dela ficar dando risadinhas sempre
que olhava para meu filho não ajudava em nada. Se estivéssemos num manicômio,
eu teria certeza de que ela era uma paciente usando as roupas do enfermeiro que
ela estrangulou horas antes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Vocês vieram tomar as vacinas, certo?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não”, eu corrigi rapidamente. “Quem veio tomar é o bebê”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Certo, certo”. Ela deu mais uma risadinha, desta vez olhando
diretamente para alguém atrás de mim. Virei a cabeça mas não havia ninguém ali.
Quando olhei para ela de novo, percebi que ela encarava meu filho da mesma
forma que um leão observaria um filhote de antílope. De repente, ela parou de
sorrir e seus olhos ficaram ainda mais vidrados. Olhando para o vazio, ela
murmurou:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Vocês sabem dos perigos da vacina do rotavírus, certo?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Bem, nós sabemos que essa vac...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não. Vocês não sabem. Ninguém sabe o poder do rotavírus. Mas
eu vou explicar. A vacina para o rotavírus é muito violenta. E ela é violenta porque
o rotavírus é violento com aqueles que são violentos com ele. Louvado seja o
rotavírus.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Oi?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“A vacina do rotavírus é violenta”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Sim. Essa parte eu entendi. O que você disse depois disso?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Nada. Eu estou apenas falando sobre a vacina do rotavírus.
O seu filho irá receber os vírus vivos. E eles serão eliminados pelas fezes.
Vocês vão precisar descartar as fezes do bebê”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pensei em perguntar o que ela achava que nós fazíamos com as
fezes do meu filho, mas ela já estava falando novamente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“As fraldas precisam ser descartadas”, ela disse. “Caso
contrário, o rotavírus irá se espalhar pela casa. E, depois da casa de vocês,
pelo mundo, dando início a uma era de fogo e destruição. O planeta será coberto
de enxofre e a fome e a peste se sentarão ao lado do rotavírus. Louvado seja o
rotavírus”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Espera. Quem vai se sentar do lado de quem?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Nada, nada. Vocês precisam descartar as fraldas”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Mas nós meio que já fazemos isso. Aliás, a fralda chama
fralda descartável justamente por causa disso.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ela não pode ficar no lixo dentro da casa. Caso contrário,
a família inteira será infectada”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Certo. Então, aprendemos que o rotavírus é perigoso. Mas não
acho que isso seja surpresa, já que estamos falando de um negócio chamado ROTA
vírus. O vírus tem nome de polícia, é claro que ele ia ser perigoso, ainda mais
no Brasil. Aposto que ele infecta primeiro e pede os documentos depois. Tenho
certeza que o Rotavírus fica andando pelas periferias da cidade fazendo
chacinas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
De qualquer forma, fiz uma anotação mental para conversar
com a Esposa sobre jogar as fraldas no quintal da vizinha que deixa a piscina
descoberta como uma espécie de resort para os mosquitos da dengue, e voltei
minha atenção para a enfermeira. Ela estava de costas mexendo em instrumentos
sobre uma bancada. De onde eu estava, consegui ver uma serra (com marcas de
sangue) e uma foice de metal. Enquanto ela fazia isso, cantarolava baixinho
alguma coisa sobre o rotavírus. Subitamente, ela se virou para nós com um tubo
na mão. Seus olhos brilhavam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Vamos começar? A primeira vacina é a do rotavírus.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Certo.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E sim, a parte do rotavírus foi tranquila, já que a vacina é
via oral. Quer dizer, pelas caretas que meu filho fez, a enfermeira podia muito
bem estar dando a ele vacina temperada com água de esgoto e muco, mas, no geral,
foi fácil. Especialmente se comparado à vacina seguinte. A enfermeira voltou
para sua bancada e começou a mexer em novos instrumentos. Um alicate. Uma
motosserra. Por fim, escolheu uma lança. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi só quando olhei com cuidado que vi que não era uma
lança, e sim uma seringa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Segurem o bebê”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O tom de voz dela foi tão gélido que meu filho começou a chorar
só de ouvir a frase. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Você já segurou seu filho na hora dele tomar vacina? Bom, se
você já fez isso, diga aqui para mim nos comentários qual é a sensação, porque
eu nunca fiz isso na vida. O que rolou foi que meu filho estava no colo da Esposa,
a enfermeira se debruçou por cima dele como um anjo da morte e eu... Bem, eu fiquei
paralizado, no meio da sala, querendo olhar para outro lado mas sem conseguir
desviar os olhos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas o problema foi quando a vacina terminou. Meu filho
estava aos berros e a enfermeira decidiu pegar um chocalho para acalmá-lo. Mas
não era um chocalho na forma de ursinho ou de abelhinha ou de qualquer coisa
que um chocalho possa ser. Na verdade, era uma lata de algodão vazia e com
algumas coisas (Pedras? Feijão? Dedos fossilizados de crianças?) dentro dele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A enfermeira começou a balançar aquilo na cara do meu filho
e da Esposa de um jeito meio frenético, e dançandinho, como se estivesse numa
espécie de transe. Foi quando eu comecei a desconfiar que talvez tudo aquilo fizesse
parte de algum ritual, e a alma do meu filho estava sendo entregue como
alimento para alguma divindidade chamada rotavírus. Talvez a enfermeira até
mesmo estivesse possuída pelo rotavírus naquele momento. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando o ritual acabou, ela se virou para o meu filho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você está mais calmo?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu filho continuou a gritar. Eu pensei em avisar a enfermeira
que “olha, ele ainda não fala”, mas estava aterrorizado demais para falar
qualquer coisa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Então vamos tomar o outro pic-pic”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Desculpe”, dessa vez, eu interrompi. “Pic-pic seria o quê,
exatamente?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“A outra vacina”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ah... Pic de... Picada. É isso?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Isso. A vacina”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Tive vontade de perguntar como as pessoas cantavam “parabéns
para você” na casa dela, querendo saber se, na hora do “é pique-pique-pique” os
convidados ficam enfiando seringas no corpo do aniversariante. Mas meus
devaneios foram mais uma vez interrompidos quando vi o tamanho da segunda
agulha. Se um dia a enfermeira precisasse atravessar um rio, ela poderia usar aquela
agulha como ponte. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Esta vai doer um pouco.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Um pouco? Qual seu conceito de pouco? Porque parece que a
primeira injeção já d...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Segurem o bebê”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu filho começou a chorar novamente antes mesmo da agulhada.
E eu não o culpo, já que eu mesmo estava quase chorando só de ficar no mesmo
ambiente que a Psicótica do Pic-Pic. Mais uma agulhada. Mais um grito. Mais um
suspiro de prazer da enfermeira. Mais uma alma devorada pelo rotavírus. Louvado
seja o rotavírus.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Pronto. A criança está vacinada.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Certo”, eu disse, pegando a Esposa pelo braço e indo embora
da sala o mais rápido possível. A cada passo, eu pedia desculpas para o meu
filho. Quando pisamos na sala de espera, arrisquei uma olhada para trás. A
enfermeira estava parada na porta e vi, pela primeira vez, que seus olhos eram
vermelhos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Até o mês que vem”, ela disse sorrindo e fechou a porta.
Mesmo com meu filho gritando, ouvi o barulho do chocalho ritualístico sendo
usado e uma espécie de cântico num idioma que não reconheci.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mês que vem eu vou levar um padre comigo.<o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com31tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-47057485449099818882018-01-14T20:31:00.002-02:002018-01-14T20:31:52.166-02:00Mundo Animal - Um Documentário<div class="MsoNormal">
Este é o macho em seu habitat natural.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A fêmea do bando foi caçar no mercado, então ele está
sozinho com seu filhote. E assim já podemos aprender bastante sobre a dinâmica
do grupo. A fêmea procura alimento no mercado, pensando se o filhote está seguro
com o macho. Na toca, o macho torce para que a fêmea não se esqueça de comprar
Coca-Cola.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Porém, o macho sabe que é sua obrigação cuidar do filhote. É
preciso defendê-lo de outros predadores
mantê-lo alimentado. Para isso, ele mantém por perto uma pequena
mamadeira preparada pela fêmea. Quando o filhote está com fome, o macho corre
até a cozinha e pega a mamadeira.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho alimentando seu filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Existe uma diferença nas formas que o macho e a fêmea
alimentam seu filhote. A fêmea sempre alimenta o filhote segurando-o com as
duas mãos, para fazer com que ele se sinta protegido. O macho tenta equilibrar
o filhote e a mamadeira com apenas uma mão, para poder mudar os canais da TV
enquanto o bebê se alimenta. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Além disso, a fêmea sempre testa a temperatura do alimento
deixando-o cair uma gota em sua própria pele. O macho tenta repetir esse
movimento, mas não é tão hábil quanto a fêmea e quase derruba metade do
alimento na pia. Mas, por fim, ele consegue medir a temperatura e, como seu
braço não queimou, acha que a temperatura está boa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho tentando fazer seu filhote dormir.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele anda com o filhote em seus braços. Conversa com ele,
explicando coisas sobre o mundo, a vida e o futuro que aguarda pelo filhote...
Mas deixa todas as explicações em aberto quando sai um gol no jogo que está
passando na TV e ele se desconcentra totalmente. Quando assiste ao replay,
pergunta ao filhote “do que estávamos falando?”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Como o filhote não responde, o macho decide cantar Beatles
para fazer o bebê adormecer. Em alguns momentos, isso dá certo, até a hora que
o macho decide colocar o filhote no carrinho. Aí o bebê acorda e começa a
chorar e o macho comenta que tudo seria mais fácil se você me dissesse de quais
bandas vocês gosta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho trocando a fralda do filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Vemos aqui o macho no canto mais protegido da toca limpando
seu filhote. O macho ainda não se entende direito com fraldas e tantas peças de
roupas. Na verdade, existem momentos em que ele acredita que bebês poderiam ter
menos pernas e braços. Ou que as pernas e braços se mexessem um pouco menos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas o macho sabe que manter o filhote limpo é sua obrigação.
Assim, ele tira a roupa e a fralda do filhote. Com um algodão úmido, limpa com
cuidado o bebê, usando depois um lenço umedecido. Porém, ele encontrará
problemas. Ao levantar as pernas do bebê para ajeitar a nova fralda, o macho é
surpreendido por um esguicho pastoso do corpo do flhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho coberto de merda.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho está estático, como se sentisse a presença de um
predador. Mas, na verdade, ele está sentindo uma espécie de merda pastosa
descendo pela sua barriga e sua coxa. O bebê olha para o teto, distraído com a
lâmpada, como se nada tivesse acontecido. O macho olha ao redor e vê rastros de
merda pelo chão.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele não sabe o que fazer. Ele sabia que filhotes podem
urinar nos pais, mas, cagar... Ele tem certeza de que, em toda a floresta, isso
aconteceria apenas com ele. Seu primeiro pensamento é pegar o filhote, correr até o lava-jato da esquina e perguntar se “eu
passar junto com ele vocês cobram só uma lavagem?”. O filhote começa a se
mexer, espalhando a merda.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho tentando limpar novamente o filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele está de pé, com as pernas abertas, porque onde seu pé
esquerdo estava há uma poça de merda. Mesmo assim, ele limpa mais uma vez o
bebê com algodão e lenço umedecido, e prepara-se para colocar a nova fralda.
Porém, descobre que ela também foi atingida pelo jato de merda e a joga no
lixo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho, então, apanha outra fralda na gaveta. Certo de que
esta está limpa, começa a colocá-la no filhote até descobrir que ela também
está suja de merda. Pergunta para o filhote se “você está de sacanagem
comigo?”, mas logo descobre que a culpa não é do bebê, e sim dele, que está com
um pedaço do braço cheio de merda e não tinha percebido.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho tentando limpar a si mesmo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele já arrancou sua camisa coberta de merda e jogou em um
canto da toca (avisando ao bebê que “se você cagar em mim quando eu estiver sem
camisa, eu vou cuspir na sua mamadeira”). Com uma mão ele segura o bebê; com a
outra, ele se limpa com lenços umedecidos, torcendo para que a janela da toca,
que está atrás dele, esteja fechada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele inverte as mãos. Segura o bebê com a mão que usou para
se limpar e usa um novo lenço para limpar o outro lado do corpo. Subitamente o
filhote joga as pernas para o alto e as abre, como se estivesse executando uma
dança. Por instinto, o macho se abaixa, mas respira aliviado quando vê que o
filhote não disparou outra rajada de fluido orgânico.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho tentando descobrir como vestir seu filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele coloca a fralda em seu filhote, enquanto pede para que o
filhote pare de mexer as pernas por um momento. Com o máximo de perícia que ele
possui – o que é bem pouca, pois machos dessa espécie são naturalmente
desastrados – ele consegue fechar a fralda e prepara-se para colocar a calça do
filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho não se entende com a calça. A cada tentativa, os pés
do bebê parecem desaparecer no meio da calça e ele precisa colocar tudo de
novo. O filhote, movendo as pernas, não ajuda muito e o macho pergunta se “você
realmente não consegue se vestir sozinho? Eu posso passar as roupas que você
escolher e você vai colocando, que tal?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho ainda tentando descobrir como vestir seu
filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando finalmente conseguiu colocar a calça no bebê, o macho
percebe que esqueceu de puxar o body para baixo e fechá-lo. O filhote parece
ter percebido isso e mexe as pernas com mais velocidade para celebrar sua
pequena vitória. O macho considera a hipótese de fechar o body por cima da
calça e foda-se, mas desiste ao perceber que a fêmea está para chegar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho abaixa a calça novamente, ajusta o body do filhote e
o fecha. Segura o bebê pelas pernas mais uma vez e ajusta a calça. Parece que
boa parte do trabalho está feita, mas o macho sabe que o pior está por vir.
Afinal, com a calça colocada, é hora de colocar as malditas meias.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho olhando as meias do filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Para o macho, aqueles pequenos pedaços de pano são um
mistério. Ele segura uma na frente do rosto e fica analisando. A primeira parte
é fácil, porque um lado é aberto e outro não, então o pé do filhote deve entrar
no buraco. Mas o macho não sabe onde é o calcanhar da meia. Ele procura a
inscrição “este lado para cima”. Como não a encontra, resolve ir na sorte.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O bebê parece gostar de colocar meias e resolve demonstrar isso levantando as pernas e balançando os pés.
Enquanto isso, o macho, tomando cuidado para não encostar a calça cheia de
merda em algum lugar, fica tentando pescar o pé do bebê e vestir a meia. “Se
você parar de mexer a perna por cinco segundos eu deixo você correr na rua
depois”, ele propóe ao filhote.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho limpando a toca.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O bebê já está no carrinho, em outro aposento da toca – suas
meias não parecem muito certas, mas o filhote não está reclamando (e como o
macacão vai por cima das meias, ninguém vai perceber). O macho não está perto
do bebê. Ele está de quatro, no outro canto da toca, limpando os rastros de
merda do chão com desinfentante.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O filhote começa a chorar. O macho fica aflito ao ver que
seu filhote está chorando longe dele, e grita um palavrão. Está de cuecas, com
a mão cheia de desinfentante e segurando papel toalha, procurando por indícios
de merda no chão e nos móveis. “Vai vendo o futebol que o papai já desce”, o
macho grita para o filhote. O bebê continua a chorar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este é o macho com o bebê no colo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho carrega o filhote no colo, dizendo coisas como “o
papai está aqui, você não precisa chorar, e além disso nem motivo para chorar
você tem porque não foi em você que cagaram, porque você é um bebê esperto e estava
do lado mais seguro do cu, então para de chorar, agora está tudo bem e você vai
dormir.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O macho finalmente coloca o bebê para dormir e joga sua
roupa coberta de merda no tanque. Esse é o momento que a fêmea volta para casa
com a caça. Ao ver o filhote dormindo, ela sente que o dia foi proveitoso. A
cria está alimentada, limpa e descansando, em paz, longe dos perigos da
floresta. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
Este é o macho dando graças a Deus pelo fato de que o
filhote ainda não sabe falar. <o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com25tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-66211984038894896962017-12-21T12:26:00.000-02:002017-12-21T12:26:22.426-02:0012:12<div class="MsoNormal">
Eu ainda nem tinha tomado café quando tivemos que correr
para o hospital e isso depois de já passarmos a noite no pronto socorro quando
a gente descobriu que era alarme falso mas dessa vez tudo ia acontecer de
verdade porque a bolsa tinha estourado e entramos no hospital com ela tentando
contar as contrações eu falando para a médica que esquecemos o ultrassom por
causa da correria e a médica respondeu que trazer o ultrassom sempre é
importante e eu mandei ela esquecer a merda do ultrassom e examinar a minha
esposa e ela começou a fazer uns exames e eu corri para a administração para
ver os documentos da internação e de lá corri para o segundo andar junto com
uma enfermeira para deixar as malas no quarto e fui de volta para o primeiro
andar onde me deram uma roupa verde igual a dos médicos e mandaram eu colocar
por cima da roupa que eu estava usando e a calça não entrava porque eu tinha
dois celulares e duas carteiras comigo e eu comecei a pular por aquela sala que
parecia um vestiário desesperado tentando enfiar a calça por cima da bermuda
jeans e tive uma crise de ódio e gritei um palavrão porque minha carteira não
deixava a calça entrar e voltei correndo para fora para pedir uma calça maior e
essa finalmente entrou e eu atravessei os corredores o mais rápido que pude enquanto
colocava uma touca na cabeça perguntando para todo mundo onde ela está e quando
finalmente entrei na sala mandaram eu colocar uma máscara e eu não conseguia
amarrar aquilo de jeito nenhum na cabeça porque minhas mãos tremiam mas
consegui dar um jeito provavelmente amarrando errado mas não me importei muito porque
minha esposa estava gritando e a médica falou algo atravessado e eu pensei que
vou ter que segurar minha esposa antes que ela dê um tapa na cara dessa médica
e os gritos aumentaram e todo mundo falando que ela estava indo bem que estava
quase nascendo e continue fazendo força e eu fiquei ali me sentindo um pouco
inútil porque eu queria fazer força junto com ela mas não podia e o pouco que eu
podia fazer era conversar com ela e dizer que amo muito ela e que tudo vai dar
certo e todas aquelas frases que a gente sabe que ela nem está ouvindo mas que
você diz mesmo assim e lembro de ter limpado uma lágrima do rosto da minha
esposa e de repente a médica e todas as enfermeiras começaram a falar ao mesmo
tempo e eu não sabia em qual delas eu prestava atenção e mesmo se soubesse não
ia conseguir prestar atenção em nada que não fosse minha esposa mas de repente
a médica falou que essa vai ser a última contração e eu me lembro de pensar que
se podemos esperar só mais uns dois minutos porque eu não sei se ainda já estou
pronto para isso mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa alguém que
estava na sala começou a gritar que está vindo está vindo está vindo só mais um
pouco <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, exatamente às 12:12, minha vida ganhou pontuação. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele olhou na minha direção. Seus olhos eram escuros e
pequenos mas pareciam maiores que o mundo. E quando ele começou a chorar, eu
chorei junto. Éramos duas crianças. Ele chorava porque havia acabado de nascer.
Eu soluçava porque havia acabado de nascer de novo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enquanto nós dois chorávamos juntos, meu passado ganhou um
novo significado. Memórias de mais de quatro décadas começaram a se movimentar
dentro de mim. Meus sorrisos de criança se uniram com tudo o que aprontei na
adolescência e com cada coisa que aprendi depois de adulto. Todas as minhas
lembranças começaram a se comportar como peças de um quebra-cabeça que
decidiram, por conta própria, se juntar e revelar o segredo que escondiam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E a imagem que o quebra-cabeça formou era o rosto dele. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi então que entendi que tudo o que vivi nesses mais de
quarenta anos não eram fatos isolados, e sim capítulos de uma história maior.
Cada lembrança doce, cada lição aprendida, cada pequena conquista... Tudo havia
me levado até ali. Cada instante da minha história havia me conduzido até
aquele momento. Em direção àquele menininho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
No meio da correria das pessoas de verde, do falatório
apressado, do choro do meu filho e da enormidade do futuro que se abria na
minha frente, com todos os sonhos e medos e receios e desejos e cuidados e
erros e aprendizados... Eu respirei fundo e pensei no meu pai. Fechei os olhos
e enxerguei exatamente o que o meu pai significa para mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E tudo ficou mais claro. Dali em diante, cada passo que eu
der precisa garantir que ele seja uma pessoa feliz. Cada escolha que eu fizer
precisa transformar esse menininho em um homem melhor que eu. Agora, tudo o que
eu sou, tudo o que fui e tudo o que eu possa ser um dia, é dele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi neste momento que me tornei pai. E foi neste momento que
eu percebi que havia passado a vida inteira querendo ser o pai do Felipe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eram 12:12 quando tudo fez sentido.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Abri os olhos e vi que alguém havia colocado meu filho sobre
minha esposa. Ele estava deitado e assustado como um enfeite de cristal que,
depois de ser desembrulhado e colocado em uma estante, olha ao redor para
compreender aquele novo mundo. Mas ele não era feito de cristal. Ele era feito
de de tudo o que eu sou. Ele era feito de amor.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pela primeira vez na vida, me aproximei do rosto dele e,
pensando no meu pai e pensando no meu filho, eu disse baixinho: <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu sou seu pai. E meu amor por você é maior que a vida”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
Eram 12:13 e eu ainda estava chorando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgw-ihh0su_kXFjibEuAJubdZRHnR-QU80kmETPPE9J8vfbqylwV3DtOnJWPz77wDRYT81axJu7BwtRQC5b9mobcWL-WcYGHhGXiI3PjOfR-RFa0aBb3pXsw6vFailzEHvFF369/s1600/felipe.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="960" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgw-ihh0su_kXFjibEuAJubdZRHnR-QU80kmETPPE9J8vfbqylwV3DtOnJWPz77wDRYT81axJu7BwtRQC5b9mobcWL-WcYGHhGXiI3PjOfR-RFa0aBb3pXsw6vFailzEHvFF369/s400/felipe.jpg" width="300" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Eram 12:12 quando eu comecei a<br />escrever o maior texto da minha vida.</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-38683048315039865802017-11-09T13:53:00.003-02:002017-11-09T13:53:38.601-02:00A Costa do Mosquito<div class="MsoNormal">
Quem acompanha esse
blog ou me segue nas redes sociais deve estar sabendo que mudei de casa faz
alguns meses. Agora, moramos num pequeno sobrado bem perto daquele rio em cujas
margens plácidas foi disparado o brado retumbante de um povo heróico.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Só que o problema da
casa nova é que, no instante em que o Sol da liberdade deixa de brilhar em
raios fúlgidos no céu da Pátria, a casa é invadida por mosquitos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Nós imaginávamos que
isso podia acontecer, afinal, estamos perto de um rio. Por isso, antes de
assinarmos o contrato, viemos dar uma volta pelo bairro e perguntamos para duas
ou três pessoas da vizinhança sobre esse assunto. As respostas seguiam sempre
pelo mesmo caminho.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ah, de vez em quando
tem um ou outro”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não, nunca vi aqui na
minha casa.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“O que é mosquito?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Bom, bastou nos
mudarmos para começamos a encontrar mosquitos em casa. E não eram dois ou três,
eram dezenas. Às vezes, centenas. E, a cada mosquito que eu matava, amaldiçoava
meus vizinhos, que juraram que não havia pernilongos no bairro. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sim, já me ocorreu que
talvez eles não tenham mentido. Talvez eles nunca vejam mosquito algum porque
todos os pernilongos da cidade estão dentro da minha casa. Talvez a casa deles
tenha alguma espécie de proteção – física ou mágica. Talvez eles apenas tenham mais
sorte que eu, talvez o sangue deles não seja tão apetitoso, talvez alguma coisa
no vento empurre os mosquitos apenas na minha direção.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ou talvez os filhos da
puta ganhem comissão da imobiliária quando conseguem convencer pessoas
inocentes que o bairro não é infestado por pernilongos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
(Na verdade, minha
alternativa preferida é pensar que todos os moradores do bairro são adoradores
& escravos de uma antiga e obscura divindade com formato de pernilongo e,
para aplacar a ira da criatura maligna, decidiram me oferecer como sacrifício.
Sim eu pensei mais de uma vez sobre isso.)<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas, religiões
arcaicas à parte, em alguns dias a situação era insustentável. Eu batia na tela
da janela da sala e era imediatamente transportado para o Sudeste Asiático, já
que uma nuvem de pernilongos saía voando. Na minha direção. Em formação de
ataque. Ao som de Cavalgada das Valquírias. Tudo o que eu podia fazer era
trancar a janela o mais rápido possível e mergulhar atrás do sofá.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
À noite era pior.
Porque vamos abrir o jogo: pernilongos estão entre os animais mais estúpidos
que existem. Pensem comigo: você está deitado, dormindo. Se o pernilongo
pousasse no seu tornozelo, você jamais iria perceber. Eles passaria a noite
inteira ali se empanturrando. Sua perna seria transformada numa daqueles
restaurantes “coma o quanto quiser – suco grátis – aceitamos VR”. Mas, não! O
idiota insiste em voar perto da sua cabeça, fazendo barulho com as asas e
chamando a atenção. Ou ele é imbecil ou faz isso apenas para provocar, porque
sabe que – ao menos na minha casa – ele está com toda sua galera ali. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Chegou um dia que eu
cansei. Nem tanto pelo fato de que a cada pernilongo que eu matava, dois
apareciam em seu lugar, mas porque meus ombros já começaram a doer de tanto
bater palmas pela casa. Eu corria pela sala e batia palma tantas vezes que já
estava esperando alguém olhar da rua e tocar a campainha, querendo saber se dou
aula de flamenco e quanto custa a mensalidade. Sério, só faltavam as
castanholas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas a gota d’água foi
o dia que eu estava lendo na cama e, ao olhar para cima, percebi que milhões de
mosquitos estavam se reunindo no teto, bem em cima de mim. Eles começaram a
voar de forma estranha e logo percebi que eles estavam formando uma espécie de
desenho no teto. Não. Não era um desenho. Eram letras!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eles estavam tentando
se comunicar comigo!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Larguei o livro e
prestei atenção. Seria a descoberta biológica do século. Olhei com atenção as
letras se formando, jurando para mim mesmo que, em meu discurso aceitando o Nobel
de Biologia, dedicaria o prêmio aos dois professores que me reprovaram nessa
matéria. Finalmente, o texto se formou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b><br /></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>MOSQUITOES WAR<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>EPISÓDIO IV<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>É um período de guerra
civil. Espaçonaves rebeldes atacando de uma base secreta conquistaram sua
primeira vitória contra o temível IMPÉRIO GALÁCTICO.</b><o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Porra, eu sou o
Império?”, gritei, jogando o travesseiro nos pernilongos. Eu não sabia o que
era pior: ser apontado como vilão ou perceber que estou gordo o suficiente para
ser apelidado de Estrela da Morte pelos mosquitos. Filhos da puta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na minha cabeça, agora
era guerra. Mas eu precisava de alguma estratégia para equilibrar a batalha, já
que o exército inimigo 1) está em superioridade númerica absoluta e 2) voa.
Pensei nos meus anos jogando Civilization e decidi que a melhor saída nesse
caso seria algum avanço tecnológico militar. Isso equilibraria um pouco a
situação.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Concluí que só havia
uma saída. Fui até o mercado e comprei uma daquelas raquetes elétricas que
matam mosquitos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ok, vamos interromper
um pouco aqui. Eu sempre fui contra essa raquete – especialmente porque a
primeira vez que eu vi isso foi nas mãos da <b><a href="http://champ-vinyl.blogspot.com.br/2009/01/lista-de-schindler-gordon.html" target="_blank">Síndica Mafiosa do prédio que eu morava em Pinheiros</a></b> (Oi, leitores mais antigos! Lembram dela?). Naquele
momento, aquilo me pareceu um instrumento típico de genocídio, cruel demais.
Lembro que jurei nunca usar um negócio daqueles.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas não há juramento
que resista a um enxame de milhares de pernilongos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Voltei com a raquete
para casa. Ela carrega na tomada (o que é ótimo, porque senão eu gastaria todo
meu dinheiro em pilhas) e é laranja porque... Bem, porque a única outra cor
disponível era verde-limão, e se eu fosse um pernilongo, jamais respeitaria uma
pessoa que me atacasse com uma raquete verde limão. Mas perguntei ao cara do
mercado se existia algum modelo que contabilizava o número de mortes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Acho que não. Mas por
que o senhor iria querer isso?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ah, apenas para ter
um número exato e reclamar na prefeitura”, menti. Eu não ia falar para ele que
queria ser apelidado de Barão Laranja pelos pernilongos. Se eu tentasse
explicar para ele que eu não queria apenas matar os pernilongos, e sim voltar a
ser respeitado dentro da minha casa, ele provavelmente acharia que sou louco e
chamaria a segurança.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enfim, voltei com a
raquete para casa. Quando estava entrando, os pernilongos estavam voando pela sala.
Percebi que eles já se preparavam para me atacar quando puxei a raquete de
dentro da sacola e a brandi com força no ar, gritando:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="EN-US">“SAY HELLO TO MY LITTLE FRIEND!”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Faltava só a cocaína
no cabelo. Bom, na verdade, falta também o cabelo, mas duvido que os mosquitos
tenham prestado atenção nisso, porque imediatamente liguei a raquete.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Agora, minha sala não
era mais um campo de guerra, e sim uma espécie de Winbledon do inferno. Eu
sacava um pernilongo (CRAC), corria pela sala e rebatia outro perto do aquário
(CRAC), cortava uma nuvem que tentava escapar para a cozinha (CRAC CRAC CRAC),
subia no sofá e pulava de volta para o chão, golpeando o ar com a raquete feito
o Conan (CRAC CRAC CRAC CRAC CRAC) e gritando que vou beber vinho nos seu
crânios e me deitar com suas mulheres, cães pictos infelizes!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Sim, aparentemente, a
raquete não me fez bem. Não demorei para descobrir que se o poder corrompe, e o
poder absoluto corrompe absolutamente... O poder elétrico torna insano. Mas
comecei a ficar realmente preocupado comigo mesmo quando descobri que alguns
pernilongos não morriam imediatamente. Os menos sortudos ficam grudados na tela
da raquete, literalmente fritando – dá para sentir o cheiro de queimado e tudo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Cruel demais. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na primeira vez que
isso aconteceu, eu deveria apenas ter jogado a raquete de lado, me virado na
direção dos pernilongos respirando fundo, e falado para eles que “Não. Eu nunca
vou abraçar o Lado Negro. Vocês falharam. Eu sou um Jedi, como meu pai antes de
mim”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu devia ter feito isso.
Mas, na verdade, eu simplesmente aproximei a raquete do meu rosto, admirei o
pernilongo queimando e sussurrei “Burn, baby, burn”. Tenho certeza que meus
olhos estavam vidrados. Foi aí que eu percebi que adoro o cheiro de mosquitos
queimados pela manhã.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este foi o ponto sem
volta. De lá para cá, eu passei a andar pela casa com a raquete embaixo do
braço. Aonde eu ia, ela ia comigo. Éramos apenas um. Mas o mais assustador foi
que eu desenvolvi um grito de guerra para cada aposento – como eu disse, não era
ganhar a guerra, era recuperar meu respeito. E eu decidi recuperar meu respeito
colocando medo nos pernilongos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por exemplo, na sala
eu mantive o “say hello to my little friend”. Aliás, eu queria ter pintado a
frase “The World is Yours” na parede, mas a Esposa não deixou. Paciência.
Bastava eu colocar os pés no aposento e gritar que os mosquitos sabem o que vai
acontecer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
No escritório, eu
assumo outra estratégia. Abro a porta imitando o som dos passos do RoboCop e
aponto a raquete para os mosquitos, falando que “dead or alive, you come with
me”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
No banheiro? Sempre
que entro ali com a raquete, grito que “Heeeeere’s Johnny!”. Perguntei para a
Esposa se eu não podia abrir um rombo na porta, porque acho que enfiar a cara
nesse buraco e gritar essa frase antes de entrar teria um efeito ainda mais
assustador, mas ela também não deixou (às vezes eu me sentia sozinho demais
nessa guerra).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E o quarto... Bem, ali
eu decidi fazer o jogo dos pernilongos. Não tinha sido ali que eles decretaram
que eu sou o Império? Então, sempre que entro ali, os pernilongos já entram em
pânico quando eu ligo a raquete e digo que “the force is with young pernilongo;
but you are not a Jedi yet!” e começo a distribuir raquetadas fazendo som de
sabre de luz e gritando que “I have you now” (CRAC), “It’s useless to resist”
(CRAC) e “it’s unwise to lower your defenses” (CRAC).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Como vocês devem
imaginar, o problema foi resolvido.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas não por mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quem resolveu tudo foi
a prefeitura, que recebeu tantas reclamações da Esposa que acabou limpando o rio
aqui ao lado. Quando fiquei sabendo disso, senti um gosto amargo na boca,
resmunguei algo como “malditos diplomatas. Eu estou aqui encharcado de sangue e
eles resolvem tudo com um telefonema” e fui trabalhar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas confesso que foi
melhor assim. Porque talvez eu iria eliminar todos os pernilongos da casa, mas
com certeza eu iria acabar com meu casamento. Teve um dia que a Esposa me
chamou, pediu para eu sentar no sofá, falando que queria conversar comigo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você não acha que
está exagerando com essa raquete?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu olhei para ela.
Peguei uma esponja molhada e apertei na testa. Enquanto a água descia pelo meu
rosto, eu comecei a murmurar:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu vi horrores...
Horrores que você viu. Mas você não tem o direito de me chamar de assassino.
Você tem o direito de matar. Você tem o direito de fazer isso. Mas você não tem
o direito de me julgar.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Do que você está
falando?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“É impossível
descrever em palavras o que é necessário para aqueles que não sabem o que o
horror significa. O horror... O horror tem um rosto... E você deve fazer do
horror seu amigo.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você está molhando a
sala inteira com essa esponja!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“O horror... E o
terror moral... São seus amigos. Caso contrário, eles são inimigos a serem
temidos. São inimigos verdadeiros.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ou você para com essa
merda ou você vai fazer seu próprio almoço hoje”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Ok, já parei”,
respondi, guardando a esponja na mesma hora.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
De lá para cá eu sosseguei.
Mas vou confessar algo aqui:, toda noite, me sento no sofá depois que todos
foram dormir e examino minha raquete. Checo se ela está limpa, se está
carregada. E faço minha última oração do dia:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Esta é a minha
raquete. Existem muitas outras como ela, mas essa é a minha. Minha raquete é
minha melhor amiga. Ela é minha vida. Eu devo controlar a raquete da mesma
forma que devo controlar minha vida. Sem mim, minha raquete é inútil. Sem minha
raquete, eu sou inútil. Eu devo usar minha raquete honestamente. Eu devo ter
uma pontaria melhor que o pernilongo que está tentando me matar. Eu devo atacar
antes que ele me ataque. Perante Deus, eu juro: minha raquete e eu somos
defensores do meu país; nós vamos controlar nossos inimigos; nós somos os
salvadores da minha vida. E que seja assim, até que não haja mais inimigos,
apenas paz. Amém.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E vou dormir. Ou, pelo
menos, tentar. Porque eu tenho certeza que os mosquitos vão voltar.</div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="EN-US"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="EN-US">É só uma questão de tempo. </span>Eles vão voltar.</div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com14tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-35239958223503041932017-09-10T00:15:00.001-03:002017-09-10T00:15:29.899-03:00A Vida, o Universo e Tudo Mais"<b>Você sabe que está ficando velho quando as velas custam mais que o bolo.</b>"<br /><div style="text-align: right;">
(Bob Hope)</div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
Algumas pessoas têm medo de envelhecer. Eu? Confesso que eu venho achando divertido. Especialmente nos dias em que consigo voltar cedo para casa.</div>
<div>
<br /></div>
<div>
<br /><div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-33487369817908638132017-08-23T18:15:00.000-03:002017-08-23T18:15:49.079-03:00O Menino que Ainda Não Conheço e Outras Histórias de Amor<div class="MsoNormal">
Foi de repente.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Minhas roupas estavam molhadas quando o sonho se transformou
em notícia. Era uma sexta-feira à noite de abril e tínhamos acabado de entrar
em casa. Havíamos saído para comer um sanduíche e, na volta, atravessamos uma
tempestade daquelas que você fica encharcado só de correr até o carro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não foi a primeira tempestade que cruzou nosso caminho. Mas essa
se tornou inesquecível porque ainda estava caindo quando ouvi a primeira vez
sobre o Menino que Ainda Não Conheço. A Esposa foi até onde eu estava e mostrou
o teste. Foi assim, de repente. Eu a beijei e a abracei e comecei a andar pela sala
com as roupas pingando, tentando entender a ideia de que eu vou ser pai.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi de repente que tudo mudou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu não me recordo do que pensei no momento. Mas quanto mais
eu penso sobre isso, mais eu percebo que tudo o que vivi antes da tempestade dessa
sexta-feira não pertence mais a mim. Eu já fui muitas coisas. Mas hoje entendo
que tudo o que sou existe apenas em função do Menino que Ainda não Conheço.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Os filmes que vi de madrugada. Os gols que fiz no
estacionamento do supermercado. Os livros pelos quais me apaixonei. As paixões
que me fizeram sonhar. As gargalhadas que saíram alto demais. As músicas que
decorei a letra. As brigas comigo mesmo e com os outros. As lágrimas que teimaram
em escapar. As piadas entre goles de cervejas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quanto mais penso, mais percebo que nada disso é só meu. Quando
mais entendo, mais fica claro que eu mesmo não sou mais só meu. Tudo o que eu sou,
tudo o que eu fui e tudo o que possa ser um dia, agora, pertencem ao Menino que
Ainda não Conheço.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi de repente que tudo mudou para sempre.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Hoje, acordo todos os dias e pego meu café. Ainda com a
caneca na mão, enxergo um sentido novo no meu dia. Afinal, nada mais lógico – e
mágico – que a mulher que me mostrou como fazer as pazes com a vida carregue
uma vida dentro de si. E descubro um sentido novo em mim, ao me olhar no
espelho e pensar sobre o tamanho que a “eu vou ser pai” pode ter.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Hoje eu vou dormir, todas as noites, pensando no Menino que Ainda
Não Conheço. Brinco de adivinhar qual sua primeira palavra ou para qual lado
ele dará seus primeiros passos. E, com ele não apenas ao meu lado, mas sim ao
meu redor, fecho os olhos e peço para ser pelo menos metade do pai que meu pai
foi para mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Porque tudo o que eu quero é olhar um dia para o Menino que não
Conheço e saber que ele se tornou melhor que eu. Tudo o que eu quero é olhar um
dia para o Menino que Ainda não Conheço e ter a certeza de que ele se tornou um
Menino Feliz. E fazer isso é o meu papel. Porque desde aquela sexta-feira
chuvosa, eu estou escrevendo o texto mais bonito da minha vida. Eu estou
escrevendo sobre o Menino que Ainda não Conheço.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, de repente, cada dia é uma história de amor. Para sempre.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgheYcKMa-9tmnfOEy3PFoOZwkPnDEXOoeXQzNdwxcJ-2_HcMaIYE5AtWHoOkwstnbF_sXnyxVCLnxHLe_O4fr8HF01uXxam3sp3K1bsxYYIEet1wl31A-St2rTUIDp3vxW6ETa/s1600/gravidez.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1280" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgheYcKMa-9tmnfOEy3PFoOZwkPnDEXOoeXQzNdwxcJ-2_HcMaIYE5AtWHoOkwstnbF_sXnyxVCLnxHLe_O4fr8HF01uXxam3sp3K1bsxYYIEet1wl31A-St2rTUIDp3vxW6ETa/s400/gravidez.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Isso é apenas um teaser. A estreia é em dezembro.</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com26tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-85708143737252443242017-08-22T14:06:00.000-03:002017-08-22T14:06:19.947-03:00O Clube dos Não Pagadores de Pedágio<div class="MsoNormal">
“Não temos dinheiro!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Como assim, não temos dinheiro? Nada?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Talvez tenha na minha carteira. Olha aí.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Dez. Vinte. Vinte e cinco. Trinta e cinco...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Reais?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não, centavos. Quarenta...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não temos dinheiro!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Depois de meses de crise econômica, gastos inesperados e um
eventual esbanjamento aqui ou ali, o gosto da miséria finalmente dominou minha
boca. Não havia mais saída. Era hora de enfrentar o destino. Respirei fundo e
tentei disfarçar o medo enquanto lia a placa que passava pela janela do carro.<o:p></o:p></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>PEDÁGIO – 500 METROS<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pessoalmente, acho que o problema de você ficar sem dinheiro
é não ter a menor pista do que irá acontecer com seu futuro. Quer dizer, o
problema de ficar sem dinheiro é ficar sem dinheiro, mas assim que isso
acontece, a falta de perspectiva começa a cair sobre tudo o que você faz, como
se fosse uma espécie de garoa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E essa incapacidade de planejar o futuro é ainda pior quando
se trata de algo que já é misterioso por natureza, como pagar o pedágio na
estrada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Vamos ser sinceros: uma pessoa normal não faz a menor ideia
do que pode acontecer se você não pagar o pedágio. Se você não pagar a conta de
luz, a luz da sua casa é cortada. Se você não pagar o cartão de crédito, o cartão
é cancelado. Mas o que acontece se você não pagar o pedágio? Você é obrigado a
dar ré na estrada até voltar para casa? Você é exilado do país? É obrigado a
trabalhar numa mina de sal? <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>PEDÁGIO – 200 METROS<o:p></o:p></b></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As consequências de não pagar o pedágio, na minha cabeça, formam
um dos maiores mistérios do mundo moderno. Eu sempre me perguntei isso, mas
tudo o que consegui descobrir é que pessoas que já deixaram de pagar o pedágio participam
de uma espécie de seita que, como todo seita, possui regras próprias (<b>Primeira regra</b>: você não fala sobre não
pagar o pedágio. <b>Segunda regra</b>: você
NÃO FALA sobre não pagar o pedágio. <b>Terceira
regra</b>: se alguém gritar “pare”, o não pagamento do pedágio está cancelado. <b>Quarta regra</b>: apenas um carro por
cabine. <b>Quinta regra</b>: um pedágio de
cada vez. <b>Sexta regra</b>: sem notas,
sem moedas. <b>Sétima regra</b>: o não
pagamento do pedágio dura o tempo que for necessário. <b>Oitava regra</b>: se esta é sua primeira viagem no clube dos não
pagadores de pedágio, você precisa deixar de pagar o pedágio) e fazem segredo
absoluto sobre esse assunto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você já deixou de pagar o pedágio na estrada?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Como assim?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você viaja toda hora, não é possível que você não tenha
deixado de pagar o pedágio pelo menos uma vez.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não sei do que você está falando.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Olhe, eu só quero saber se a pessoa é enviada para uma mina
de sal ou...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Vamos mudar de assunto?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Desde que sou criança e passo por um pedágio, fico
imaginando o que aconteceria com alguém que driblasse a tarifa do pedágio. E
agora havia chegado a hora de descobrir isso da pior mateira possível. O preço do
pedágio era de R$ 4,10 e nós tínhamos exatamente R$ 0,70 e uma bala de hortelã
que devia estar no carro desde 2009. <o:p></o:p></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<b>PEDÁGIO – 100 METROS<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Encostamos na fila. Enquanto os carros da frente obedeciam
às regras sociais e pagavam a tarifa, eu comecei a me sentir como o sujeito que
para na porta do banco e começa a observar a segurança enquanto carrega uma
escopeta escondida em seu casaco. Eu estava prestes a cruzar uma linha sem
volta, enveredando para o mundo do crime junto com a Esposa. Meu futuro agora
era claro. Procurados pela lei. O terror dos pedágios de São Paulo. Bonnie e
Clyde da Anhanguera.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não esquece de dar bom dia para a mulher”, eu disse.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Oi?”, a Esposa perguntou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Nós não temos nada para negociar. É melhor ser simpático. Tenta
sorrir também.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O carro da frente andou e chegou a nossa vez. A mulher abriu
o vidro, sem desconfiar que estava frente a frente com dois criminosos em
potencial.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Oi, tudo bem?”, a Esposa disse para a funcionaria do
pedágio.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não esquece de sorrir!”, eu cochichei.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Nós realmente
esquecemos do pedágio”, a Esposa continuou falando com a garota dentro da
cabine, “e estamos sem dinheiro.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Que cabelo lindo!”, eu gritei para a garota do
pedágio. “Você faz hidratação?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Cale a boca, estou falando com ela”. A Esposa voltou sua
atenção para a mulher do pedágio. “Como a gente deve fazer agora?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Fala que a gente não quer ir para a mina de sal. Fala que
deve ter um jeito de negociar isso.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A garota mal olhou para nós – e eu achei isso bom, pois
assim ela teria dificuldades em nos identificar na delegacia depois – e disse
que deveríamos passar a cabine e esperar um pouco.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“É só encostar aqui e esperar?”, a Esposa perguntou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Você quer essa bala de hortelã? É novinha, acabamos de
comprar!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Deixa eu ouvir o que a mulher está falando!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Pelo que a mulher explicou, era isso mesmo que devíamos
fazer: encostar na zebra e esperar até que alguém aparecesse para falar conosco.
O problema é que ela não disse quem iria aparecer. Um torturador importado de
alguma ditadura asiática? Um pelotão de fuzilamento? Oficiais nazistas?
Enquanto eu procurava mais balas de hortelã para usar como possíveis subornos,
a Esposa avançou alguns metros com o carro e encostou ali.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ficamos parados na estrada, logo atrás da cabine.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi um dos momentos mais curiosos da minha vida. Eu fechei
os olhos e esperei o carro explodir com um tiro de bazuca, mas nada teria me
preparado para o que aconteceu a seguir, quando uma sirene altíssima disparou
da cabine atrás de nós.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“ELES ESTÃO MANDANDO
OS AVIÕES PARA CIMA DE NÓS! VAMOS SAIR DO CARRO E TENTAR CORRER PARA O MATO!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAoKGnL7rzDHZKR4bZ74Zi6nd-uKE60GLxwUMTcDHnfjUhscMUQVYzCZ8GjqMLovUjw7nUze93P2mO9zL7dmJkm7TlbOJQw76ZXyhSwMTeEf_NE60aiVocR1xF_N7khWLbuzUi/s1600/north.gif" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="272" data-original-width="500" height="174" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAoKGnL7rzDHZKR4bZ74Zi6nd-uKE60GLxwUMTcDHnfjUhscMUQVYzCZ8GjqMLovUjw7nUze93P2mO9zL7dmJkm7TlbOJQw76ZXyhSwMTeEf_NE60aiVocR1xF_N7khWLbuzUi/s320/north.gif" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Este homem não pagou pedágio.</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não, essa sirene deve ser para chamar alguém.”</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu vou até a cabine! Eu vou me render e dizer que estou
pronto para ir para as minas de sal!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Fica quieto”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A Esposa estava certa. A sirene era para chamar alguém. De
repente, outra mulher carregando uma prancheta apareceu ao lado do carro. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Oi”, a Esposa disse. “É com você que precisamos falar? A
gente esqueceu o dinheiro...”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Pergunta se ela é da Gestapo.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A Esposa usou o cotovelo para pedir que eu calasse a boca e
começou a negociar com a mulher. Eu olhei ao redor procurando por soldados
armados, mas não vi nada, apenas as pessoas dos outros carros passando por nós
e olhando em nossa direção com curiosidade e um pouco de apreensão. A mulher
falou alguma coisa para a Esposa e entregou um papel e uma caneta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Não assina nada!”, eu gritei. “Diz que a gente tem direito
a um telefonema!”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A Esposa me ignorou. Assinou o papel e entregou para mim. Eu
corri os olhos pelo papel procurando expressões como “mina de sal”, “pena de
morte” ou “perder a alma”. Mas tudo o que o papel dizia era que a Esposa estava
ciente de que essa tarifa precisaria ser paga em até cinco dias, caso contrário
receberíamos uma multa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Só isso?”, a Esposa
perguntou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Só isso. Tenham uma boa viagem.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E foi isso. Fomos embora. Confesso que eu fiquei um pouco
decepcionado com o “só isso”. Esperava que a consequência de deixar de pagar um
pedágio fosse mais grandiosa. Mas, conforme prosseguíamos a viagem, eu comecei
a olhar esse acontecimento com outros olhos e percebi que havia passado por uma
espécie de ritual de iniciação do mundo moderno.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enquanto jovens de tribos antigas precisavam escalar uma
árvore, derrotar um urso com uma faca e enfiar a mão numa caixa cheia de
vespas, para provar que eram adultos, eu passei pelo meu próprio rito de passagem
ao ficar parado no meio da estrada enquanto uma sirene tocava atrás de mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A diferença é que os membros das tribos antigas, ao
cumprirem o ritual, podiam ser chamados de guerreiros, e eu, ao esquecer o
dinheiro do pedágio, posso agora ser chamado de imbecil. Quando percebi isso,
afastei esse pensamento da cabeça. Peguei a bala de hortelã com a validade
vencida, coloquei na boca e seguimos viagem.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Só espero que, pelo menor, as outras pessoas que deixaram de pagar
o pedágio alguma vez conversem comigo normalmente sobre esse assunto a partir de agora.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-65058022162608629722017-08-09T12:55:00.003-03:002017-08-09T13:30:25.273-03:00Pequeno Conto Noir<div class="MsoNormal">
Eu não estava no meu escritório esperando o tempo passar por
um simples motivo: eu não tinha mais escritório. Pilhas de caixas com arquivos
de casos antigos se escoravam na parede, enquanto eu carregava cada uma delas
para o carro. No começo foi fácil. Mas, a partir da sexta ou sétima caixa, minhas
pernas acusaram a idade e decidi fumar um cigarro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Debrucei num canto da laje e observei a rua. Era o começo da
noite e o céu laranja já havia se tornado uma lembrança. Os postes abriam
pequenas ilhas de claridade na escuridão da rua. Na avenida, ao longe, carros se
amontoavam com pessoas voltando do trabalho. Pelo barulho das buzinas, nenhum dos
motoristas estava feliz em voltar para casa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
As estatísticas da polícia dizem que esse horário ainda é
seguro. Os jornais, desesperados para encher suas páginas, compram essa ideia. Mas
números não entendem as ruas. Predadores não agem de acordo com o relógio. Basta
o Sol se esconder para que eles comecem a vasculhar calçadas em busca de presas.
Sempre foi assim na floresta. É assim na cidade.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E era assim na frente da minha casa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estava na metade do cigarro quando o carro preto estacionou
na frente da minha garagem. Poderia ser algum marido buscando a esposa na missa
da igreja da frente, que havia acabado de terminar. Mas os católicos que
frequentam a missa preferem parar na frente da igreja, mesmo sabendo que e proibido
estacionar ali. Pelo jeito, as leis não se aplicam a quem está com as rezas em
dia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O carro não tinha nada a ver com a missa. Assim que ele
parou – o motor ficou ligado – um sujeito de vinte e poucos anos abriu uma das
portas traseiras e andou apressado até a frente do veículo. Aparentemente, seu
alvo era o carro da frente, um veículo importado e caríssimo da vizinha
barulhenta que acredita que o melhor momento para ouvir música é quando estou
no telefone.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando o rapaz estava entre os dois carros, parou e olhou freneticamente
para os lados, como um menino que planeja assaltar a lata de biscoitos. Mas ele
se esqueceu de um lado. Ele não olhou para cima.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ele não olhou para mim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Existem predadores de todos os tipos. O rapaz na frente de
casa era do tipo inexperiente, que anda pelas ruas fazendo uma ou outra presa
até ser inevitavelmente caçado por um predador maior. Esse é um dos problemas da
cidade. Ela está cheia de presas que acreditam que são predadores.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dei uma tragada no Marlboro de filtro vermelho. Antes de soprar a fumaça eu já
havia adivinhado que ele estava ali para roubar o estepe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Minha vontade era virar as coisas e ir fumar dentro de casa.
Apenas dois motivos fazem uma pessoa deixar um carro que vale mais do que eu
ganho em um ano estacionado na rua: ou ela não sabe o valor do que tem ou
acredita que está imune à cidade. Nos dois casos, a pessoa precisa levar um
tapa da realidade.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas não pega bem para alguém na minha área de trabalho não
cuidar da própria calçada. Enquanto eu enchia meus pulmões de fumaça mais uma
vez, o garoto deitou no chão com uma agilidade surpreendente e começou a mexer
na parte de baixo do carro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mesmo com a barriga na rua, como um bêbado que não encontrou
o caminho de volta, continuava olhando para os lados. Estava assustado e
mostrando que fugiria de volta para sua toca ao menor sinal de perigo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Expirei a fumaça e decidi que era hora de bater o pé e
espantar o rapaz. Eu não precisava pensar no que falar, mas sim em como falar. Ao
se lidar com alguém que está assustado, o tom de voz é uma mensagem muito mais ameaçadora
que qualquer palavra. Respirei o mais fundo que a idade e os cigarros me
permitem e deixei meu grito escapar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Posso ajudar em alguma coisa, meu irmão?”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu mal havia terminado a frase e ele estava de pé, olhando
para mim. Seus olhos piscavam assustados. Provavelmente, a única coisa maior
que o medo que sentia era o arrependimento de não ter olhado para cima antes de
deitar na rua.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu o encarei de volta, esperando pela sua reação, pronto
para pular para trás, ao menor sinal de perigo. Mas tudo o que ele fez foi
correr de volta para seu carro. Abriu a porta traseira e olhou de volta para
mim, talvez para ver o que eu estava fazendo. E o que eu estava fazendo era
apontar o dedo para ele.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Se manda”, eu disse, apontando agora para a esquina. “Esquece
que isso aconteceu e não volta mais para cá”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Antes que ele batesse a porta do carro, o veículo já estava
descendo em disparada pela rua. A vizinha continuou com seu estepe caríssimo e
as pessoas da missa começaram a sair da igreja, sem desconfiar do pequeno
predador que estava ali minutos antes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu dei mais uma tragada no cigarro. Não ganhei nada por esse
trabalho. Não é a primeira vez que isso acontece. Não será a última.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Voltei para dentro de casa e fui pegar mais uma caixa.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-37815402607445279982017-07-25T13:48:00.000-03:002017-07-25T13:48:10.875-03:00Antropologia da Mudança<div class="MsoNormal">
Não, eu não encerrei o blog.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não, eu não parei de escrever ficção.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas foram várias semanas – na verdade, foram alguns meses, mas “várias semanas” soa menos agressivo – sem escrever no blog por pura falta de tempo. Foram semanas sem postar no blog, mas escrevendo muito; foram semanas sem postar no blog por causa de muita coisa acontecendo. Aos poucos, vou falando sobre isso aqui. Mas sim, os blogs ainda estão de pé e a ideia é que voltem à frequência normal de agora em diante.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E para provar isso, vou contar uma pequena história, sobre a mudança de casa. Sim, enquanto eu escrevo isso estou cercado de pilhas de livros e caixas vazias (ou, dependendo da caixa, com um gato dentro) porque vamos nos mudar para outro bairro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Você já mudou de casa? É a coisa mais desesperadora do mundo. E não estou falando daquele processo que envolve colocar tudo o que você tem dentro de caixas, levar para outro lugar e tirar tudo o que você tem de dentro das caixas. Aliás, poucos eventos ilustram tão bem o quanto a humanidade é atrasada quanto se mudar para uma casa nova.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Vamos voltar para a aurora do homem <b>(2001 – Uma Odisseia no Espaço mode: on)</b> e pensar nos primeiros homens. Eles eram nômades, ou seja, não tinham endereço fixo – o que deveria dificultar muito a vida dos carteiros e das empresas de cobrança. Eles moravam no mesmo lugar até a comida daquela região acabar. Quando isso acontecia, eles juntavam tudo o que tinham e, sei lá, embolavam tudo em folhas de bananeira, colocavam nas costas e levavam para outro lugar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E é mais ou menos que eu faço hoje com as caixas de papelão. Milênios de evolução, avanços científicos e descobertas fantásticas, e tudo o que conseguimos a respeito das mudanças foi trocar as folhas de bananeira por caixas de papelão. O resto ficou exatamente igual.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não é possível que pessoas como Leonardo da Vinci ou Thomas Edison sequer pensaram que o processo de mudança podia ser mais fácil.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Leonardo? Vem almoçar!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Já vai. Estou pensando um modo de fazer a mudança ficar mais fácil.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Que mudança?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Quando as pessoas mudam de uma casa para outra. Isso não devia ser tão difícil.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas você vai mudar?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não. Mas se houvesse um jeito de transportar os objetos de uma casa para outra sem que eles fossem carregados...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Isso é impossível.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
–Talvez se eles pudessem ser arremessados da casa antiga para a nova...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Depois você pensa nisso! A comida está esfriando!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– OK.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aí depois do almoço um mercador chamado Giocondo entrou ali pedindo ao Leonardo da Vinci para pintar um quadro da esposa dele. Como o Leonardo não estava planejando mudar de casa e também tinha contas para pagar, ele acabou perdendo o foco e pronto: o processo de mudança continua o mesmo. Por causa disso: séculos depois eu preciso ir até o mercado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Você tem caixas de papelão para me arrumar?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Você vai comprar algo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Bom... Não. Eu queria só as caixas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– As caixas são apenas para os clientes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Certo. Então vou levar esse chocolate. Você tem caixas de papelão?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Tenho essas três.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não tem maiores?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não, senhor.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas é que essas duas são do tamanho de uma caixa de sapatos. E esta outra aqui parece um porta joias.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas elas são de papelão, como o senhor queria.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Algo mais?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Você não tem folhas de bananeira, tem?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O senhor vai comprar algo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Esquece. Obrigado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Então, nesse quesito, ainda estamos na pré-história. A única vantagem é que pelo menos eu posso ficar colocando as coisas dentro da caixa sem ter medo que a Era Glacial comece um dia antes da previsão do tempo. Por outro lado, nós conseguimos ainda inventar uma desvantagem em relação aos primatas. Porque quando os pré-históricos queriam se mudar de um lugar para o outro, eles simplesmente iam.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E nós precisamos falar com as imobiliárias.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Em algum momento, uma parte da humanidade fez alguma curva errada no caminho evolutivo e chegou a um beco sem saída. Assim, sem conseguir se desenvolver direito, esses indivíduos foram trabalhar com imóveis para tentar sobreviver. Vamos ser sinceros? Se existissem imobiliárias na pré-história, a raça humana já estaria extinta.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Senhor Rorgh?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Aqui quem fala é Ugh, da Cenozoica Imóveis. Tudo bem com o senhor?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim, obrigado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu tenho um recado aqui que o senhor está procurando uma caverna em região tropical com caça abundante para o senhor e sua tribo. É isso mesmo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu tenho uma oportunidade ótima para o senhor. Tenho um lançamento com três pinheiros que estão com preços ótimos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Pinheiros?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Isso. São perfeitos para quem adora dormir em cima de galhos, com toda aquela segurança que só um pinheiro consegue proporcionar. Isso sem falar na vista, que é maravilhosa. E tem um lago ali perto que é uma ótima área de lazer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas eu pedi uma caverna.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas esses pinheiros estão por um preço ótimo. E é uma região do Alasca que vai valorizar bastante.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– No Alasca? Onde é isso?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O senhor está onde, hoje?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Na Amazônia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ah, o Alasca é pertinho. O senhor não vai nem sentir a diferença. E é uma área muito charmosa. E a caça é ótima. Está cheio de alces, ursos-polares...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O que são alces?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Alces são tipo cavalos com chifres. A carne é bem gostosa. Vamos agendar uma visita? Pelas minhas contas, o senhor deve demorar cerca de vinte meses para chegar ao imóvel. Então, que tal agendarmos uma visita para 28 de março de 104.029 antes de Cristo? Está bom para o senhor?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Bom, eu preciso falar com a minha esposa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Então, ótimo. Amanhã eu volto a ligar. Foi um prazer, senhor Rorgh.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A visita foi agendada. Rorgh juntou toda sua tribo e começou um longo processo de imigração, atravessando um continente inteiro para conhecer o imóvel. Foram meses enfrentando o clima, animais selvagens e outras tribos. Muitos de seus amigos e parentes ficaram pelo caminho. E, no dia marcado chegaram ao seu destino.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Esperaram um mês e meio ao lado dos Pinheiros, até se convencerem de que o corretor não iria aparecer. Então decidiram retornar para a Amazônia, apenas para descobrir que a região onde moravam estava ocupada por outra tribo e estavam sendo processados pelo proprietário por mais de três anos de aluguel atrasado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ultimamente, tivemos que falar com vários descendentes de Ugh aqui em casa. São primatas que não sabem a diferença entre casa e apartamento, casa e chácara (e, em um dos casos, casa e túnel) e que acreditam que tanto a Vila Mariana como Londrina e Kosovo estão na Zona Sul de São Paulo.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas finalmente conseguimos uma casa nova. Mas, antes mesmo de sair procurando por caixas ou folhas de bananeira, começaram os problemas com a imobiliária que, prometo, contarei no post seguinte. </div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-51520612131313534692017-04-12T12:15:00.002-03:002017-04-12T12:16:13.932-03:00Rob Gordon X Taxista Pensador<div class="MsoNormal">
Assim que eu entrei no carro, disse para onde ia e o taxista
deu a partida. Ainda no primeiro quarteirão, ele falou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe o que eu queria?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi assim mesmo. A seco. Sem nenhuma preparação, sem nenhum
assunto prévio, nada. Ele fez a pergunta como se estivesse concluindo uma longa
conversa da qual eu não fazia parte. Mesmo assim, resolvi participar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O quê?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu queria ser rico. Ser muito rico. Mas não rico por ser
rico, e sim rico para poder ficar em casa. Eu queria ficar em casa sem fazer
nada, apenas pensando. Queria ficar na frente do computador pensando o dia
inteiro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas pensando sobre o q...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe? Acorda de manhã, começa a pensar. Liga o computador
e continua pensando. Lê as notícias e continua pensando. Isso que é vida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olhe, eu trabalho em casa na frente do computador e não é
bem as...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Aí vou almoçar pensando. Termino o almoço, volto para o
computador e continuo pensando. Passar a tarde inteira pensando. E fico ali
pensando até a hora do jantar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Então, mas eu trabalho na frente do computad...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Queria ficar o dia inteiro pensando. Na frente do
computador, pensando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu estou tentando falar qu...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Pensando. Pensando. Pensando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Oi?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Pensando. Pensando. Pensando. Pensando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olhe, é só uma curiosidade, mas o senhor está tentando me
hipnotizar?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Se eu não pudesse passar o dia inteiro em casa pensando,
sabe o que eu gostaria?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Não.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ser político. É isso. Eu queria ficar pensando ou ser
político.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu concordo que essas atividades realmente parecem bem
longe uma da outra, mas, nesse cas...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu sempre adorei política. Aliás, quando eu disse que
queria ficar pensando em casa, uma das coisas era pensar sobre política.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe o que eu queria? Terminar uma única fr...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E ser político no Brasil é fácil. Você precisa de
dinheiro, claro. Mas não só isso. Você precisa de promessas. Promete isso,
promete aquilo, promete aquele outro ali e pronto. Com dinheiro, você ganhou a
eleição. E aí sabe o que eu faria? Iria para casa pensar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu desisto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ia acordar de manhã e ficar pensando. Ligar o computador e
continuar pensando. Ler todas as notícias e continua pensando. Isso que é vida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Certo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Quer dizer, eu não ia ler todas as notícias. Ia ler só
aquelas que me interessam. Aquelas que você vê que não está sendo manipulado.
Agora... As outras... Aquelas que manipulam você... SABE O QUE EU IRIA FAZER
COM ELAS?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Hum... Não ia ler?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– ISSO! EU NÃO VOU PERDER MEU TEMPO LENDO UMA NOTÍCIA QUE ME
MANIPULA!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olha, mas aí o senhor tem um problema. Porque para saber
se a notícia é manipuladora, você precisa ler essa not...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– EU NÃO IA LER!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Certo. Desculpe.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Porque eu não vou fazer como aquelas pessoas que não leem
nada, aí formam uma opinião errada e saem por aí repetindo burrices.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Entendi.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas eu não vou ler as notícias manipuladoras. Só as
outras. Você sabe de quais eu estou falando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sei?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– As que me fazem pensar!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Entendi.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– O que você acha do meu plano?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Olhe, eu acho que...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Você não acha que ele pode funcionar?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Então, eu acho que o senhor...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Porque eu tenho certeza que eu vou ser uma pessoa melhor
fazendo isso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Bem, o que eu acho parece não fazer muita diferen...<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Uma pessoa mais esclarecida.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu ia ser melhor assim. Lendo e pensando. Lendo e
pensando. Lendo e pensando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Isso é a hipnose de novo?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Lendo e pensando o dia inteiro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E a política?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– A política também. Sendo político, lendo e pensando. Sendo
político, lendo e pensando. Sendo político, lendo e pensando. O dia todo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Certo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E pensando sobre política também.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sim, eu já havia imaginado isso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Especialmente política internacional. Adoro política
internacional. Você gosta de política internacional?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Entra aqui à direita. É nessa rua.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Eu adoro. Sabe o que eu queria?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ficar em casa pensando?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Além disso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ser político?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Além disso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Ser político para poder ficar em casa pensando?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Uma guerra entre Rússia e Estados Unidos!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Meu Deus do céu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Mas isso nunca vai acontecer. Não enquanto eu estiver
vivo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– É na próxima quadra.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E eu queria ver só para descobrir quem ia ganhar a guerra.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Entendi.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Porque aí, depois da guerra, eu ia para casa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– E ficaria pensando?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– EXATAMENTE!<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Entendi. Olha, é naquele portão marrom ali.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Sabe o que eu acho dos coreanos?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
– Obrigado. Quanto deu?<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Desci do carro e vi o taxista ir embora. E fiquei cinco
minutos em pé na calçada, fumando um cigarro e tentando me convencer que nada
daquilo tinha acontecido. <o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-31967451.post-43652621078914771182017-04-10T12:44:00.003-03:002017-04-10T18:17:57.695-03:00A Vida é Cheia de Som e Fúria<div class="MsoNormal">
Aí não teve jeito e eu coloquei um CD do Megadeth.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Calma. O post não começou pela metade e eu garanto que logo
você irá entender direito o que isso significa. Essa vai ser uma daquelas histórias
que começa no presente, volta para o passado num flashback nostálgico e depois
voltamos para o presente, onde tudo se encaixa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Então, vamos direto para o flashback, que começa mostrando
uma ruazinha de São Paulo. São várias casas e o Sol está batendo nos quintais.
Temos a impressão de que é um sábado de manhã. Essa é a rua onde eu morava. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, como acontece em todo flashback, agora começa um narração
em off, comigo dizendo para vocês que quando eu era moleque, na rua onde eu
morava tinham vários garotos da minha idade. Era uma enorme turma. E éramos
adolescentes, então algo que quase todos tínhamos em comum era o gosto pela
música. Estou falando do final dos anos 80 e começo dos 90, naquele curto período
entre o hard rock e o heavy metal voltarem à moda e o grunge mudar tudo de novo.
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E, como você deve imaginar, cada menino ali tinha a sua
banda preferida – quem acompanha esse blog sabe que a minha era Iron Maiden.
Mas, paralelamente, existia também uma espécie de caça pela banda mais pesada
do mundo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando descobrimos Megadeth, achamos que tínhamos
encontrado. Mas aí alguém apareceu com um disco do Slayer e o Megadeth perdeu a
liderança. Depois, comprei o Arise do Sepultura, que havia acabado de ser
lançado e a tabela de banda mais pesada do mundo foi novamente alterada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas alguns dos garotos não participavam disso, preferiam
ouvir as bandas que tocavam na rádio e pronto. E beleza: como não existiam
redes sociais, ninguém ali era obrigado a ouvir a mesma música que a maioria
estava ouvindo como acontece hoje.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Só que eu também não era obrigado a ouvir Aerosmith às nove
da manhã de sábado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Antes que algum fã de Aerosmith jogue pedras em mim, deixo
claro aqui que gosto da banda, especialmente da fase dos anos 70 – dos anos 90
em diante a banda perde um pouco da graça para mim, mas eu ainda gosto da fase
Cryin’ e Crazy (mesmo que um pedaço do meu cérebro insista em me avisar que essa
duas músicas são a mesma).<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas vamos deixar a banda de lado por um momento. O menino
que morava na casa ao lado da minha não participava da busca pela banda mais
pesada do mundo. E tudo bem. O problema é que esse menino era o típico
adolescente que só ouvia música no volume máximo quando estava sozinho em casa.
E mesmo naquela época nós sabíamos que era fácil demais fazer isso com os
pais fora de casa.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Se você é adolescente, deixa eu te dar um aviso: o disco do
Slayer no máximo soa muito melhor quando seus pais estão em casa tentando ver
TV. Se você está sozinho em casa a música não é a mesma. É como se ela estivesse
sem o baixo. Você reconhece a música, e ela ainda é legal, mas... Não sei. Falta
algo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Bem, esse garoto só ouvia música no máximo – e cantando
junto, aos berros, para demonstrar ao mundo que estava na adolescência e então
era revoltado – quando estava sozinho em casa. E um sábado ele resolveu fazer
isso. Às nove da manhã. Com Aerosmith.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não sei até aonde alguém pode parecer revoltado cantando Crazy,
mas... Enfim. Hoje eu sei que aquilo era o direito dele. Só que naquele sábado
eu não pensava assim.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Isso porque além de procurarmos a banda mais pesada do
mundo, nós também caçávamos a bebida mais forte do mundo. Essa busca era meio
ingrata, porque já que gastávamos todo nosso dinheiro com discos, tudo o que
conseguíamos beber era Velho Barreiro. Mas isso já era suficiente para eu voltar
para casa trançando as pernas, nas madrugadas de sexta e sábado. Aliás, qualquer dia eu escrevo mais sobre esses porres, porque o que
não faltam são histórias sobre isso. Mas vamos voltar ao Aerosmith.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O menino ligou o som no volume máximo às nove da manhã. Dez
horas antes disso, eu havia começado a beber. Três horas antes disso, eu havia
entrado em casa totalmente encharcado de pinga e deitado, feliz da vida porque
eu não teria hora para acordar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E dois minutos depois do Steven Tyler começar a gritar na
casa ao lado, eu estava sentado na cama – ainda bêbado – tentando entender primeiro
porque eu estava acordado e segundo, que merda era aquela. Dez segundos depois disso,
eu estava descendo as escadas, bêbado de sono, bêbado de álcool e bêbado de ódio.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu sono embriagado e sagrado do sábado de manhã estava destruído
e eu precisava fazer algo a respeito disso. Olhei ao redor procurando por uma
ideia. Não encontrei ideia nenhuma, mas sim uma das caixas de som enormes,
herdadas do toca discos que era da minha avó.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não precisei pensar muito. Abri a porta e coloquei a caixa
de som ali, virada para o quintal. Peguei a outra caixa de som, agradecendo a
Deus por ela ter um cabo de uns cinco metros, e coloquei em cima da outra.
Nesse momento, minha mãe entrou na sala prevendo o pior e perguntando o que eu
iria fazer.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Eu ignorei e fui até o armário de discos. Procurei pelo
Arise e coloquei para tocar, pulando o volume do dois para o nove. Escolhi essa
música abaixo, porque ela tem uma introdução de alguns segundos sem muito peso,
e eu queria que o menino da casa ao lado soubesse o que iria acontecer com ele
antes da pauleira começar. Sim, eu jogo limpo e não ataco pelas costas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" class="YOUTUBE-iframe-video" data-thumbnail-src="https://i.ytimg.com/vi/6BOHpjIZyx0/0.jpg" frameborder="0" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/6BOHpjIZyx0?feature=player_embedded" width="320"></iframe></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<i>Décadas atrás.</i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas a introdução acabou e os riffs começaram a fazer as
janelas tremerem. A bateria fazia o chão vibrar como se eu tivesse instalado um
bate estaca no meio da sala. E a voz do Max Cavalera fez metade dos vizinhos abrirem
as janelas e olharem para o alto, procurando por algum dos cavaleiros do
apocalipse no céu.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O Phil Spector, produtor que inventou o conceito de parede
sonora, ficaria orgulhoso do que eu estava fazendo. Por outro lado, como hoje o
Phil Spector está na cadeia condenado por homicídio, talvez seja melhor
pularmos essa parte.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Durante o solo de guitarra, percebi que minha mãe, ali na
sala, parecia gritar alguma coisa. Ela estava olhando para mim e seus lábios se
moviam, enquanto ela fazia gestos que podiam significar tanto “abaixe essa
merda” como “eu vou matar você”. Na verdade, acho que os gestos significavam as
duas coisas. Tudo o que fiz foi torcer para que ela soubesse ler lábios e responder
que “desculpe, eu não consigo ouvir o que você diz”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Duas músicas depois, o Steven Tyler estava em silêncio,
provavelmente escondido dentro da caixa do CD. E o garoto da casa ao lado
estava num silêncio ainda maior. Desliguei a música, arrumei as caixas de som e
voltei para o quarto, ainda meio bêbado. Dormi até às 14h.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas logo depois que eu me deito temos uma fusão, indicando uma
grande passagem do tempo e que o flashback acabou. Sim, nossa história volta ao
presente. Hoje eu sou casado e me tornei um adulto responsável. Ou pelo menos
eu disfarço muito bem.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quem leu o último post sabe que a casa ao lado da minha foi
ocupada por um <b><a href="http://champ-vinyl.blogspot.com.br/2017/03/nos-que-aqui-estamos-por-vos-acordamos.html" target="_blank">advogado que reza em juridiquês e não deixa ninguém dormir</a></b>. E eu
estava lidando muito bem com isso até uns dias atrás, quando ele encheu sua
casa de pessoas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ok, ele pode dar festas. Eu mesmo dou festas em casa. Só que
quando eu dou festas em casa, eu não peço para uma pessoa ficar ao lado do muro,
perto da porta do vizinho, cantando no máximo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Foi isso que aconteceu. Eu estava no PC e comecei a ouvir gatos
brigando. Fui até o quintal e vi que não eram gatos, mas sim uma mulher de seus
vinte e cinto, trinta anos, com fones de ouvido, cantando de forma desafinada e
aos berros. Ainda dava gritinhos e fazia dancinhas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não foram cinco minutos disso, e sim quase uma hora. Um
momento eu peguei o trecho de uma música e joguei no Google, descobrindo que
era daquela dupla Maiara & Alguma Outra Menina que Começa com Ma Mas não É
Maiara que já vi as pessoas falando no Twitter.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E mesmo as pessoas da casa do vizinho estavam pedindo para
ela parar de cantar, mas ela respondia que “estou agitada e preciso cantar para
espairecer”. Eu pensei em gritar de volta que “estou trabalhando e preciso de silêncio
para escrever”, mas como falei alguns parágrafos acima, agora eu sou adulto e
lido melhor com isso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E sim, eu imediatamente me lembrei do famoso sábado do
Sepultura, que é como meu cérebro arquivou os acontecimentos que vocês viram no
flashback, mas, mais uma vez: eu sou adulto. Eu consigo coexistir no mesmo
mundo que Maiara & Marrakesh. Respirei fundo e tentei me concentrar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Só que minha concentração acabou de vez quando a Esposa
passou pela sala carregando o som que fica na cozinha. Acompanhei com os olhos enquanto
ela colocou o aparelho na janela da sala e ligou o CD que estava lá dentro.
Rolling Stones.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu vou deixar esse CD tocando até essa mulher calar a boca”,
ela disse.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Meu impulso foi dar um pulo e socar o ar, comemorando que “liberou
geral”. Mas mantive as aparências de adulto e apenas olhei com cumplicidade para
minha coleção de CDs, que olhou de volta para mim e sorriu. Nosso momento
estava chegando.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O plano da Esposa não deu certo. O som era baixo demais. Maiara
& Macedônia continuavam gritando. Peguei um CD e fiz uma sugestão: “olha,
eu posso tentar com esse disco aqui”. Ela fez que sim e eu coloquei Slayer para
tocar. Seasons in the Abyss.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Continuou sem efeito, por vários motivos. Primeiro, a janela
fica muito distante de onde a Maiara & Mamadeira estavam se apresentando.
Segundo, o som da cozinha não tem um volume muito alto. Terceiro, eu odeio
todos os CDs mais antigos do Slayer porque eles têm uma mixagem horrível e o
som é abafado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Não havia mais jeito. Virei para a Esposa e perguntei se podia
tentar do meu jeito. Ela disse que sim e eu abracei minha estante de CDs,
dizendo que “meninos, temos autorização oficial”, sentindo meus dezesseis anos
voltarem a correr pelo meu corpo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Tranquei os gatos no quarto. Abri a porta da sala e ouvi Maiara
& Mahabharata cantando. Liguei o aparelho de som da sala. As caixas de som
não eram as da minha avó, mas eram melhores – bem melhores – que as do som que
estava na janela. Como referência, nas festas aqui em casa eu deixo o volume (que
vai de 0 a 40) abaixo do 20.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Peguei um CD que foi feito especialmente para este tipo de
situação: Rust in Peace, do Megadeth, remasterizado e remixado e que se vira
muito bem no volume 15. Coloquei no 40 e dei o play. E dessa vez sem introdução
porque não é sempre que eu jogo limpo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" class="YOUTUBE-iframe-video" data-thumbnail-src="https://i.ytimg.com/vi/9d4ui9q7eDM/0.jpg" frameborder="0" height="266" src="https://www.youtube.com/embed/9d4ui9q7eDM?feature=player_embedded" width="320"></iframe></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<i>Hoje.</i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Os riffs começaram a fazer as janelas tremerem. A bateria
fazia o chão vibrar como se eu tivesse instalado um bate estaca no meio da
sala. E a voz do Dave Mustaine fez metade dos vizinhos abrirem as janelas e
olharem para o alto, procurando por uma revoada de corvos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Fui até o quintal duas músicas depois e vi que Maiara &
Mariposa estavam em silêncio. A garota havia sumido com suas dancinhas e gritinhos.
Problema resolvido. Tanto que a Esposa se aproximou e disse que eu podia
desligar o som.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Claro que eu não virei para ela e respondi que “desculpe, não
estou ouvindo você falar”, porque eu podia ter me tornado novamente um adolescente,
mas ainda tinha noção do perigo. Então, decidi jogar limpo.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Eu vou deixar mais duas músicas, pelo menos”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Mas a imbecil já calou a boca.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Sim. O que eu estou fazendo agora é enviar uma mensagem ao
vizinho”.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E era verdade. As últimas duas canções mostraram para o
vizinho que, na minha casa, sempre existirá pelo menos uma música a mais. E ela
sempre será mais pesada. E ela sempre tocará mais alto.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Desde então, Maiara & Madeira desapareceram e estou chamando
minha coleção de CDs de heavy metal de Terror Moral. E estou seriamente pensando
em tocar a campainha da casa do vizinho e me apresentar, dizendo que “muito
prazer, sou seu novo vizinho e meu nome é Horror.”<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E se o vizinho da casa ao lado não entender, eu vou sugerir
que ele assista a Apocalypse Now, especialmente a cena em que o Marlon Brando
diz que “o horror tem um rosto, e você deve se tornar amigo do horror. O horror
e o terror moral são seus amigos. Senão, eles são inimigos a serem temidos.
Eles são inimigos verdadeiros”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Afinal, quando eu era adolescente, eu aumentava o volume.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Hoje, adulto, eu envio mensagens.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
Rob Gordonhttp://www.blogger.com/profile/12347089709289451113noreply@blogger.com5