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11 de fevereiro de 2020

Invocação do Mal

The devil went down to Georgia
He was lookin' for a soul to steal
(Charlie Daniels Band)


Outro dia fomos até o Mercadão do Ipiranga.

Aliás, quando eu era moleque, sempre que ouvia a expressão “Mercadão” acreditava que se tratava de algo meio medieval. Imaginava centenas de barracas, com vendedores depenando galinhas vivas, rancheiros transportando pequenos rebanhos de gado, pessoas trocando mulas por barris de cerveja, gente espirrando por causa do coronavírus, artesãos sentados na lama almoçando cebolas cruas, coisas assim.

Por isso, a primeira vez que fui em um Mercadão fiquei surpreso ao ver lojas com produtos refrigerados, algumas até mesmo com vitrines... No geral, o Mercadão era uma mistura de feira com supermercado. Era uma espécie de shopping center de comida, até mesmo com praça de alimentação repleta de pessoas comendo sanduíches, pizzas e comidas típicas. Tudo muito moderno, sem lama ou pessoas abrindo caminho para os soldados do rei.

Mas o Mercadão do Ipiranga é um pouco diferente. Ele segue o modelo dos outros mercadões, mas está preso em uma espécie de limbo onde o tempo não funciona de forma como estamos acostumados.

Algumas de suas barracas, por exemplo, estão no futuro, vendendo coisas como uva em pó, melancia desidratada e kiwi pulverizado. É quase uma barraca de comidas típicas da NASA. Outros, porém, ainda estão no passado, e tem como principal clientela bruxas que precisam repor seus estoques de pelos de tarântula, extrato de morcego, penas de pássaros tropicais ou osso de serpente em pó.

É uma espécie de encruzilhada temporal, onde não existe futuro e passado. Tudo é agora. Tudo nunca aconteceu. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo eternamente.

Mas essa não é uma história de ficção científica, e sim de terror. Porque no meio disso estávamos eu, a Esposa e Filipino.

A Esposa queria comprar ingredientes para fazer pães e eu fui como companhia. O problema é que, enquanto fazia compras, Filipino no meu colo, queria olhar tudo de perto – e, quando digo “olhar de perto”, quero dizer “olhar com as mãos”.

Assim, ele apertava embalagens de asas de libélula, derrubava ossos abençoados dos dedos de São Raimundo, espremia frutas cristalizadas refinadas no planeta Satabe III... A hora que ele começou a se debater no meu colo querendo tocar numa bola branca que eu não consegui identificar se era animal, vegetal ou mineral, desisti.

“Eu vou dar uma volta com ele”, disse para a Esposa.

“Tá bom, eu já estou pagando aqui”, ela devolveu.

Assim, saí andando com Filipino no colo, olhando outras barracas, tomando cuidado para nenhuma mercadoria – fosse ela terrestre ou não – ficasse ao seu alcance. O problema é que havia mercadorias por todo lado, então a caminhada foi difícil. Porém, tive um golpe de sorte quando descobri que, em meio a todas aquelas mercadorias estranhas que fazem passado e futuro se fundir, existia uma área infantil.

Tratava-se de uma casa azul de brinquedo, grande o suficiente para Filipino andar dentro dela. Na porta, brinquedos como cavalinhos, centopeias e larvas de Ceti Alpha V. Pela aparência dos brinquedos, alguns deles deviam ter ouvido em primeira mão o brado retumbante de um povo heroico nas margens plácidas do Ipiranga. Aliás, quando o Sol da liberdade brilhou em raios fúlgidos no céu da pátria, alguns já deviam ser velhos.

Filipino, porém, foi direto para a casinha e eu fui atrás dele. Quando chegamos perto da porta, percebi que, dentro da casa, havia uma pequena mesa e alguns banquinhos para crianças.

E ele estava ali.

Estava sentado de costas para a porta, observando atentamente a parede à frente, sem dar a menor atenção ao movimento do mercado. Pelo seu tamanho, parecia ser uma criança, mas... Havia algo de errado em sua postura. Ele se sentava de forma rígida, mas ao mesmo tempo, parecia escorrer pela cadeira. Filipino parou e eu também. Estreitei os olhos para entender melhor como ele conseguia se sentar daquele modo.

Foi nessa hora que ele virou a cabeça e olhou diretamente para mim.

Seu rosto era quase igual ao menino do duelo de banjos, mas com toques de trombadinha da Londres vitoriana.

Em algum lugar do meu cérebro, meus neurônios começaram a entoar a frase “for the devil sends the Beast with wrath, because ke knows the time is short”.

Aqui vale a pena explicar que meu cérebro funciona em quatro áreas diferentes: os neurônios de uma parte estão constantemente em um show de rock, outros ficam assistindo a Star Trek repetidamente, um terceiro grupo está sempre escrevendo, enquanto a última parte fica encarregada de me manter vivo e responder alguma coisa quando falam comigo.

Então, numa situação normal, a frase teria vindo dos meus neurônios que vivem num show de rock. Mas não. O som vinha da área responsável por me manter vivo. Não era um show do Iron Maiden, mas sim meu instinto de sobrevivência.

E o aviso não era exagero. A criatura olhou diretamente para Filipino e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, seus olhos se tornaram completamente brancos. Suas pupilas desapareceram como se nunca tivessem existido, enquanto ele continuava encarando meu filho com aqueles olhos vazios e sem vida.

As luzes do mercado se tornaram vermelhas e começaram a piscar. Senti um vento quente, como se alguém tivesse aberto a porta de uma caldeira. As paredes do mercado começaram a derreter, e, ao redor de toda a área infantil, um fosso se abriu revelando almas queimando em agonia por toda a eternidade.

“Filipino, vamos brincar em outro lugar?”

Filipino, porém, parecia hipnotizado, como se sua mente estivesse sendo controlada.

“O papai acha que esse menino não é um menino”, eu insisti.

Filipino continuou estático. Assim, tive que me abaixar ao seu lado e forçá-lo a olhar para mim.

“Ele está aqui para se alimentar da sua alma! Escuta o papai! Vamos embora!”

Meu tom de voz fez Filipino acordar do transe. Olhei ao redor estudando as saídas do mercado, me preparando para correr por uma delas explicando que “já é muito tarde para a mamãe, mas nós podemos escapar”.  Mas não havia por onde sair.

Em uma das portas, Al Pacino gargalhava fazendo água benta ferver com o dedo. Em outra, Robert De Niro comia um ovo olhando diretamente para nós. Perto da terceira saída, uma mulher com roupa de babá gritava “It’s all for you, Damien”, enquanto se preparava para se atirar do teto da barraca de peixes com uma corda no pescoço”. E na porta à nossa direita, a mais perto de onde estávamos, estava bloqueada pelos vizinhos de Rosemary que, com um carrinho de bebê todo negro, me prometiam sucesso em troca do meu filho.

E a criatura continuava com seus olhos brancos, tentando arrancar a essência vital de Filipino. Eu não tinha como escapar, mas precisava proteger meu filho. Assim, ainda agachado, olhei diretamente para ele.

“Filipino, está vendo aquela barraca de peixes ali?”, eu apontei para a barraca. “Do lado direito, tem uma bandeja cheia de bacalhau salgado. Corre até ali, apanha todo o sal que você conseguir e faz um círculo no chão ao seu redor. Espera a mamãe ali, mas não sai do círculo de sal. Entendeu?”

Eu ainda estava olhando para Filipino quando ouvi uma atrás de mim.

“É impressão minha ou esse menino é um demônio?”

Era a Esposa. Pelo menos, eu não estava mais sozinho. Isso facilitava tudo. Peguei Filipino e o coloquei no colo da Esposa. Me virei para a criatura, que ainda me olhava para nós com raiva, e me preparei para me atirar dentro da casa, gritando que “o sangue de Cristo tem poder” e ganhar tempo para minha família fugir. Mas não foi preciso.

“LEGIÃO! PARA COM ISSO!”, alguém gritou atrás de nós.

Era a mãe do demônio, que de repente percebeu o que estava acontecendo. Os olhos da criatura voltaram ao normal. Ainda estavam com raiva, mas pelo menos estavam com pupilas. O fosso se fechou, as paredes pararam de derreter e as luzes do mercado voltarem ao normal.

“EU JÁ FALEI PARA VOCÊ NÃO FAZER ISSO COM O OLHO”, ela insistiu.

Eu não sei se Legão não podia capturar nenhuma alma naquele dia porque estava de castigo, ou se não podia comer alma nenhuma porque já havia almoçado um pastel na barraca ao lado. Mas não me importei. Fomos andando para trás, lentamente, tentando ganhar distância.

Quando conseguimos nos afastar, demos meia volta e fomos embora, ainda ouvindo a mãe reclamar alguma coisa sobre Legião ter que conversar com o pai dele sobre isso. imaginei como seria o pai de Legião e senti um arrepio. E o arrepio só passou quando estávamos longe do mercado, sentados num restaurante para almoçar.

Por via das dúvidas, numa mesa abaixo de um crucifixo.

15 comentários:

  1. Kkkk pensei que fosse fazer referência ao menino pastor. Veja a grafia de Legião no antepenúltimo parágrafo. Abs

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  2. Referências aos clássicos são sempre bem vinda. Boa história!

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  3. Enfrentar Legião não é para qualquer um. Parabéns para o Filipino por ter aguentado firme. Rob, talvez ele possa te ensinar o truque.

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  4. Nossa, hoje recebi um e-mail com a atualização do seu blog. Nem acreditei! Eu descobri seu blog quando criança e acompanhei direto por vários anos. Legal saber que você continua escrevendo! Sucesso para você.

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  6. Muito bom de vez em quando aparecer aqui no blog e ver texto novo. E, ainda melhor, lotado de referências, como seus melhores textos sempre foram. Obrigado por continuar escrevendo (sim, eu sei, faz quase dois meses desde esse texto, mas, ainda assim, melhor que a pausa de 6 meses que rolou no ano passado :)

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  7. Adorei! Filipinho é um menino corajoso! :)

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  8. muito bom, eu sinceramente pensei que fosse uma cronica comum nas primeiras linhas e quando os primeiros elementos fantásticos surgiram me peguei pensando "ata, uma metáfora", mas a cada novo elemento adicionado a ficção se tornou mais crível. Como um balde enchendo aos poucos. Até eu me perguntar perto do fim se tudo aquilo não passava de um sonho ou delírio. Primeiro texto seu que leio, mas sinceramente achei bem interessante.
    PS: vim pelo podcast...

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  9. Anônimo2:25 PM

    gostei bastante, muito criativo.

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  10. Thanks for a marvelous posting! Sure to bookmark this blog. have a nice day!

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