De uns tempos para cá, venho sentindo vontade de voltar a
ser criança. Normalmente acontece quando estou fazendo algo que me deixa confortável.
E é uma sensação que sempre chega sem avisar. Estou lendo está um momento
interessante do livro ou um diálogo num filme qualquer e de repente sinto uma
espécie de coceira, mais gostosa que incômoda, que parece não ter lugar
específico.
Mas, para ser sincero, não é algo que experimento o tempo
inteiro. Na verdade, acontece com pouca frequência. Porém, sempre preciso para
o que estou fazendo e dar atenção para ela.
Já descobri que não adianta procurar de qual lugar do meu
corpo vem essa sensação. Uma vez tive certeza que era no lado esquerdo, pouco
acima da cintura, mas assim que prestei atenção nesse local ela se assustou e
partiu como uma folha levada rua abaixo pelo vento.
Por isso, comecei a prestar atenção nessa pequena coceira
com o canto dos olhos, sem que ela perceba que está sendo estudada. Finjo que
continuo concentrado no livro ou que presto atenção na conversa na televisão, enquanto
tento entender o que essa sensação quer comigo. Na primeira vez que fiz isso,
não enxerguei muita coisa, mas na segunda consegui identificar que, junto com a
coceira, alguns sentimentos haviam escapado de algum lugar da minha memória e
surgiram em forma de palavras, dançando como insetos ao redor de uma lâmpada.
Eu não sou bom com palavras como gostaria de ser, então agarrei
num gesto rápido a primeira palavra que passou na minha frente. Abri a mão com
cuidado para que ela não escapasse e lá estava ela.
Proteção.
Não era uma proteção qualquer, mas uma proteção de criança.
Uma proteção de quem está brincando no tapete da sala sem horário ou
compromissos, sabendo que é vigiado pela mãe, que observa atenta da porta da
cozinha. Ou de quem passa o dia com a certeza que o pai atravessará a porta em
algum momento antes do jantar.
Pode ser também uma proteção ainda mais elaborada, experimentada
por uma criança que descobriu que os dias seguem uma espécie de padrão no qual nada
de errado acontece – deixando de lado um eventual tombo na cozinha. Quando
ficamos mais velhos, uma sensação como essa pode causar tédio, mas isso não
acontece em uma criança que, mesmo sem fazer ideia disso, tem todo o tempo do
mundo pela frente.
Fechei a mão com cuidado e senti a proteção se debatendo
dentro dela. O til, o risco do t e até mesmo a cedilha se moviam
freneticamente, raspando minha pele mas sem machucar. Me senti um pouco cruel
por fazer com que justamente a palavra proteção pudesse se sentir tão
desprotegida e cheguei a pensar em aproximar minha mão dos lábios e sussurrar
uma palavra de conforto. Palavras de conforto sempre trazem segurança.
Mas mudei de ideia.
Me levantei do sofá com cuidado para não assustá-la ainda
mais e caminhei em direção à escada. Subi contando mentalmente os degraus – eu sei
que são quinze, mas conto todos assim mesmo, talvez em busca de um pouco de
proteção ao ver que todos estão ali – e no andar de cima, caminhei calmamente
até o berço.
Meu filho dormia. Enrolado em um cobertor com apenas um dos
pés descoberto, sua cabeça estava virada para o lado. Tive a certeza de que ele
estava sonhando, apesar de nada me mostrar isso, e tentei adivinhar sobre o que
seria o sonho. Estava imaginando algo que parecia ele correndo desajeitado em
um enorme gramado com muitas árvores ao fundo. Tudo acontecia numa manhã ensolarada
– na minha cabeça, não era uma manhã comum, mas sim uma manhã de sábado – e ele
ria a cada metro percorrido.
O sonho do meu filho desapareceu da minha cabeça quando a
palavra voltou a se debater dentro da minha mão, descobrindo que, com certo
esforço e um pouco de sorte, poderia escapar por entre meus dedos. Assim, me
debrucei e aproximei a mão do rosto do meu filho, abrindo os dedos lentamente.
A palavra não saiu voando. Ela olhou ao redor, girando suas
letras para todos os lados. Devia estar pensando sobre como havia chegado até
ali. E, quando observou meu filho, deslizou rapidamente por entre meus dedos,
encostando com cuidado no travesseiro. Primeiro a letra “o”, depois o “ã” até
finalmente o P. E, como um cachorrinho, a proteção deu três voltas ao redor de
si mesma antes de deitar virada de frente para meu filho.
Observei os dois por mais alguns instantes, até dar meia
volta e sair do quarto com cuidado para não acordá-lo ou não assustar a
palavra. E, quando estava no meio da escada, pude ouvir ele rindo. Ele faz isso
às vezes. Gargalha enquanto dorme, talvez para mostrar ao mundo que está
sonhando. Correr naquele gramado ensolarado deve ser uma experiência fascinante.
Voltei para sala descobrindo que a coceira havia dado lugar à
certeza de que a palavra proteção ficaria com meu filho pelo resto da noite.
Talvez, no dia seguinte, quando ele acordar ela ainda esteja lá. E ele passará
o dia com ela, explicando para sua nova amiga qual a sensação de correr no
gramado e brincando com a palavra em seus dedinhos, enquanto investiga a forma
de cada letra. Completamente protegido.
E, ao saber que a palavra estava lá, me senti seguro, quase como se fosse uma criança.
Me senti protegido.
E voltei a ler mais um pouco do meu livro.
Cara, seus textos são fantásticos.
ResponderExcluirSorri enquanto lia os últimos paragrafos.
Não some denovo, por favor !
Cara...
ResponderExcluirVery scientific and useful information. Thank you!
ResponderExcluirNossa que texto mais comovente.
ResponderExcluirA sua escrita é fascinante.
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