Primeiro, cabe um esclarecimento: eu nunca abandonei o blog.
Na verdade, quem me abandonou foi o tempo. O começo do ano foi repleto de
freelas que se amontoaram e projetos paralelos que me tomaram praticamente todo
o tempo que eu tinha nos últimos meses.
Além disso, o pouco tempo que eu tive livre nesse período,
usei como leitor. Fazia tempo que eu não lia tanto e, às vezes, é preciso parar
de escrever e ler, mesmo que para reciclar as ideias. Enfim, a partir de agora,
a ideia é voltar a postar normalmente.
Mesmo porque o resto da minha vida continua o mesmo. Eu
continuo escrevendo, continuo gostando das mesmas coisas... E continuo não
conseguindo dormir direito.
Certo. Vamos explicar isso desde o começo. Quem acompanha o
blog sabe que, desde que nos mudamos para essa casa alguns anos atrás, paramos
de dormir. A casa ao lado da nossa era habitada por dezenas de pessoas (e isso
não é um erro de digitação) que conseguiam se comunicar somente aos berros.
Isso acontecia o dia inteiro. Isso acontecia todos os dias.
De uns meses para cá, porém, tudo mudou. Algumas pessoas da
casa morreram, outras saíram daí... E a casa ficou vazia. Quer dizer, para as
pessoas que passavam na rua ela estava vazia. Mas, para mim, ela estava
silenciosa. Era a única forma que eu conseguia olhar para a casa ao lado. Não
fazia diferença se havia alguém lá dentro ou não, e sim o fato de que eu não
ouvia mais nada.
Às vezes eu estava trabalhando e parava de digitar, apenas
para ficar alguns minutos apreciando o silêncio – e quando você mora num lugar
onde os vizinhos gritam o dia inteiro, o silêncio soa quase como uma Ave Maria
de Schubert.
Então, de uns tempos para cá, eu voltei a dormir como uma
pessoa normal, sem ser acordado junto com o Sol ao som de operetas cantadas a
todo volume sobre temas como a máquina de lavar que anda pelo quintal ou quem
ficou de comprar o frango do almoço.
Mas agora tudo isso acabou. Temos um novo morador na casa.
Quer dizer, eu acho que ele é morador. Mas não tenho
certeza. Primeiro, ele aparece aí somente à noite. Ok, ele pode trabalhar o dia
inteiro. Mas eu sempre vejo uma das antigas moradoras entrando e saindo da
casa. Ok, ela pode ser apegada ao imóvel e decidiu entrar escondida para ficar
vendo TV. Não é problema meu.
O que é problema meu é que o sujeito decidiu assumir o
legado do barulho e da gritaria.
E sim, ele mora sozinho, você não leu errado.
Pouco antes das seis da manhã, ele começa a falar no
telefone – e sempre aos berros. Os assuntos são tão insanos quanto a situação,
e vão do preço da gasolina nas cidades do interior ou compra e venda de
sementes no mercado municipal. E ele fica exatamente em um ponto da sua casa
que faz com que ele pareça estar dentro do meu quarto.
Discutindo sementes. Aos berros. Às seis da manhã.
Só que, nas últimas semanas, a situação piorou.
Aparentemente, quando ele não tem com quem conversar, ele decide que a única
saída para mostrar ao mundo que ele está acordado é falar sozinho. E qual a
melhor maneira de falar sozinho sem parecer louco?
Rezando.
Praticamente todos os dias o sujeito acorda e começa a
rezar. E veja bem, ele não me parece estar conversando com Deus. Pelo volume
que ele reza, tenho quase certeza que o sujeito é politeísta, porque ele não
parece estar apenas rezando, mas sim em pé em cima de um caixote, discursando
para todo um panteão de deuses e semideuses e heróis mitológicos.
Eu até consigo escapar do “pai nosso” e do que “estais no
céu”, mas normalmente começo a acordar no “santificado seja o nosso nome”. No
“assim na Terra como no céu” já estou batendo a cabeça na parede e pedindo por
uma morte rápida, e no “amém” já desisti e estou indo para a cozinha, jurando
de morte todas as pessoas que dizem que Deus ajuda a quem cedo madruga.
Todo dia agora é isso.
Eu cheguei até a pensar em alguns truques para tentar driblar a
situação.
A primeira delas eu descartei logo de cara porque daria
muito trabalho – e poderia me arrumar problemas com a polícia. Seria alugar uma
fantasia de anjo, pular o muro e aparecer na janela do cara no meio da
madrugada e dizer a ele que “sou um anjo do Senhor e Ele exige que você vá até
o alto de uma montanha e sacrifique suas cordas vocais para provar sua fé. E
precisa ser agora. Aliás, Deus está com tanta pressa que eu até trouxe uma faca
para te emprestar. Ela parece uma faca de pão, mas vai funcionar. E está
limpinha. Coloca uma roupa aí, porque não tenho a noite inteira”.
Mas também pensei em gravar uma mensagem dizendo “Oi, você
entrou em contato com Deus, mas o paraíso ainda está fechado. Por favor, envie
sua oração de segunda à sexta, no horário comercial e teremos grande prazer em
analisar seu pedido” e colocar isso para tocar no quintal sempre que o cara
começasse a rezar.
Outra ideia foi comprar um arbusto e colocar na garagem do
sujeito, encher de álcool e tacar fogo, deixando perto um bilhete escrito “Eu
sou o Senhor teu Deus. Fui Eu quem lhe tirei da terra do Egito e o conduzi pelo
deserto. Ah, a propósito, Eu escuto muito bem, você não precisa gritar”.
Mas claro que não fiz nada disso. Ao contrário, fiquei
apenas morrendo de sono e torcendo para que lancem logo uma versão atualizada
dos dez mandamentos (algo que, na minha opinião, já deveria ter sido feito faz
tempo), com um dos mandamentos envolvendo alguma norma como “Deixai seus
vizinhos dormirem” ou “Respeitai o sono do próximo”.
Agora, se você acha que a minha vida está um inferno, calma
que a coisa ainda piora. Um dia desses, ouvimos com cuidado a oração do
sujeito. Isso não quer dizer que fomos até o muro ouvir, e sim que abaixamos o
som da TV. E eu já tinha deduzido pelas conversas do telefone que ele era
advogado. Bem, essa reza que ouvimos contava com o seguinte trecho:
Que a nossa inocência seja declarada
Mesmo que haja base legal para a acusação.
Não. Eu não estou inventando isso. O sujeito reza em
juridiquês. Eu não sei se ele perdeu sua Bíblia e resolveu usar o Código Penal
no lugar, ou se ele é um advogado tão incompetente que precisa pedir uma
forcinha para Deus antes de cada caso.
Eu sei que no dia que ouvi isso, desisti de entender. Até
pensei em algumas piadas, imaginando o sujeito dentro da sua igreja jurídica e
recebendo uma hóstia enquanto o padre pergunta se “você aceita o habeas corpus
de Cristo?”, mas todas elas eram horríveis demais para virar crônica.
Assim, tudo o que eu fiz foi ir até o quintal, acender um
cigarro e olhar para os céus, perguntando “Por que é sempre comigo?”.
Mas claro
que ninguém responde. Provavelmente porque provavelmente estão ocupados demais
tentando entender o que o advogado louco da casa ao lado está pedindo dessa vez.
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Vai que ele tá treinando pra se defender quando Deus perguntar "você acha que Eu sou surdo?" ou quando alguém dizer a ele o que ele pode fazer com sementes às seis da manhã =P
ResponderExcluirComo gosto de Heavy Metal, eu sacrificaria uma manhã acordando mais cedo que o Advogado dos Céus e colocaria um Slayer bem alto pra tocar, virado pra janela da criatura. Um Blues talvez não surta um efeito tão repreendedor...
ResponderExcluirEu leio e consigo imaginar os balõezinhos de pensamento tramando a realização das ideias... Imagino o anjo, o arbusto e fico rindo sozinha que nem uma retardada.
ResponderExcluirObrigada por isso!
Como crônica é um PUTA trabalho! Como relato de vida quem gosta do Rob como eu fica pesaroso... mas é o jeito né meu velho? Hahaha li a crônica enquanto estou aqui em uma briga de faca com o vizinho novo que cisma que a casa dele é um trio elétrico regado a funk, pagode e sertanejo... resolvi colocar as caixas aqui pra tocar um The Wall de leve ;) - Parabéns pelo texto foda e espero que o "seu santo seja forte pra vencer o do advogado lá em cima". Abração
ResponderExcluirJá pensou em gritar de volta? "PÁRA DE GRITAR AÍ Ô FILHO DA P*TA"! Costuma funcionar com pessoas sem educação.
ResponderExcluirhahaha seria legal mandar um bilhete por debaixo da porta se passando por Deus. Ah obrigado pelo podcasts seu e do Fabio, vocês dois são grandes caras.
ResponderExcluirNossa, infelizmente fazia muito tempo que eu não visitava seus blogs. Mas é sempre um grande prazer ler os seus textos.
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