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21 de março de 2017

Nós que Aqui Estamos por Vós Acordamos

Primeiro, cabe um esclarecimento: eu nunca abandonei o blog. Na verdade, quem me abandonou foi o tempo. O começo do ano foi repleto de freelas que se amontoaram e projetos paralelos que me tomaram praticamente todo o tempo que eu tinha nos últimos meses.

Além disso, o pouco tempo que eu tive livre nesse período, usei como leitor. Fazia tempo que eu não lia tanto e, às vezes, é preciso parar de escrever e ler, mesmo que para reciclar as ideias. Enfim, a partir de agora, a ideia é voltar a postar normalmente.

Mesmo porque o resto da minha vida continua o mesmo. Eu continuo escrevendo, continuo gostando das mesmas coisas... E continuo não conseguindo dormir direito.

Certo. Vamos explicar isso desde o começo. Quem acompanha o blog sabe que, desde que nos mudamos para essa casa alguns anos atrás, paramos de dormir. A casa ao lado da nossa era habitada por dezenas de pessoas (e isso não é um erro de digitação) que conseguiam se comunicar somente aos berros. Isso acontecia o dia inteiro. Isso acontecia todos os dias.

De uns meses para cá, porém, tudo mudou. Algumas pessoas da casa morreram, outras saíram daí... E a casa ficou vazia. Quer dizer, para as pessoas que passavam na rua ela estava vazia. Mas, para mim, ela estava silenciosa. Era a única forma que eu conseguia olhar para a casa ao lado. Não fazia diferença se havia alguém lá dentro ou não, e sim o fato de que eu não ouvia mais nada.

Às vezes eu estava trabalhando e parava de digitar, apenas para ficar alguns minutos apreciando o silêncio – e quando você mora num lugar onde os vizinhos gritam o dia inteiro, o silêncio soa quase como uma Ave Maria de Schubert.

Então, de uns tempos para cá, eu voltei a dormir como uma pessoa normal, sem ser acordado junto com o Sol ao som de operetas cantadas a todo volume sobre temas como a máquina de lavar que anda pelo quintal ou quem ficou de comprar o frango do almoço.

Mas agora tudo isso acabou. Temos um novo morador na casa.

Quer dizer, eu acho que ele é morador. Mas não tenho certeza. Primeiro, ele aparece aí somente à noite. Ok, ele pode trabalhar o dia inteiro. Mas eu sempre vejo uma das antigas moradoras entrando e saindo da casa. Ok, ela pode ser apegada ao imóvel e decidiu entrar escondida para ficar vendo TV. Não é problema meu.

O que é problema meu é que o sujeito decidiu assumir o legado do barulho e da gritaria.

E sim, ele mora sozinho, você não leu errado.

Pouco antes das seis da manhã, ele começa a falar no telefone – e sempre aos berros. Os assuntos são tão insanos quanto a situação, e vão do preço da gasolina nas cidades do interior ou compra e venda de sementes no mercado municipal. E ele fica exatamente em um ponto da sua casa que faz com que ele pareça estar dentro do meu quarto.

Discutindo sementes. Aos berros. Às seis da manhã.

Só que, nas últimas semanas, a situação piorou. Aparentemente, quando ele não tem com quem conversar, ele decide que a única saída para mostrar ao mundo que ele está acordado é falar sozinho. E qual a melhor maneira de falar sozinho sem parecer louco?

Rezando.

Praticamente todos os dias o sujeito acorda e começa a rezar. E veja bem, ele não me parece estar conversando com Deus. Pelo volume que ele reza, tenho quase certeza que o sujeito é politeísta, porque ele não parece estar apenas rezando, mas sim em pé em cima de um caixote, discursando para todo um panteão de deuses e semideuses e heróis mitológicos.

Eu até consigo escapar do “pai nosso” e do que “estais no céu”, mas normalmente começo a acordar no “santificado seja o nosso nome”. No “assim na Terra como no céu” já estou batendo a cabeça na parede e pedindo por uma morte rápida, e no “amém” já desisti e estou indo para a cozinha, jurando de morte todas as pessoas que dizem que Deus ajuda a quem cedo madruga.

Todo dia agora é isso.  Eu cheguei até a pensar em alguns truques para tentar driblar a situação.

A primeira delas eu descartei logo de cara porque daria muito trabalho – e poderia me arrumar problemas com a polícia. Seria alugar uma fantasia de anjo, pular o muro e aparecer na janela do cara no meio da madrugada e dizer a ele que “sou um anjo do Senhor e Ele exige que você vá até o alto de uma montanha e sacrifique suas cordas vocais para provar sua fé. E precisa ser agora. Aliás, Deus está com tanta pressa que eu até trouxe uma faca para te emprestar. Ela parece uma faca de pão, mas vai funcionar. E está limpinha. Coloca uma roupa aí, porque não tenho a noite inteira”.

Mas também pensei em gravar uma mensagem dizendo “Oi, você entrou em contato com Deus, mas o paraíso ainda está fechado. Por favor, envie sua oração de segunda à sexta, no horário comercial e teremos grande prazer em analisar seu pedido” e colocar isso para tocar no quintal sempre que o cara começasse a rezar.

Outra ideia foi comprar um arbusto e colocar na garagem do sujeito, encher de álcool e tacar fogo, deixando perto um bilhete escrito “Eu sou o Senhor teu Deus. Fui Eu quem lhe tirei da terra do Egito e o conduzi pelo deserto. Ah, a propósito, Eu escuto muito bem, você não precisa gritar”.

Mas claro que não fiz nada disso. Ao contrário, fiquei apenas morrendo de sono e torcendo para que lancem logo uma versão atualizada dos dez mandamentos (algo que, na minha opinião, já deveria ter sido feito faz tempo), com um dos mandamentos envolvendo alguma norma como “Deixai seus vizinhos dormirem” ou “Respeitai o sono do próximo”.

Agora, se você acha que a minha vida está um inferno, calma que a coisa ainda piora. Um dia desses, ouvimos com cuidado a oração do sujeito. Isso não quer dizer que fomos até o muro ouvir, e sim que abaixamos o som da TV. E eu já tinha deduzido pelas conversas do telefone que ele era advogado. Bem, essa reza que ouvimos contava com o seguinte trecho:

Que a nossa inocência seja declarada

Mesmo que haja base legal para a acusação.

Não. Eu não estou inventando isso. O sujeito reza em juridiquês. Eu não sei se ele perdeu sua Bíblia e resolveu usar o Código Penal no lugar, ou se ele é um advogado tão incompetente que precisa pedir uma forcinha para Deus antes de cada caso.

Eu sei que no dia que ouvi isso, desisti de entender. Até pensei em algumas piadas, imaginando o sujeito dentro da sua igreja jurídica e recebendo uma hóstia enquanto o padre pergunta se “você aceita o habeas corpus de Cristo?”, mas todas elas eram horríveis demais para virar crônica.

Assim, tudo o que eu fiz foi ir até o quintal, acender um cigarro e olhar para os céus, perguntando “Por que é sempre comigo?”.

Mas claro que ninguém responde. Provavelmente porque provavelmente estão ocupados demais tentando entender o que o advogado louco da casa ao lado está pedindo dessa vez.



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7 comentários:

  1. Vai que ele tá treinando pra se defender quando Deus perguntar "você acha que Eu sou surdo?" ou quando alguém dizer a ele o que ele pode fazer com sementes às seis da manhã =P

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  2. Como gosto de Heavy Metal, eu sacrificaria uma manhã acordando mais cedo que o Advogado dos Céus e colocaria um Slayer bem alto pra tocar, virado pra janela da criatura. Um Blues talvez não surta um efeito tão repreendedor...

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  3. Eu leio e consigo imaginar os balõezinhos de pensamento tramando a realização das ideias... Imagino o anjo, o arbusto e fico rindo sozinha que nem uma retardada.
    Obrigada por isso!

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  4. Claudio Fermes7:12 PM

    Como crônica é um PUTA trabalho! Como relato de vida quem gosta do Rob como eu fica pesaroso... mas é o jeito né meu velho? Hahaha li a crônica enquanto estou aqui em uma briga de faca com o vizinho novo que cisma que a casa dele é um trio elétrico regado a funk, pagode e sertanejo... resolvi colocar as caixas aqui pra tocar um The Wall de leve ;) - Parabéns pelo texto foda e espero que o "seu santo seja forte pra vencer o do advogado lá em cima". Abração

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  5. Já pensou em gritar de volta? "PÁRA DE GRITAR AÍ Ô FILHO DA P*TA"! Costuma funcionar com pessoas sem educação.

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  6. Francisco8:06 PM

    hahaha seria legal mandar um bilhete por debaixo da porta se passando por Deus. Ah obrigado pelo podcasts seu e do Fabio, vocês dois são grandes caras.

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  7. Nossa, infelizmente fazia muito tempo que eu não visitava seus blogs. Mas é sempre um grande prazer ler os seus textos.

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