Eu confesso que dei risada a primeira vez em que vi um daqueles
cartazes dizendo que “é proibido entrar com capacete” que às vezes a gente vê
em lojas e padarias. Sim, eu sei que isso é para evitar assaltos, mas não posso
negar que acho uma determinação engraçada – talvez porque a ideia de uma pessoa
ficar andando a pé com um capacete na cabeça soa meio... Não sei. Desenho
animado.
Mas, enfim... Outro dia eu descobri que talvez esses
cartazes sejam colocados por outro motivo diferente de assaltos. Vocês já
tentaram conversar com alguém que está usando um capacete? É virtualmente
impossível, e eu não fazia ideia disso até pedir uma pizza na semana passada.
Antes de continuar, eu preciso falar um pouco sobre a
máquina de débito dessa pizzaria. Todas as comidas que pedimos aqui em casa são
pagas no débito, então os entregadores trazem sua maquininha. Eles dão boa noite, eu
entrego o cartão, eles me dão a maquininha, eu digito a senha, a operação é
aprovada, eu pego a comida e pronto, todos ficam felizes.
Menos com essa pizzaria. A pizza deles é muito boa, mas o
problema é que a máquina de débito deles não parece acompanhar esse padrão de qualidade. Ela deve
ter um processador usado nos anos 80 e sua conexão deve ser feita com alguma
antena que fica na região Centro-Oeste do país. Então, normalmente eu peço a
pizza para jantar e só consigo entrar em casa com a minha pizza quando as pessoas já
estão no dia seguinte, decidindo o que irão almoçar.
Acabou de me ocorrer aqui de que talvez eu não esteja
pedindo pizzas, mas sim fendas no tecido do espaço-tempo. Aliás, posso até
fazer um experimento e pedir pizza todas as noites durante cinco anos, para
verificar se, depois desse tempo, eu envelheci na mesma proporção que meus
vizinhos ou se eu experimentei outra velocidade temporal.
Mas, enfim... Sexta-passada nós pedimos uma pizza e, depois
de uns trinta minutos a pizza chegou. Abri a porta e fui até o portão, onde o
H. G. Wells que entrega pizzas ali estava me esperando com sua maquininha do
tempo que faz pagamentos.
E, claro, usando seu capacete, que aparentemente funciona como um tradutor
universal invertido: tudo o que ele fala se torna um idioma alienígena.
Mas eu o cumprimentei normalmente.
– Boa noite.
– Mné.
– Oi?
– Ba-mné.
– Hã... Ok. Qual o valor?
– Trotoenta.
– Quanto?
– Troto...
– Olha, eu não estou...
–... Enta.
– Eu realmente não estou conseguindo...
Aparentemente, no planeta onde ele vive as pessoas estão
mais acostumadas com esse tipo de situação, então o sujeito apenas me entregou a nota
fiscal. Bati os olhos e descobri que trotoenta era trinta e oito e sessenta. Para
você que está lendo isso pode parecer óbvio, mas não era, acredite. Dei de
ombros e entreguei o cartão para ele.
– Ébi? Édi?
Respirei fundo, tentando lembrar se eu não tinha dinheiro na
carteira, mas achei que não.
– Eu não entendi a sua perg...
– Ébi ou Édi?
– Eu tenho que escolher um dos dois, é isso?
– Ébi. Édi.
Ele apontou para a máquina e eu finalmente entendi. “Ébi” significava
“débito” e “édi”, por sua, vez, “crédito”. Aparentemente, o capacetiano é um
idioma com as palavras que têm variações muito sutis na sua pronúncia.
– Hã... Ébi.
Ele pegou meu cartão e colocou na maquininha. Agora sim estávamos
chegando a algum lugar! Eu ainda estava aliviado quando ele me entregou a maquininha.
E foi só a hora que eu peguei o objeto e me preparei para digitar a senha que me lembrei do poder destruidor que aquele aparelho tem no fluxo temporal. Ao
invés de pedir minha senha, a máquina exibia apenas a palavra:
REGISTRANDO
Fiquei olhando para a máquina durante uns dez ou quinze
segundos, mas a mensagem não se alterava. O embaixador do planeta Capacete Prime
começou a ficar impaciente.
– Sanha?
– Oi?
– Sanha?
– Senha?
– Sanha!
Olhei para a máquina novamente.
REGISTRANDO
– Olhe, não está pedindo minha senha. Aqui diz que ainda está
registrando.
– Cisassanha!
– Desculpe, eu não estou entendendo...
– Sanha! Cisassanha!
– Olhe, eu fiz faculdade de comunicação. Eu sei que faz
tempo que eu me formei, mas tenho certeza que seus fonemas não estão se
encaixando direito. Eu só posso fazer o que você quer se eu entender o que...
– Sanha! Sanha! Cisassanha!
– Talvez se você tirasse seu capacete? Porque eu acredito
que a atmosfera aqui é respirável.
Ele olhou para a máquina e eu também.
TENTANDO CONEXÃO
– Viu? Ela está dizendo que ainda não é o momento da senha.
O capacetiano, impaciente, arrancou a máquina da minha mão e
puxou meu cartão. Eu tentei dizer que isso só faria tudo demorar ainda mais,
mas já era tarde. Ele já estava começando a toda a operação novamente.
– Ébi? Édi?
– Ébi. Eu acho.
Fez tudo isso e me entregou a maquininha. Olhei para os
lados pensando que meus vizinhos deviam estar assistindo ao Jornal da Globo,
enquanto eu ainda estava no horário do Jornal Nacional.
REGISTRANDO
– Sanha?
– Ainda está registrando.
– Sanha.
– Não. Ela precisa pedir a senha para eu colocar a senha.
Todas as civilizações que usam o débito automático funcionam sob essa lei.
– Sassanha saissa.
– Como?
– Sassanha saissa.
– Sem senha?
– Sassanha saissa.
– Sem senha, sem pizza?
– Saissa.
– Olhe, eu não quero roubar sua pizza. Mas eu preciso
esperar a máquina pedir a senha. E ela ainda não está pedindo, está vendo?
TENTANDO CONEXÃO
– Sassanha.
– Isso. Sem pedido de senha, sassanha. Quer dizer, sem
senha. Entendeu?
– Bema tema.
– Como é que é?
– Tema.
– Não, você disse algo antes do tema. Pareciam duas
palavras.
– Bema.
– Vem cá, você realmente não quer tirar esse capacete?
– Bema. Tema.
– Hum... Darmok e Jalad... Em Tanagra? (Star Trek: A Nova Geração mode: on)
– BEMA! TEMA!
– Eu não faço ideia do que você quer! A máquina ainda
está tentando fazer algo! Olhe aqui!
REGISTRANDO
A paciência do capacetiano estava perto do fim. Ele gritou algumas
palavras incompreensíveis e tentou puxar a máquina da minha mão. Mas desta vez
eu resisti e não entreguei o aparelho.
– Não! Você não vai tirar meu cartão daqui!
– BEMA! TEMA!
– Não me importa! Se você tirar seu cartão daqui, a gente
vai começar tudo de novo! E eu tenho planos de comer minha pizza e envelhecer
como as outras pessoas da minha espécie! Eu não vou ficar preso aqui nesse
limbo!
– BEMA!
– Não! Sinta-se livre para voltar para seu povo com a sua pizza,
se você quiser! Mas você não vai tirar meu cartão dessa máquina.
– BEMA! TEMA!
Ele disse isso e desistiu de puxar a máquina, fazendo um
gesto que poderia ser interpretado em qualquer lugar da galáxia como “você que se
foda” (ou talvez ele estivesse sugerindo onde eu poderia enfiar a máquina, com
cartão e tudo). Mas eu resisti e voltei a usar a diplomacia.
– Olhe, eu não sei como você fazem em Capacete Prime ou qualquer
que seja o nome do planeta que você veio, mas nós precisamos trabalhar juntos
para resolver esse problema.
– BEMA! TEMA!
– MAS EU PRECISO QUE VOCÊ TIRE ESSE CAPACETE E FALE COMO UMA
PESSOA NORMAL!
– Tema.
HAHAHAHAHAHAHA
– Espere! Você viu isso?
– Vique?
– Sua máquina! Sua máquina está rindo de mim! Olhe aqui!
– Bema.
– Ela já tinha feito isso com outra pessoa?
– Bema. Tema.
– Isso é importante para você, certo? O lance do bema e
tema?
– Bema.
– O que é bema? Por favor, me dá algo para eu poder
trabalhar aqui? Uma imagem, um desenho, qualquer coisa.
Ele apontou para a máquina.
– Bema.
– Bema... Bema... Problema? É isso? Problema?
– Bema!
– Problema tema... No Sistema! Problema no sistema!
– Bema! Bema tema!
HAHAHAHAHAHAHA
VOCÊ É BABACA DEMAIS!
– Bom, sua máquina acabou de me chamar de babaca. Mas acho
melhor eu confiar na sua palavra. Deve ser bema tema. Espero que seja.
– Bema tema.
Olhei para o lado e vi uma senhora de idade saindo da casa
ao lado e me deu boa noite. Não tive certeza, mas ela se parecia bastante com a
minha vizinha que, até aquela tarde, devia ter a mesma idade que eu. Talvez um
pouco mais nova.
Quanto tempo já havia se passado?
– SANHA!
O capacetiano estava dando pulos e apontando para a máquina.
Olhei para a pequena tela.
OLHA, VOU SER GENEROSA
E DEIXAR VOCÊ COMER.
E DEIXAR VOCÊ COMER.
SENHA:
Eu ignorei a primeira frase e apenas digitei minha senha. Poucos segundos
depois, ela cuspiu o papel comprovando a transação.
– Cepéf?
– Oi?
– Cepéf?
– Se eu quero CPF na nota?
– Cepéf.
– Não. Nem fudendo. Me dá só dá a pizza.
– Issa. Ba-mné.
Finalmente entendi que o ba-mné devia ser boa noite. Mas apenas
apanhei a pizza e me despedi rapidamente, voltando para dentro de casa.
E eu estava sozinho. Não havia mais ninguém em casa. Minha
sala parecia ser como eu me lembrava, mas completamente deserta. Provavelmente,
todas as pessoas que eu conheci estavam mortas há décadas.
Eu havia me tornado uma criatura deslocada no tempo. Em
breve, eu seria detectado por cientistas que encontrariam em mim um
objeto arqueológico inestimável. Passaria o resto da vida carregando minha
caixa de pizza e sendo exibido em museus e exposições. Ficaria ali, parado, ouvindo
as pessoas comentando coisas como “todo mundo era pequeno assim por volta do
século 21?”, “como eles eram atrasados, eles ainda não sabiam lidar com a
calvície naquela época!” e “papai, posso tirar um holograma ao lado do homem do
passado?”.
– Você demorou!
Era minha Esposa! Ela estava na cozinha! E ela... Bem, ela
parecia ser ela mesma!
– Quanto tempo eu fiquei fora?
– Bastante! Eu estava quase saindo para ver se tinha
acontecido alguma coisa.
– Que dia é hoje?
– Como assim? É sexta-feira.
– Não! O ano! Que ano estamos?
– Você enlouqueceu?
– QUE ANO ESTAMOS?
– 2016. Mas porque você demorou tanto?
– Nada. Não quero falar sobre isso. As Olimpíadas já
acabaram?
– Claro que não.
– Certo. Vamos comer a pizza e ver um pouco das Olimpíadas. Só
isso.
– Não quer ver alguma série de ficção científica?
– De jeito nenhum. Eu vou pegar a Coca.
No dia seguinte, coloquei um aviso ao lado da campainha
dizendo que pessoas com capacete são proibidas de tocar a campainha de casa.
Quando me perguntam por que fiz isso, digo que é porque tenho medo de assalto.
Quando me perguntam por que fiz isso, digo que é porque tenho medo de assalto.
Você provavelmente seria tema de um "Alienígenas do Passado" se passasse mais cinco minutos como refém do Capacetiano e sua Máquina de Fenda Temporal... hehehehehe
ResponderExcluirOpa!! Trotto... enta? Esse capacetiano é do meu planeta!
ResponderExcluirEXCELENTE TEXTO!!! MORRI DE RIR!!!
ResponderExcluirUm exercício legal é você subir em um coletivo carregando um capacete, sentar naquela cadeirinha que fica ao lado do motorista, aquela que os velhos sempre escolhem logo ao subir do qual te da o conforto de ir sozinho na viagem, olhar bem nos olhos do motorista, encarando-o com olhos amedrontados e vestir (capacete se veste!?) o capacete para a viagem.
O motorista sempre faz uma cara sensacional!
Passa da uma da manhã. Eu vi a postagem no twitter e ia ler só as duas primeiras linhas deixando o blog aberto no navegador do celular para ler amanha. Esta tarde e eu já devia estar dormindo, e quem disse que eu consegui ficar só nas primeiras linhas? Texto sensacional. Mas agora me deu vontade de comer pizza.
ResponderExcluirHahahaha! Já passei por esse problema do cartão de crédito ou débito. Muito bom, chorei de rir.
ResponderExcluirhttps://youtu.be/xg1hBHeLmo8
Caramba!
ResponderExcluirEu já estava ficando com agonia nos diálogos. Ótimo texto.
Cara não aguentava mais esse cara com esse "Bema Tema"! Que agonia! Ótimo texto, hahaha.
ResponderExcluirHAHAHA
ResponderExcluirAqui no Rio isso não pegou. Ao menos, nunca vi esse tipo de aviso.