“O que ele está falando aqui?”
Eu fiz essa pergunta muitas vezes para o meu pai. Apontava
para o sujeito de roupa vermelha e olhos brancos, escondidos por uma máscara,
querendo saber cada palavra daquele balão cheio de símbolos estranhos acima da
sua cabeça.
Meu pai me explicava e, por alguns minutos, eu podia voltar
a apenas olhar os quadrinhos, entendendo a ação do meu jeito – e provavelmente inventando
as lacunas que eu não podia compreender. Alguns minutos depois, porém, eu
atravessava a sala novamente e apontava para outro quadrinho.
“E aqui? O que ele está falando?”
Pouco depois, eu comecei a aprender a entender aqueles
símbolos. Acho que fizeram um bom trabalho, já que hoje eu trabalho com eles.
Mas, antes disso, tudo o que eu podia fazer era olhar os quadrinhos. E isso
devia me encantar, já que eu fazia isso o tempo inteiro.
Não eram os únicos desenhos que eu olhava. Além do homem
vestido de vermelho, eu também tentava decifrar as aventuras de um guerreiro
baixinho gaulês e seu amigo de traços ruivos. Isso sem falar nos livrinho
infantis que me cercavam, normalmente estrelados por um camundongo e um pato
com roupa de marinheiro.
Mas quem eu queria mesmo saber o que estava falando era o
sujeito de vermelho. Queria entender o que ele falava para o bandido que apontava
uma arma em sua direção e que ordem ele havia dado para o seu cachorro. Aliás,
quando meu pai me explicou que não era um cachorro, e sim um lobo, eu fiquei
com isso dias na cabeça. Afinal, na cabeça de um menino de cinco anos que
combatia o crime no chão da sala, a ideia de ter um lobo é certamente uma das
coisas mais legais do mundo.
Quando eu atravessei a fronteira que dividia os mundos “ver
os quadrinhos” e “ler quadrinhos”, o homem de vermelho veio comigo. Mas, graças
ao meu pai, eu já sabia que o nome dele era Fantasma, que ele morava na África,
numa caverna em forma de caveira, que era a segunda coisa mais legal que um
menino de cinco anos poderia querer (porque a primeira, como vocês devem
imaginar, era um lobo) e combatia a pirataria.
Porém, quando eu comecei a ler de verdade, entendi que as
pessoas achavam que ele era imortal (“por isso que ele chama Fantasma!”), mas
na verdade ele era um homem comum, como eu e como meu pai. O segredo é que
sempre que um Fantasma morria, seu filho assumia seu lugar, então todos achavam
que era sempre o mesmo sujeito há quatrocentos anos.
Também descobri que o lobo chamava Capeto, que seu cavalo se
chamava Herói e sua namorada, Diana. E mais importante, aprendi que seu nome
era Kit Walker e que nunca víamos seu rosto sem a máscara, pois “aquele que
olha nos olhos do Fantasma morre” (velho ditado da selva).
E eu descobri isso porque era uma época em que ele ocupava
um bom espaço nas bancas. Fantasma. Almanaque do Fantasma. Superalmanaque do
Fantasma. Hiperalmanaque do Fantasma. Fantasma Especial. Fantasma Extra. Arquivos
Secretos do Fantasma. Todas essas revistas iam para casa, e sempre havia briga
para ver quem ia ler primeiro. Eu, meu pai, minha mãe, meu irmão. Todos nós queríamos
ver a nova aventura.
Os anos passaram e eu nunca mais consegui só olhar os
quadrinhos. Depois que se aprende a ler, olhar não satisfaz mais. E eu nunca
mais parei. Fui para Patópolis, brinquei com a Turma do Bairro do Limoeiro,
briguei com a Turma da Zona Norte. Um dia, já na adolescência, caí no meio de
uma Nova York habitada por outros heróis fantasiados. Aquele que escalava
paredes, aquele que arremessava o escudo, os quatro que eram uma família.
Eu ainda estou em todos esses lugares, até hoje.
Mas, conforme o tempo avançou, eu descobri que um pedaço do meu
coração ficou na costa de Bengala, no território habitado pelos temíveis
pigmeus bandar e suas flechas envenenadas. Eu ainda me surpreendo, às vezes, vasculhando
as salas dos tesouros, visitando a cripta ou folheando os arquivos. Ou apenas
correndo pela floresta ao lado de Capeto. E ainda me surpreendo querendo um
anel da caveira e outro com a marca do bem.
Fiz tudo isso desde a hora que acordei, quando descobri que o
Fantasma está completando 80 anos – sua primeira tira foi publicada em 17 de
fevereiro de 1936. São 80 anos de vida e quase 40 na minha vida, já que, como
eu disse no começo desse texto, eu lia Fantasma antes mesmo de aprender a ler.
E o Fantasma está comigo até hoje. Quando eu era criança, eu
precisava entender o que acontecia nos mundos que visitava; hoje, adulto, eu
trabalho criando mundos e descobrindo o que acontece dentro deles. Nada me
deixa mais feliz que ter uma ideia para escrever. Abro a tela em branco e
começo a escrever, sabendo que vou descobrir o que acontece nesse mundo e com
as pessoas que moram dentro dele.
É por isso que sempre que eu me olho no espelho eu enxergo o
rosto da minha mãe, mas também a alma do meu pai. Ao seu modo, ele também precisa
de aventuras em mundos diferentes o tempo inteiro, seja na África ou a bordo de
uma nave espacial. É isso que o deixa feliz.
Assim como o Fantasma, eu sou igual ao meu pai.
A única diferença é que eu não precisei pegar uma caveira e fazer
um juramento para me tornar meu pai. Eu precisei apenas atravessar a sala com
uma revista em quadrinhos na mão e perguntar:
“O que ele está falando aqui?”
Pois, assim como meu pai, eu não sobrevivo sem esses mundos
fantásticos e seus heróis maravilhosos. É a minha vida.
É o que eu sou.
“E meus filhos, e os
filhos de meus filhos, me seguirão.”
Amei seu texto!
ResponderExcluirE me vi nele (eu tinha um pouco mais de cinco anos, claro)e me lembrei de como eu era apaixonada pelos quadrinhos do Fantasma.
Parabéns para ele pelos 80 anos e para todos nós que tivemos a oportunidade de conhecê-lo.
Porra! Sem mentira: chorei! Mesmo sem muitas lembranças do Fantasma! Meu pequeno tem 1 ano e 10 meses e fiquei imaginando se conseguirei transmitir pra ele essa minha paixão por outros mundos e por histórias, fantásticas ou nem tão fantásticas. Acho que por enquanto estou conseguindo, pois ele adora um livrinho! Também lembrei de minha falecida mãezinha, que me transmitiu essas paixões!abs
ResponderExcluirO fantasma roxo que ficou vermelho na brasilândia. Tenho até hoje essa reimpressão comemorativa do número um, que você usou para ilustrar o texto. Uma coisa que nunca me esqueci das revistas era como sempre que se referiam a ele como Walker, vinha com um asterisco e a explicação "de espírito que anda".
ResponderExcluirP.S.: Não sei como até hoje ninguém fez uma sátira disso com o espírito que caga e anda...
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