Eu lembro quando descobri o blues.
Era pré-adolescente e como muita gente da minha idade, meu
primeiro contato com o blues foi assistindo a Os Irmãos Cara-de-Pau. Lembro até
hoje de assistir ao filme com meu irmão e, ao vermos um velho tocando na rua
numa cena rápida, ele comentou “esse cara deve ser um monstro do blues e a
gente não sabe”. Era verdade. Eu não fazia ideia de quem era aquele velho. Mas sabia que eu nunca tinha visto tanto carisma em uma pessoa (a cena, estendida, está aqui).
Mas se eu descobri o blues cedo demais, só fui me apaixonar
por ele tarde demais, por volta dos vinte e cinco anos. Até então eu escutava e
apenas gostava. Sentia-me atraído por aquele som doce e simples, com letras
poderosas. Mas nunca tinha me
aprofundado de verdade naquele mundo.
Até eu me apaixonar por blues.
Foi no dia que a música “How Blue Can You Get?” cruzou meu
caminho. Como qualquer pessoa, eu já conhecia BB King, mas nunca tinha escutado
aquela canção. Sua letra é universal e conta como um homem não sente nada além
de tristeza por causa da uma mulher ingrata e egoísta, tudo isso contrastando
com uma guitarra doce e melódica que transformava aquela tristeza em esperança
do dia seguinte ser melhor.
Porque o blues não é apenas sobre tristeza.
O blues é, na verdade, sobre a esperança de que amanhã será melhor.
Minha vida mudou. Eu não me senti tragado para dentro da
música, mas sim para dentro de algo maior. Naquele dia, eu não me apaixonei por
uma música ou por um disco, mas sim por um mundo completamente diferente daquele
que eu encontrava em outras músicas.
Comecei a ouvir – e ler sobre – blues o dia inteiro. Fui
atrás dos grandes nomes do passado e comecei a conhecer melhor aquele mundo, povoado
por pessoas comuns que viviam em lugares reais e experimentavam problemas que
todos nós temos. Um mundo amargo e alegre, solitário e erótico, violento e
adocicado. Tudo ao mesmo tempo. Um mundo onde a dor não é grandiosa, mas ela é tudo
que existe. E a única maneira de lidar com ela é com a música, que entrega uma
espécie de redenção (eu tentei descrever como me sinto ouvindo blues aqui).
Um mundo que não foi feito para ser compreendido, mas sim
experimentado.
E, em algum momento, eu descobri que não me apaixonei pelo
blues tarde demais. O blues me ajudou a sair de uma depressão. O blues me
ajudou a fazer a transição do jovem para o adulto. Não, eu não me apaixonei
pelo blues tarde demais.
Eu me apaixonei pelo blues na hora certa.
Mais ou menos quinze anos se passaram desde que dei meus
primeiros passos nesse mundo. E hoje não consigo me imaginar fora dele. Tenho o
blues tatuado no braço porque eu preciso levar esse mundo comigo para onde vou.
Escrevo uma história em quadrinhos em que o blues é um dos elementos mais
importantes no roteiro porque, como qualquer pessoa que habita esse mundo, me
sinto na obrigação de mantê-lo vivo e contar sua história.
Pois sua história faz parte da minha história.
E sempre que eu olhava para trás na minha história, pensando
sobre a importância que esse mundo tem na minha vida, enxergava BB King no
começo de tudo. Ele não era meu bluesman preferido, mas estava além. Ele era
meu marco zero.
Eu tive muita sorte. Para entrar nesse mundo habitado por
pessoas comuns, foi preciso que um rei aparecesse com sua guitarra no ombro, me
pegasse pela gola da camiseta e me desafiasse:
– How blue can you get, boy?
Eu estou até hoje tentando responder essa pergunta. Por
isso, às vezes, eu voltava para o portão desse mundo e mergulhava em BB King.
Passava o dia ouvindo a voz e a guitarra melódica daquele rei
que um dia, desceu de seu trono e convidou um garoto para fazer parte do seu
reino. E sempre começando por aquela música sobre aquela mulher ingrata – que,
hoje eu sei, mudou minha vida. E, a cada vez que eu ouvia aquela música, sentia
uma espécie de arrepio pensando em como o blues faz de mim o que sou hoje.
E hoje o rei está morto.
Dizem que reis não morrem de verdade. Assim, acredito que ele
permanecerá vivo em estradas lamacentas, espeluncas lotadas, campos de algodão
e quartos abafados, contando histórias de paixões que esfriaram, de empregos
ingratos, de mulheres egoístas, de amores impossíveis.
E a tristeza pela sua morte será diminuída – mas jamais
esquecida – no momento que alguém, em algum lugar do mundo, empunhar um violão
e cantar seu nome ao lado de uma dose de uísque. Afinal, eu disse acima que o blues não é sobre
tristeza e sim sobre a esperança de que amanhã será melhor. Isso é algo que eu
aprendi com aquele rei.
Porém, nem todo o uísque do mundo mudará o fato de que ele está
morto. Pois o rei também foi o primeiro a me falar que o blues sempre foi sobre
verdades. E a verdade é que o rei está morto.
Hoje, a pergunta “how blue can you get?” não me traz
arrepios, apenas tristeza. Mas o rei já havia previsto isso. Com seu ar de “as
coisas são assim mesmo”, ao cantar que the
thrill is gone, the thrill is gone
away, ensinou que nada é para sempre, nem mesmo aquilo que a gente acredita
que é para sempre.
O rei ensinou muitas coisas. Essa foi sua última lição, pois hoje o rei está morto.
Longa vida ao rei.
Robolino, o que é mais decisivo pra você gostar de uma canção de blues? A melodia ou a letra?
ResponderExcluirTrotta:
ResponderExcluirNa maior parte dos casos, a letra. Na maior parte dos casos.
Tive um professor de história que colocava blues pra minha turma ouvir quando ele achava que o tema da aula pedia uma trilha sonora. Eu lembro de adorar ficar ali, e de achar maravilhosa a melodia e as vozes, mas eu nunca procurei mais sobre o assunto. Seu texto me fez sentir vontade de procurar. :)
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExistem uma antiga frase que cabe muito bem nesse momento:
ResponderExcluir"Somente em suas formas materiais e visíveis o perdemos, pois seu nome, suas boas obras permanecerão para sempre em nossa memória, como exemplo."